Como lidar com a desinformação? Como participar de eleições altamente influenciadas por fake news e manipulações feitas com inteligência artificial, como os recentes ataques recebidos pela agora presidenta eleita do México, Claudia Sheinbaum, que teve seu rosto e sua voz manipulados em vídeos falsos? São questões prementes que desafiam a democracia, o bem-estar social e têm relação direta com a extrema-direita: a organização de ataques, destruição de reputação causadas por ondas de discurso de ódio, com método, organização e deliberação.

Alberto Cantalice e Fernanda Otero

Para falar sobre estes desafios, a regulação das mídias e os efeitos nefastos da indústria das fake news, financiada pela extrema-direita, a Focus conversou com o professor e pesquisador João Cezar de Castro rocha, que acaba de lançar o livro “Bolsonarismo: Da Guerra Cultural ao Terrorismo Doméstico, pela editora Autêntica. No livro, o professor analisa o bolsonarismo enquanto fenômeno social e psíquico e comenta o fôlego e o futuro do movimento, o diadema do extremismo no Brasil.

Professor de literatura comparada da UERJ, João Cezar dedicou os últimos anos a analisar profundamente o bolsonarismo, recorrendo, para tanto, a conceitos, explicações e alusões da psicologia, da sociologia e até de clássicos literários. Generosamente, é assim a entrevista do professor à Focus: um passeio didático pela história do golpismo no Brasil, do ponto de vista do pesquisador, um desenho da morfologia do ódio e de como ele se dissemina e cria sistemas que minam a democracia.

“A razão pela qual a extrema-direita faz uma campanha transnacional para deslegitimar a tentativa de conceituar discurso de ódio e fake news é que se ambos não forem consensualmente definidos, não há nenhuma possibilidade de criar uma legislação que se refere ao discurso de ódio e a fake news”, defende o professor, que difere fake news de mentira e de notícia falsa, dois elementos essenciais para compreender também o conceito de discurso de ódio.

Para o professor, o momento de agir é ontem. E não é nas trincheiras onde se dá a disputa o terreno para se conquistar a vitória, argumenta: é tratando o crime como crime, já previsto em nosso Código Civil, como os crimes contra a honra, que invariavelmente estão presentes na fake news. “Não é tarefa da Secretaria de Comunicação, isso é bem importante, não é tarefa da Secretaria de Comunicação responder a fake news. Quando responde, ecoa.

A tarefa da Secretaria de Comunicação é criar uma comunicação apenas favorável àquilo que o governo está fazendo”, elabora o pesquisador. Segundo ele, mais do que lutar por criar uma legislação específica, é preciso fazer valer os instrumentos já existentes. “O Ministério da Justiça, Polícia Federal e a Advocacia Geral da União deveriam ser mais acionados nesses casos. Nós precisamos começar a lançar mão das prerrogativas do Estado Democrático para defendê-lo. Caso contrário, um outro Jair Messias Bolsonaro surgirá. Aliás, ele já tem nome. O nome dele é Nikolas Ferreira (PL).

Leia a íntegra da entrevista:

O bolsonarismo é um evento social e esse assunto afeta demais o Brasil nesse momento. O que é a retórica do ódio?

