Três discos mudaram a cara do pop em 1983, pouco antes mesmo do tal do rock brazuca dar as caras. Foi quando Ritchie, Lulu Santos e a Gang 90 lançaram discos combinando apelo pop e sonoridades novas que se tornaram clássicos instantâneos, chacoalhando a sisuda música popular brasileira

Bia Abramo

Em 1982, quem estivesse procurando rock ou pop de extração nacional nas rádios brasileiras, teria de se esforçar muito. No ranking das 100 músicas nacionais e internacionais mais tocadas daquele ano, até que tinha, por exemplo, Rita Lee em sua encarnação cor-de-rosa choque, emplacando dois sucessos entre os cinco primeiros lugares — “Banho de Espuma”, em primeiro e “Saúde”, em quinto. No 14º, um hit da banda Blitz, “Você Não Soube Me Amar”.

De resto, dá-lhe standards do soft rock gringo, algum soul, muita MPB de várias gerações e influência, entremeados a uma espécie de revival da Jovem Guarda ou de reatualização do brega, encarnada em compositores como Dalto, Sérgio Mallandro, Gretchen etc.

Um ano depois, tudo tinha mudado: nos dez primeiros lugares, veríamos “Menina veneno”, de Ritchie na primeira posição, “Como uma onda”, de Lulu Santos na quarta e “Nosso Louco Amor”, da Gang 90 & Absurdettes na décima. E isso em 1983, ano em que ninguém menos do que Michael Jackson tinha “voltado” aos holofotes lançando “Thriller” em grande estilo e já emplacado duas faixas (“Billie Jean” e “Beat It”, na segunda posição e na sétima posição — como a Focus Brasil trouxe na edição 77, de dezembro de 2022.

Esse breve exame de “mais tocadas” de quatro décadas atrás sinaliza uma mudança clara de perspectiva e de sensibilidade de um certo gosto médio na música brasileira. Depois de pelo menos década e meia de hegemonia da tríade samba/MPB/brega como (quase) o único parâmetro de produção de música no Brasil, aqui e ali começava a aparecer uma inquietude mais roqueira e internacionalizada que se traduziu, nesse primeiro momento e num nível de popularidade considerável nesses três nomes: Ritchie, Lulu Santos e Gang 90 & Absurdettes.

Em estreias — Ritchie, com “Vôo de Coração”, e a Gang, com o disco “Essa Tal de Gang 90” — ou não — “O Ritmo do Momento” era o segundo disco de Lulu Santos —, essa turma vinha com uma sonoridade mais angulosa, mais colada no que acontecia “lá fora” e com um tratamento pop, entre o irônico e o ingênuo, completamente diferente do que se tentava até então.

Isso faz de 1983 um ano-marco da new wave brasileira, o que, por sua vez, só foi possível tanto por causa da emergência do punk nos anos anteriores, sobretudo em São Paulo, como pela sensação causada pela Blitz com o disco “As Aventuras da Blitz”.

A banda carioca, formada em torno da agitação cultural dos bares de rock da Zona e do Circo Voador na Lapa, era uma espécie de coletivo anárquico que reunia músicos, atores e atrizes, além de performers — entre eles, os músicos Lobão e Arnaldo Brandão, além do ator Perfeito Fortuna, do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone.

Os shows da banda no Rio de Janeiro, no Circo ou no Noites Cariocas, lotavam, o clipe de “Você Não Soube Me Amar” foi parar nas emissoras de televisão e, quando o primeiro LP foi gravado quase à toque de caixa em 1982 — como lembrou a Focus 43, em janeiro de 2022, a faixa que contava a historinha de uma paquera que deu errado se tornou um hit instantâneo.

Embora precursora e divertida, a Blitz não conseguiu ultrapassar a pecha de sensação de uma temporada. Por sua vez, a seriedade em tons escuros e anárquicos do punk, a precariedade das gravações independentes e autofinanciadas e o alarme que a agressividade musical e estética daqueles garotos e garotos vestidos de preto, com coturnos e cabelos espetados, causava, inclusive nas forças policiais, não os tornava palatáveis para as rádios e televisões, o que ainda era a maneira de atrair públicos mais amplos. Basta lembrar que o primeiro grande festival de bandas punk em São Paulo, no Sesc Pompeia, acabou com pancadaria e detenções, só por conta do temor que as bandas atraíssem gangues ao entorno do bairro de classe média.

