A ativista morreu em maio de 2023. Legado é imenso e inspira luta por defesa de direitos e dignidade das mulheres que se prostituem

Fevereiro de 2021. O movimento numa das entradas do prédio de número 111 da Rua Almirante Barroso, na região central de Diadema (SP), era o retrato fiel das mudanças que haviam começado no final do ano anterior. A primeira delas, sob a tutela soberana da população da cidade, tinha cara de passado, mas apontava inevitavelmente para tempos melhores: o retorno de José de Filippi Júnior ao cargo de prefeito, naquela que seria a sua terceira vitória nas urnas e o início de seu quarto mandato, que dura até hoje.

Com pouco mais de 430 mil habitantes, sendo a cidade mais populosa do Grande ABC, e com o título de cidade mais nordestina do Estado, Diadema era (e ainda é) o lugar ideal para manter a pauta progressista sem ceder ao pragmatismo político. Fiel ao compromisso anunciado em campanha, Filippi logo começou a tirar do papel diversas medidas estruturais que contemplariam boa parte das secretarias com nomes ligados a movimentos sociais.

E é aí que entra na história um dos capítulos mais emblemáticos e representativos da atual gestão do petista. Naquele final de fevereiro de 2021, em meio à intensa movimentação no Paço Municipal, uma senhora negra, vestida de maneira simples, com um lenço de estampa amarrado na cabeça, fumava tranquilamente na calçada.

Enquanto figuras conhecidas da política local se desdobravam para manter a diplomacia ainda sob o efeito das eleições, a imagem potente daquela senhora era solenemente ignorada – sem que isso representasse algum tipo de ofensa ou descaso. Protegida pelo anonimato, ela parecia ainda assimilar o convite feito pelo para comandar a Coordenadoria de Políticas Públicas para as Mulheres, pasta ligada ao gabinete e recém-criada pela nova gestão.

Este repórter também não a conhecia e, pela ausência de isqueiro, decidiu abordá-la. “Que bagunça está isso aqui. Minha vontade é ir embora pra casa”, declarou ela, com o sorriso que, soube depois, era uma de suas reações à timidez. Dias depois fui escalado para escrever o texto que a anunciaria no cargo e o motivo da discrição da gestora que acabara de ser nomeada ficaria evidente: ela nunca se deu bem com salas reservadas e a sua história de lutas havia sido formatada, quase por completo, nas ruas.

Seu nome? Cleone Santos, uma força da natureza que, por escolha própria e por razões plausíveis, preferiu se afastar dos holofotes para defender causas antes negligenciadas até por quem hoje a tem na mais alta conta.

Dona Cleone, como sempre foi chamada, é um marco na luta sindical do país e na árdua missão de conquistar moradia para a população em situação de rua. Mas a sua luta ganhou capítulo importante na história do país quando resolveu brigar por um mínimo de dignidade para as mulheres que se prostituem na região central de São Paulo.

“Faz parte da minha história. Primeiro, estive na militância sindicalista; depois, fui para o movimento de moradia. E, nessa coisa da vida enrolando, eu acabei vindo para a prostituição. Fiquei alguns anos na prostituição. Em 2005, tomei a decisão de que não iria ficar mais, mas também não queria fazer nada dentro da prostituição”, lembrou dona Cleone, em entrevista concedida à Carta Capital naquele mesmo ano.

Até o início da década passada, ela tinha como aliados uma ou outra liderança política e as freiras que atuavam no bairro da Luz. “Eu queria tirar aquelas mulheres do paredão, mas elas ainda não confiavam em mim, nem nas freiras que queriam ajudar. Tive que conversar com cada uma delas até que, pouco a pouco, todas entraram para a nossa ONG.

A ONG pela qual se refere ainda existe e se chama Mulheres de Luz. Funciona num casarão antigo do bairro Bom Retiro, também no Centro de São Paulo. Por lá, passam dezenas de mulheres que tentam deixar a vida das ruas, conseguir moradia e emprego dignos.

“Esse é o trabalho que me trouxe até aqui e seria injusto interrompê-lo. O que eu pretendo fazer é usar o exemplo que tenho com mulheres em situação de vulnerabilidade para ajudar a implantar políticas de acolhimento e inclusão aqui na cidade. Temos todas as condições de fazer isso”, garantiu Cleone, no dia em que a entrevistei em Diadema.

Até o início do ano, Cleone havia deixado um pouco de lado o trabalho na ONG para tentar levar suas ideias e ações a Diadema. Nestes dois anos à frente do cargo, foram muitos os encontros realizados no gabinete, a maioria com pessoas que jamais haviam entrado na Prefeitura.

A mineira, que por 18 anos sentiu na pele as dores que a transformaram numa referência feminista nacional, diz nem saber direito o que é feminismo e que a sua força veio da mãe”. Ela também não sabia o que era feminismo e não se interessava pelo trabalho dos movimentos sociais. Ao mesmo tempo, ela ajudava toda a vizinhança lá do Jardim ABC das mais variadas formas e até hoje é lembrada lá no bairro”, recordou Cleone.

No início deste ano, liguei na Prefeitura de Diadema para tentar falar com ela. Queria entrevistá-la para esta revista. Foi ali que descobri: dona Cleone faleceu no dia 10 de maio de 2023. Estamos há exatos um ano sem uma das grandes lideranças feministas (embora ela discordasse) deste país. Mas sua história jamais se apagará. Cleone é uma mulher de Luz.



`