– A retórica do ódio é uma tentativa conceitual de superar um impasse. Nós todos falamos, e é justo que o façamos, muito no discurso de ódio. Porque, de fato, com as redes sociais e com a difusão planetária e cotidiana, do universo digital, os discursos de ódio se tornaram propriamente epidêmicos. Há literalmente uma epidemia de discurso de ódio, mas há um problema conceitual. Ninguém consegue definir discurso de ódio. A Organização das Nações Unidas já lançou dois projetos globais de combate ao discurso de ódio. É uma iniciativa muito importante. Nos dois planos estratégicos, a ONU inicia perguntando o que é discurso de ódio e responde com grande honestidade intelectual. A ONU diz que não existe definição consensual internacionalmente aceita sobre discurso de ódio. Sempre se esbarra na ideia da liberdade de expressão ou na interpretação do conteúdo que foi dito. Isso cria um problema muito sério, que é uma das razões pelas quais a extrema-direita avança no mundo inteiro. É porque aqui vale o velho princípio do direito romano. Se não existe uma lei que defina com anterioridade uma ação como criminosa, não há crime. Então, se não há lei, não há crime. Se não há crime, não pode haver pena. Na ausência de pena, o que vige é a impunidade. E a extrema-direita triunfa nessa impunidade. A razão pela qual a extrema-direita faz uma campanha transnacional para deslegitimar a tentativa de conceituar discurso de ódio e fake news é porque se ambos não forem consensualmente definidos, não há nenhuma possibilidade de criar uma legislação que se refere ao discurso de ódio e a fake news.

O que eu propus, então, é que o discurso de ódio é uma explosão do inconsciente. Por isso não se define. Eu proponho, conceitualmente, que o discurso de ódio é a ponta do iceberg. O que nós podemos realmente agir é compreendendo que o que a extrema-direita faz no mundo inteiro é uma retórica cotidiana, é uma pedagogia de desumanização do outro. E essa retórica do ódio, como é uma retórica, tem uma estrutura discursiva que se repete, pode ser ensinada e, sobretudo, pode ser aprendida. Em primeiro lugar, a retórica do ódio principia pela ridicularização do outro. Se eu consigo, de alguma forma, ridicularizar o outro, eu estou, por assim dizer, esvaziando o conteúdo do que ele diz. Isto se faz, em geral, pela paródia do nome próprio. Então, eu sou o João César de Castro Rocha, o Olavo de

Carvalho levou os seus seguidores a me chamarem de João César Chato de Galocha. Que é a quinta série. João César, disseram, castrado e broxa. Qual é a finalidade dessa ridicularização do meu nome próprio? É que, se aquilo que me é mais próprio, o meu nome, é ridicularizado, eu já não sou levado a sério. Se eu não sou levado a sério, o conteúdo do que eu proponho é já esvaziado antes mesmo da fala, esse seria o primeiro passo. O segundo passo é estigmatização. Eu deixo de ser o João César Chato de Galocha, porque, bem ou mal, ainda sou o João César, e eu passo a ser estigmatizado como um tipo. Eu sou o professor esquerdista, doutrinador paulo-freiriano. Eu sou de esquerda ou comunista. Começa o processo de desindividualização. Assim chegamos ao terceiro momento. Se eu sou o João César Chato de Galocha, “paulofreiriano esquerdista”, professor doutrinador, agora, de tipo, eu sou tornado um nada. Nem sequer se pode falar. Quando eu sou tornado nada, tudo que se faça contra o nada, nada será. É essa a estrutura dos genocídios na história da humanidade. Nenhum genocídio começa pelo discurso de ódio. Nenhum genocídio começa pela violência física. O discurso de ódio, que é quando você abertamente expressa o seu ódio, e a violência física é quando o ódio é transformado em ação concreta, eles são preparados por uma pedagogia cotidiana de desumanização do outro. Se você é do PT, você é petralha. Se você é de esquerda, você é paulo-freiriano. Se você é comunista, você matou 150 milhões de pessoas ao longo da história. Percebe? Quando eu sou tornado nada, o processo se completou. Agora, o discurso de ódio pode explodir. E se faz sentido isso que eu estou propondo, nós podemos identificar os instantes da retórica do ódio. E nós podemos agir antes de chegar no discurso de ódio. Essa é a primeira proposta. Nós precisamos ousar, nós temos que propor conceitos novos, porque nós vivemos uma situação nova. Se nós não desenvolvermos conceitos novos, nós não daremos conta da complexidade da tarefa que temos pela frente.