O que acontece com Ritchie, Lulu e a Gang, no ano seguinte, no entanto, pavimenta um percurso de formação de público que vai dar, em última instância, na explosão do chamado rock brasileiro a partir de 1984, inclusive com a notoriedade de uma banda originalmente punk, o Legião Urbana, formado a partir da experiência mais radical de Renato Russo à frente do  Aborto Elétrico. Ou seja, o synth pop de Ritchie, as baladas roqueiras com sabor de reggae e ska de Lulu e a novidade poética e musical do pós-punk da Gang 90 abriram caminho para que as sonoridades mais estranhas de Paralamas, Titãs e Legião encontrassem um público ávido por novidades e, sobretudo, por se sentir mais sintonizado com  o que acontecia na Inglaterra e nos EUA pelo menos desde 1977.

O disco “Vôo de Coração” de Ritchie, um inglês radicado no Rio desde os anos 1970, era o que mais se aproximava de um disco de tecnopop entre os três. Com levada simpática, enfeixava canções cuja aparente leveza tinham por trás de si uma construção instrumental toda particular — e que soava nova, excitante, urbana.

“Menina Veneno”, “A Vida tem Dessas Coisas”, “Pelo Interfone” falavam de um Rio de Janeiro urbano, solar, pleno de encontros casuais, quase furtivos (“Não esqueci seu nome, seu rosto, sua voz/ Outro dia, eu te vi numa tarde tão veloz/ Você passou no circular pela praia do Leblon/ Corri atrás, tarde demais, perdi a condição”). Mais que nas canções individuais, que entraram nas paradas (e algumas delas continuam até hoje), “Vôo de Coração” era um disco que introduzia também um padrão de produção fonográfica que destoava do senso comum das gravadoras e do estilo de Lincoln & Olivetti que, de certa maneira, pasteurizavam o som da MPB.

Em “O Ritmo do Momento”, Lulu  Santos fazia uma ponte praiana em um conjunto de baladas entre o romântico e o sexy (“Mas você pode ter certeza/ Nosso amor/ É quase sempre perfeito/ Porque eu só faço com você/ Só quero com você/ Só gosto com você/ Adivinha o quê?”), com levadas ora tributárias do blues mais melódico, ora de um reggae mais suave, e muita, mas muita  personalidade de seu frontman, que encarnou a figura do roqueiro sedutor, com um pé ainda na cultura hippie e outro na (quase) recém-chegada cultura dos surfistas, grupo para o qual compôs um de seus grandes hits até hoje, “Como uma Onda”(Zen-Surfismo).

Como Ritchie, Lulu despontou nos anos 1980 para a carreira solo depois de um certo tempo de estrada. Ambos estavam na banda de rock progressivo Vímana, que ainda tinha a participação de Lobão e Patrick Moráz, ex-tecladista do Yes e chegaram a participar, com a banda, do primeiro Rock in Rio de 1975.

Das três bandas que mudaram a cara do pop brasileira em 1983, a Gang 90 era a mais claramente new wave, a mais experimental e a única paulistana. Liderada pelo poeta Júlio Barroso, que viu de perto a emergência da cena novaiorquina quando morou na cidade no final dos anos 1970, a Gang reuniu músicos das mais variadas origens: de Wander Taffo, do Rádio Táxi, até Sandra Coutinho, das Mercenárias, passando por Tavinho Fialho e Gigante Brasil, que orbitavam em torno das bandas da vanguarda paulista — Tavinho foi da banda de Arrigo Barnabé, Gigante Brasil era da Isca de Polícia que acompanhava Itamar Assumpção.

A Gang 90 se inspirou claramente nos B-52’s, a banda norte-americana que melhor encarnou a new wave, combinando um certo ar rockabilly, vocais estridentes, quase gritados, e muito peso dançante. Barroso e acrescentava a essa fórmula letras entre o nonsense e o puro apelo pop, além de um raro senso de espetáculo, plasmado no trio de backing vocals, as Absurdettes (Alice Pink Pank, May East e Lonita Renaux). 

O disco “Essa Tal de Gang 90”, que emplacou pelo menos dois sucessos, “Nosso Louco Amor” e “Pelo Telefone”, foi o único do qual Júlio participaria — ele morreu aos 30 anos, em 1984, quando ele e sua então namorada, a guitarrista e compositora Taciana Barros, se preparavam para remontar a banda e gravar o segundo disco. A banda prosseguiria com Taciana pela década de 80 adentro.

A janela aberta por esses três discos essenciais de 1983 não fecharia mais. Por meios diversos, o que Ritchie, Lulu Santos e a Gang 90 estavam dizendo, em suas canções, havia um jeito autônomo, brasileiro e diverso de pensar e fazer música, que viria ser a tônica dali por diante. •

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