Analisando o que já ocorreu no passado, como a ascensão do fascismo de Mussolini e o nazismo de Adolf Hitler, vemos que hoje temos personagens que operam, mesmo que com nomenclaturas diferentes, o mesmo discurso: o discurso do ódio. No Brasil, se olharmos a política pré-64, foi o mesmo discurso usado para ganhar adeptos para o golpe, com a marcha das famílias, etc. Parece que quando eles retornam com esse discurso, o campo progressista está sem arsenal para combatê-los.

– Então vamos lá, essa questão é realmente rigorosamente fundamental. Fake news não é mentira, a ideia de que fake news seja mentira, é a ideia que interessa discutir, que a certa extrema direita interessa levar adiante. Então, fake news não é mentira, embora haja mentira na fake news. Fake news não é notícia falsa, porque um jornalista pode cometer um erro de apuração, o jornalista pode cometer um equívoco, isso tem até um nome no jornalismo, a barrigada, é uma notícia falsa e ele corrige. Na fake news há mentira e há notícia falsa, mas fake news não é nem notícia falsa nem mentira. Eu proponho que só a fake news, quando ela faz parte de um todo, cujo objetivo é de maneira deliberada gerar um ecossistema sistemático de desinformação, que produz caos cognitivo, que permite então a extrema direita suprir o mercado com teorias conspiratórias. A verdade é que hoje, no mundo inteiro, conquistam corações e mentes de centenas de milhões de pessoas, então, primeira proposta; nós só deveríamos falar de fake news, não como um caso isolado, isso é muito importante, não há caso isolado de fake news, para ser fake news tem que ser parte de um ecossistema deliberado de desinformação; segunda proposta: tudo agora parece mais difícil, porque se a fake news fosse um caso isolado, uma mentira, uma notícia falsa, você rebate, e está tudo resolvido, mas quando você rebate uma fake news, ela se torna mais forte, porque você difunde, não a fake news, mas o ecossistema deliberado de desinformação. Então como combater a fake news? De uma forma ampla, não será possível fazê-lo, nós já vivemos num mundo dominado pela onipresença planetária, disto aqui, todo tempo nós temos um celular na mão, todo tempo nós estamos conectados. Como agora, Alberto, nós estamos aqui conectados pelo universo digital. A própria ideia de fake news escapou do controle, mas é possível uma reação, não no sentido individual, mas o Estado, a estrutura pública pode reagir. O campo progressista perde muito tempo criminalizando, tentando criminalizar fake news ou julgando fake news moralmente. Eu proponho que tenhamos outra estratégia, que aliás o governo começa a ter. Veja, é quase impossível que uma fake news não incorra em artigos do Código Penal. Crimes contra a honra são três artigos, 138, 139 e 140 se não me engano, e crimes contra a paz pública. Então vou dar exemplos concretos. O deputado federal Gustavo Gayer (PL), no ano passado, em 2023, quando houve as primeiras enchentes sérias do Rio Grande do Sul, publicou no então Twitter, e ele apagou, mas eu tenho a postagem. Dizia assim: “o presidente Lula proibiu, suspendeu a distribuição de cestas básicas que só voltarão quando ele puder tirar fotografias”. Ele está atribuindo ao presidente Lula uma ação que o presidente Lula não cometeu, que seria uma ação criminosa. É crime contra a honra, é calúnia. Por que é que a Advocacia Geral da União não processou o Gustavo Gayer? O ministro Sílvio de Almeida foi numa audiência na Câmara. Um deputado, o Gilvan da Federal (PL), disse com todas as palavras que o ministro tinha conluio com o Comando Vermelho. O ministro Sílvio de Almeida, pelo que eu sei, decidiu processar o Gilvan da Federal. Precisa fazê-lo, porque as fake news incorrem em crimes previstos no Código Penal. Por exemplo, as pessoas que fizeram fake news e que, por isso, prejudicaram a ajuda aos necessitados do Rio Grande do Sul, cometeram crimes do Código Penal contra a paz pública. Então, o Estado Democrático de Direito já possui instrumentos que podem ser usados. Uma vez eu dei essa sugestão pra uma certa pessoa da alta cúpula de um partido, e a pessoa muito gentilmente me disse, “olha, agradeço, mas nós nunca ganhamos esses processos”. A questão não é ganhar o processo. A questão é: dar uma justificativa para a opinião pública. Porque se alguém diz, o fulano roubou 10 milhões do fundo partidário, você precisa reagir. Você tem que dar uma justificativa pra opinião pública. Agora, no Brasil, os crimes contra a honra, as penas são muito brandas, e geralmente são comutadas por serviço a serem emprestados à comunidade. Nenhum problema. Se a pessoa fizer isso contra você, se você processá-la, ela pode ser obrigada a fazer 40 horas de serviço comunitário. Alguém pode dizer, não valeu a pena? Valeu. Sabe por que? Esta pessoa deixou de ser réu primário. Se ela reincidir na prática, sabe qual é a pena? Privação de liberdade, ou seja, cadeia. Então, me parece que, em relação às fake news que são direcionadas contra o governo, é necessário que o Ministério da Justiça acione a Polícia Federal e que a Advocacia Geral da União haja. Não é tarefa da Secretaria de Comunicação, isso é bem importante, não é tarefa da Secretaria de Comunicação responder a fake news. Quando responde, ecoa. A tarefa da Secretaria de Comunicação é criar uma comunicação apenas favorável àquilo que o governo está fazendo. Mas o Ministério da Justiça, Polícia Federal e a Advocacia Geral da União deveriam ser mais acionados nesses casos. Enquanto isso não acontecer, ou seja, enquanto não houver a nossa disposição de lançar mão dos recursos do Estado Democrático de Direito para defender a democracia, a extrema-direita continuará avançando, porque a técnica da extrema-direita, a tática da extrema-direita em todo mundo é forçar limites do aceitável, naturalizar o absurdo. Como é que a extrema-direita pode fazê-lo? Só há uma forma de viver, de ter como estratégia política o tempo todo testar limites. Necessariamente, em algum momento, você estará na fronteira do crime. Nós precisamos começar a lançar mão das prerrogativas do Estado Democrático para defendê-lo. Caso contrário, um outro Jair Messias Bolsonaro surgirá. Aliás, ele já tem nome. O nome dele é Nikolas Ferreira (PL).

Esse discurso de ódio, que sempre existiu, teve um crescimento. É possível identificar que o aumento do discurso de ódio se deu a partir das revoluções coloridas do final da década de 1990 e início dos anos 2000, tendo um ensaio geral no Brexit da Inglaterra e na eleição de Trump em 2016, nos Estados Unidos, assim como no Brasil. Podemos qualificar que a captura das manifestações de 2013 foi uma espécie de ensaio geral da extrema-direita, visto que essas manifestações, após a captura, ocorreram através de convocações pelas mídias digitais. Podemos portanto dizer que, no Brasil, esse ensaio geral se deu em 2013 e não em 2018?

– Ah, eu acho que você disse algo muito importante: Discurso de ódio de maneira genérica sempre houve, e você tem toda razão. O nazismo não teria sido possível que durante pelo menos quase uma década os nazistas não tivessem levado adiante essa pedagogia diária de desumanização dos judeus, mas não só dos judeus, dos ciganos, dos comunistas, dos socialistas. Esse discurso de ódio sempre houve e no Brasil também. Eu participei há pouco tempo, e foi uma experiência muito interessante, de um encontro da Escola Nacional de Formação do PT. O encontro era dedicado a uma reflexão sobre 1964, sobre o golpe. Eu propus falar de outro assunto que você mencionou e que me parece fundamental para o momento atual que vivemos hoje. Eu considero mais importante do que refletir sobre o 1 de abril de 1964, é refletir sobre o período entre 26 de agosto de 1961 até o 1° de abril de 1964. Porque nesse período, nesses três anos, houve a mais intensa articulação golpista de que se tem notícia no Brasil. Um instituto foi criado, o IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, cuja principal finalidade era criar propaganda através de pequenos documentários, entre outras coisas, em material impresso para desestabilizar o governo João Goulart, dizendo que a ameaça comunista se aproximava, que a inflação sairia do controle, que o salário mínimo não podia ser aumentado, que as metas de desenvolvimento levariam a desequilíbrio fiscal, isso em 1961. O presidente do IPES foi o general Golbery do Couto e Silva, que só deixou o IPES aberto para fundar o Serviço Nacional de Informações. Então, entre 1961 e 1964, houve uma intensa articulação golpista nos quarteis, em institutos como o IPES, na grande imprensa, que durante três anos preparou a atmosfera para que, de fato, houvesse uma parte da população que apoiasse o golpe de 1964. Isso me parece rigorosamente indispensável, que nós não esqueçamos como isso era feito. Demonização da esquerda, demonização, sobretudo de figuras como Leonel Brizola, Francisco Julião, demonização do Paulo Freire. Qual foi uma das primeiras pessoas presas pelo golpe de 1964? O Paulo Freire. Você sabe por que o Paulo Freire é tão odiado? Até 1988, no Brasil, para votar, você tinha que ser alfabetizado. Esse grande paradoxo da República no Brasil, nós temos uma República que nasce com déficit de cidadania, porque a abolição da escravatura em 1888 e a República é novembro de 1889. Você tem 18 meses entre o fim da escravatura e o início da República. Não houve nenhum projeto de incorporação dos ex-escravizados na vida social brasileira. Não houve nenhum projeto de alfabetização. Portanto, aqueles que não votavam eram os ex-escravizados, sobretudo. Nós temos uma República que é esquizofrênica, porque ela retira do processo político a maior parte da população. Pois bem, qual era o método do Paulo Freire? Era um método que, em 40 horas, alfabetizava as pessoas. As pessoas, em 40 horas, aprendiam a ler e a escrever. Pois bem, há uma famosa foto, notável: em janeiro de 1964, o presidente João Goulart, muito impressionado com o resultado do método de alfabetização do Paulo Freire, estabeleceu o Programa Nacional de Alfabetização, janeiro de 1964. Quem era o responsável nacional pelo programa? Paulo Freire. Qual teria sido a consequência deste programa se ele fosse levado adiante? Teria sido a incorporação de 30% de renovação do eleitorado brasileiro, porque todos aqueles que seriam alfabetizados poderiam votar. Havia eleições presidenciais em 1965. Há uma famosa foto em que os resultados do método Paulo Freire são apresentados e o Programa Nacional de Alfabetização é anunciado. Nessa foto, há um militar com o sênior franzido, com o rosto fechado, evidentemente contrariado pelo Paulo Freire e pelo projeto. Sabe quem é esse militar? O general Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura militar. Por isso, eles odiavam o Paulo Freire. A possibilidade de alfabetizar milhões de pessoas mudaria para sempre a política brasileira. Em parte, esta também foi a razão do golpe e a razão pela qual, ainda hoje, a extrema-direita demoniza Paulo Freire. É bem importante. O discurso de ódio não começou em 2013 no Brasil, não. Se nós precisássemos de uma data para mostrar o início dessa articulação golpista, essa data existe. Essa data, acredite, é 1950. É um editorial do Carlos Lacerda na Tribuna da Imprensa. Quando Getúlio Vargas sai de São Borja e decide se candidatar de volta, de maneira triunfante nos braços do povo, um Getúlio Vargas que é muito diferente do ditador do Estado Novo, de 1950 a 1954. Carlos Lacerda escreve o editorial e diz assim: “Getúlio Vargas não pode ser candidato. Se for candidato, não pode ser eleito. Se for eleito, não pode ser empossado. Se for empossado, não pode governar. Nem que seja por meio de uma revolução”. Em 1950, começou um discurso de ódio fortíssimo da direita no Brasil, que teve como resultado final 1964. Agora, veja uma coisa. Lei da Anistia. Agosto de 1979. Você já se deu o trabalho de ver o arco temporal da Lei da Anistia? Diz assim, são anistiados crimes políticos e crimes conexos. Os crimes conexos são tortura, assassinato de adversário político e ocultação de cadáver. Claramente. Da data da promulgação, agosto de 1979, e a lei volta para 2 de setembro de 1961. Vocês já se perguntaram por quê? É porque a articulação golpista contra João Goulart começa em setembro de 1961. Então, o discurso de ódio, contra qualquer tentativa de inclusão social, de ampliar a distribuição de renda, de tornar o povo partícipe das decisões do país, desde 1949, começou esse discurso de ódio. Ele continua. Hoje, eu diria, o governo Lula começa a enfrentar uma articulação golpista que é claramente aberta, não é oculta. Veja a articulação golpista contra o governo Lula. São três pontos: Um, a demonização do governo através da manipulação da fé legítima de 40 milhões de evangélicos. Dois, aglutinação em torno de um nome que se pretende alavancar para a campanha: Tarciso de Freitas 2026. Três, editoriais permanentes, especialmente da Folha de São Paulo, do Estado de São Paulo, com distorções sistemáticas de declarações ou de ações do governo. Quatro, o mercado financeiro realiza o tempo todo projeções econômicas que ou – e isso já está provado – jogam a inflação para cima, ou jogam a previsão do aumento do PIB para baixo. Agora saiu o resultado do trimestre, do crescimento do PIB no trimestre. O mercado financeiro havia projetado para muito mais baixo. Surgiu a inflação. O mercado financeiro havia projetado para muito mais alto. Por que ele faz isso? Porque essas previsões ajudam a calcular a taxa SELIC. E a taxa SELIC não caindo, o mercado financeiro continua lucrando. Então nós estamos enfrentando hoje, não sejamos ingênuos, uma clara articulação golpista, hoje em curso. Que é uma articulação discursiva que procura emparedar o tempo todo o governo do presidente Lula e do vice-presidente Geraldo Alckmin. Não é 2013, não. Isso na história do Brasil volta muito. Eles continuam. E a demora em concluir o julgamento dos grandes nomes envolvidos no 8 de janeiro é péssima para a democracia brasileira. Veja o que aconteceu no caso do Donald Trump para os Estados Unidos. A demora do sistema da justiça em levar adiante o julgamento do Trump criou uma situação muito difícil para os Estados Unidos agora. O Tribunal Superior Eleitoral foi muito ágil e em seis meses tornou o Bolsonaro inelegível. Ótimo. Mas agora é indispensável que o Supremo Tribunal Federal comece realmente a julgar e a condenar: General Braga Neto, General Augusto Heleno, Jair Messias Bolsonaro, todos os empresários que financiaram o golpe, todos os políticos que de uma forma ou outra estimularam o 8 de janeiro.

Quando Lula encerrou o governo, em 2010, o Brasil crescia 7,5%, ele saiu do com aprovação na casa dos 80%. Quem estava contra: aqueles de sempre. Lula conseguiu com a popularidade de 80 e tantos por cento eleger alguém que seria a continuação daquele projeto de inclusão social. Os setores reacionários que estavam emparedados por conta da popularidade do presidente, eles se aglutinaram, aproveitaram para, a partir de 2013, intensificar e popularizar o discurso de ódio, e isso foi usado na campanha do Brexit e também nos Estados Unidos, quando Hillary Clinton perdeu e surpreendeu a todos, inclusive o Partido Democrata. As mídias sociais, que têm um alcance muito maior hoje do que a chamada mídia corporativa, do ponto de vista da divulgação desses conteúdos, você não acha que o discurso de ódio ganhou um empuxo muito maior a partir dessas redes? Não é imperativo discutir a regulação das redes sociais?

– Você tem toda razão, a partir do momento em que se produziu uma algoritmização da vida política, tudo mudou e mudou mesmo no sentido prático das campanhas, por exemplo em 2018 o grande trunfo do Bolsonaro é que ele introduziu na política brasileira algo que simplesmente ninguém fazia, que é o chamado micro direcionamento digital que só é possível a partir dessa algoritmização da política, ou seja assim como nós somos transformados nas redes sociais em perfis de usuário a algoritmização da política lança a mão das informações nossas com usuários para fazer a campanha política não se faz mais campanha política para a cidadania, você faz a campanha política para segmentos isolados, segmentos que em si são muito diferentes isso marcou uma diferença rigorosamente fundamental. Mas tem uma questão bem importante, é que a regulamentação das redes é indispensável para a solidez das democracias contemporâneas, a União Europeia já está realizando algo neste sentido e é bem importante compreender qual é a estratégia discursiva da extrema-direita. A extrema-direita apresenta o algoritmo como se o algoritmo fosse um sujeito dotado de inteligência. Enquanto tal, ele não existe, o algoritmo é apenas uma sequência de ações padronizadas que tem como finalidade responder a uma pergunta, resolver um determinado problema. Ele é inserido no aplicativo ou na rede social manualmente por quem programa, então as redes já são reguladas pelos algoritmos, mas nenhum de nós tem acesso a lógica dos algoritmos que regulam as redes. Quando a extrema-direita consegue impor na linguagem mundial o algoritmo, nós temos que falar dos interesses que levam a programação daquele algoritmo. O algoritmo não é um programa, é uma sequência de ações para resolver um determinado problema ou para chegar a uma determinada resposta. A regulação das redes sociais, ela realmente se impõe, caso contrário será impossível combater as fake news e evitar agora sobretudo com a inteligência artificial como elas se encontram a possibilidade das chamadas deep fake news, não é uma possibilidade é uma realidade. Veja agora na eleição mexicana, utilizaram inteligência artificial e difundiram vários vídeos da candidata que agora é a presidenta do México, a Claudia Sheinbaum, dizendo coisas absurdas. A inteligência artificial com a mesma voz com a mesma aparência, com os mesmos gestos é ela, embora não seja a própria Claudia Sheinbaum então se não houver uma regulação das redes, as democracias tendem a entrar em colapso muito brevemente.

Está em debate nos EUA a questão da plataforma chinesa TikTok, que quebra um pouco o domínio gigantesco da Meta e do Google, que são empresas de cidadãos norte-americanos. De que maneira a regulamentação das redes mudaria o domínio dos Estados Unidos por meio dessas empresas?

– O mais importante é que as redes já são regulamentadas por um indivíduo que é o proprietário. Ele que decide. O algoritmo já é uma forma de regulamentação, sobre isso estamos de acordo. Não há uma regulamentação hoje no sentido social, o que existe é que os proprietários das big techs fazem os seus algoritmos e nenhum de nós tem acesso de fato a lógica própria desses algoritmos. Pesquisas já foram feitas mostrando que para as big techs o discurso de ódio é lucrativo, todo mundo vai ler, aumenta a visualização. Aumentando a visualização, aumenta o lucro das big techs. Isso é uma questão social importantíssima. Veja, pela primeira vez na história da humanidade, hoje, nós estamos o tempo todo conectados em escala planetária. Isso nunca aconteceu. Por exemplo, as big techs têm um controle absoluto sobre certas reações que, por exemplo, já está comprovado por estudos de neurociência. O que acontece quando você está no TikTok ou em qualquer aplicativo e faz scroll down, abaixando a tela para ver novos vídeos? Há uma liberação de dopamina no seu cérebro. Por isso, mesmo nós, que já temos uma certa idade, se não tomarmos cuidado, podemos ficar 40 minutos simplesmente mexendo o dedo na tela, passando vídeos. Os algoritmos são desenhados de tal forma que somos expostos sempre ao mesmo conteúdo, sob a aparência de diversidade, mas é sempre o mesmo tipo de vídeo. Já há regulamentações que têm afetado, inclusive, a saúde mental da população do planeta e causado suicídios, disputas, crises de abstinência etc. Uma vez que certos comportamentos nas redes liberam dopamina, há pessoas que têm crises de abstinência quando são impossibilitadas de acessar as redes sociais. Todos nós já vimos vídeos de adolescentes no mundo inteiro que quebram suas casas, batem nos pais, fazem absurdos, porque foram proibidos de continuar no videogame ou na rede social. Precisamos regulamentar e não devemos ter receio de dizê-lo porque, veja, não estamos propondo censura prévia de conteúdo. Não é possível que o discurso de ódio seja livremente veiculado numa rede social sob a justificativa da liberdade de expressão. Não é possível que uma rede social tenha mecanismos cuja finalidade é produzir algum tipo de adição através da liberação de dopamina. Isso não é aceitável. Então, a regulamentação já existe, mas ela é uma regulamentação que apenas é dominada por um número exíguo de pessoas no mundo inteiro e um número ainda mais exíguo do benefício dos lucros. Os estados precisam assumir as suas responsabilidades e dizer: aqui não, nós vamos regulamentar as redes sociais. Sem implicar censura prévia de conteúdo, não é isto a que eu me refiro, me refiro a uma regulamentação de certas práticas nas redes sociais que não são aceitáveis. Houve no Brasil, há pouco tempo, dois ou três casos de ameaça de chacina em escolas públicas, como ocorre nos Estados Unidos, tudo isto organizado por meio de redes sociais. Isso tem que ser regulamentado, sim.

Uma última pergunta, totalmente fora do tema, para encerrar: não posso deixar de falar sobre a recente repercussão de Machado de Assis nas redes sociais. Você acompanhou? O que você achou disso?

– Em primeiro lugar, a tradução é de fato excepcional. A tradutora, que é Flora Thomson-DeVeaux, é norte-americana, fez mestrado e doutorado em estudos brasileiros. A tradução é resultado do doutorado dela, realizado na Universidade de Brown. Ela traduziu dois livros meus para o inglês, então eu a conheço bastante bem. É uma tradutora absolutamente excepcional, e ela conseguiu junto à Penguin Books algo maravilhoso: suas notas esclarecem o contexto e, por vezes, os jogos linguísticos do Machado. A tradução da Flora, além de ser de excepcional qualidade, oferece para o público em língua inglesa explicações de um aparato crítico que é a primeira vez que de fato uma editora permite isso, acho que foi uma das chaves do sucesso então, notável. Agora, sobre a moça do TikTok, ela não fala nada sobre o livro. É uma coisa rápida, na qual ela diz estar chocada por dificilmente encontrar algo melhor. O vídeo é muito simpático, mas é importante que, em pleno século XXI, nós não sejamos tão colonizados. A importância dessa moça é nenhuma; a relevância do que ela disse é nenhuma, porque ela não diz nada sobre o romance, apenas que teria de aprender português. Nós sabemos que ela não vai aprender português; sabemos que ela não vai estudar português. Se ela tiver que estudar algum idioma, o mais provável é que estude francês, italiano ou espanhol. Isso não muda uma questão básica: o mercado internacional não está preparado para aceitar que um autor brasileiro possa ir além do clichê que eles esperam do Brasil. Eles não estão preparados para aceitar que um autor brasileiro, como Machado de Assis, possa ser um dos maiores romancistas do século XIX em qualquer idioma e que, em boa medida, Machado de Assis hoje é mais interessante do que 90% da ficção que se escreve atualmente. Mas, a moça foi muito simpática, o vídeo é muito simpático, e a tradutora, Flora Thomson-DeVeaux, merece toda a divulgação, porque o trabalho dela é absolutamente fantástico.


Edição: Guto Alves



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