Perseguição e repressão contra o sindicalismo durante a ditadura militar
Frei Chico
Publicado originalmente no especial sobre os 60 anos do Golpe de 1965 da revista Teoria e Debate, da Fundação Perseu Abramo, este depoimento de Frei Chico traz um testemunho tocante sobre a perseguição a movimentos de trabalhadores organizados durante a ditadura militar e um chamado à realidade das lutas trabalhistas de agora. A Focus reproduz o depoimento em reconhecimento à luta do companheiro Frei Chico para marcar esta semana de luta do Dia do Trabalhador, 1º de maio.
José Ferreira da Silva é irmão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e um dos oito filhos de um casal de camponeses do interior rural do nordeste pernambucano. Conhecido como Frei Chico, foi ele quem convenceu o irmão e companheiro de casa a juntar-se ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Operário e sindicalista nos anos 1960, foi barbaramente torturado na prisão. O pau de arara e os choques elétricos deixaram-lhe marcas profundas. Para esta edição de Teoria e Debate, Frei Chico gravou um depoimento sobre os 60 anos do golpe militar.
O movimento sindical nunca deixou de sofrer repressão. Aí veio o golpe de 1964 para tirar nossos sonhos. Fiquei muito revoltado. O golpe foi decorrência de causas políticas anteriores. Por exemplo, naquela época dos anos 1960, aconteceu a Revolução Cubana (1959) que, para nós trabalhadores que acompanhávamos a atividade dos comunistas à época, a gente vivia entusiasmado com ela.
Eu já acompanhava o movimento sindical, era sócio do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Depois, veio o golpe, mas antes a gente tinha feito uma movimentação intensa. Fizemos uma greve em 1962, quando conseguimos 13º salário. Essas coisas não são ditas por quem ignora direitos, que abre mão de seus direitos trabalhistas, porque foram conquistas alcançadas por meio de muita luta – muita gente morreu, foi presa mesmo na época do João Goulart.
Eu ainda não era organizado em um partido, só no sindicato, mas convivia com os comunistas na empresa em que trabalhava, a Pontal, e aí começaram os protestos. Achávamos que íamos parar o Brasil, que o golpe viria, mas que iríamos reagir. O que sonhávamos era que tínhamos mobilização para reagir. Era um sonho. Não tivemos nenhuma reação. Lembro que tentou-se uma greve geral, algumas empresas pararam, mas não deu certo. Foi muito triste para nós. Eu, particularmente, fiquei muito triste. Alguns companheiros ficaram abalados, como se fosse uma facada. Aí vieram prisões no movimento sindical, dos trabalhadores.
Mas tem algumas coisas que precisamos lembrar ao povo, como, por exemplo, essa questão do uso de um Deus bíblico “anticomunista”. Naquele período foi muito violento. Imagine que trouxeram, inventaram certa vez uma cruz que “desceu do céu”, isso depois do golpe já em andamento. Essa cruz veio, desceu, no Anhangabaú, com milhares de pessoas assistindo. E a cruz desceu de helicóptero. Esse povo, estupidamente, passou a carregar essa cruz a diversos bairros, igrejas.
Eu morava no Ipiranga ainda, na Vila Carioca. Tem uma igreja de Nossa Senhora Aparecida lá, conduzida pelo padre Mário Marques. Eu e alguns companheiros fomos até lá ver: uma fila quilométrica, uma cena ridícula. Era um cara sentado numa cadeira alta, tipo de imperador, com a cruz do lado esquerdo. A pessoa passava e beijava a cruz, beijava a mão do padre. Depois, na frente dele, jogavam dinheiro num cobertor esticado no chão.
Logo em seguida, o jornal Diário da Noite partiu com a campanha “Dê ouro para o bem do Brasil”. Algo como “para salvar o Brasil do comunismo, vamos dar ouro!”, e o pessoal trocava aliança, correntinha de ouro, anel… tudo por uma correntinha de prata. O que deu esse dinheiro? Ninguém sabe, até hoje. Fiquei com ódio de igreja.
Eu já militava no movimento sindical, fui para São Bernardo. A empresa em que trabalhava tinha um delegado de polícia que ficava lá dentro. Uma empresa grande, cerca de três mil trabalhadores. Ele ia lá de vez em quando, na hora do almoço, só para dizer que estávamos sendo vigiados. Mas não era só nessa empresa, muitas empresas tinham esse tipo de gente, policiais e alguns tenentes, sargentos.
Não tínhamos um bebedouro, numa empresa grande, tínhamos que beber água na torneira ou pegar uma vasilha qualquer. Fizemos um abaixo assinado para conseguir um bebedouro de água gelada. Aí chegava nos religiosos, os crentes, e eles não assinavam. Era para pedir água, um bebedor de água, e os caras não assinavam. “Porque nós respeitamos o poder, o Senhor não sei o quê lá”. Eu ficava muito bravo. Passou um tempo, passei a me refazer politicamente dentro do Partidão, comecei a ler mais e participar de alguns cursos. Entendi que ficaria muito isolado se continuasse com essa política, o povo não vai adquirir consciência se você não conversar com ele direto. Muitos não vão mudar, mas alguns mudam. Aí passei a aceitar meu apelido de Frei Chico, que surgiu numa assembleia de sindicato em São Bernardo. Depois, quando fui preso, esse nome ficou, Frei Chico. Engraçado é que os caras queriam me condenar para eu reconhecer que era codinome, não era codinome, era apelido. Peguei o abaixo-assinado e o juiz aceitou como apelido. Mas foi muito triste para nós nesse período. Na Vila Carioca, a empresa Pontal pagava um salário muito bom, a gente recebia em cima da produção do mês, era interessante o pagamento deles. Veio a fracassar o serviço e nesse movimento, fomos para o sindicato. Vim para o sindicato de São Paulo e trouxemos o pessoal, conseguimos reunir 200 pessoas para fazer uma assembleia e abrimos um processo coletivo contra o atraso de pagamento e pelo salário não reajustado, conforme foi combinado antes. Moral da história: fui mandado embora sem direito, porque quando você abre um processo coletivo, tem um cabeça – que fui eu, com 22 anos –, me lasquei, mas os companheiros me ajudaram. Fui trabalhar na Massaro, na Rodovia Dutra.
Depois disso, o sindicato estava sob intervenção, em 1965/1966. Fiz a primeira assembleia com microfone falando para a massa, uns 200 caras. E fui trabalhando em São Bernardo, a gente ia para o sindicato e tinha um interventor. O de São Bernardo era Afonso Monteiro da Cruz. Era um quadro político e naquele momento queria sair do sindicato, havia muita pressão em cima dele, não estava aguentando.
Fiquei em São Bernardo, na Villares, e o Lula também, a gente morava junto. Aqui entra a minha história de tentar convencê-lo a aprender alguma coisa sobre política. Era um trabalho difícil. Não é fácil chegar num cara e falar: vamos comigo a tal lugar. Se fosse uma distração, um show, era mais fácil, mas ir a um sindicato, numa assembleia, não era tão fácil. E consegui fazer isso com o Lula, levei-o ao sindicato umas duas ou três vezes. Passado um tempo, saí da Villares e fui trabalhar numa outra empresa que passou por um corte muito grande. Trabalhava em Osasco e já era sócio em São Bernardo do Campo, frequentava o sindicato em 1966/1967.
Depois veio a chapa do sindicato de São Bernardo e numa assembleia, na época, a gente já tinha uma noção do movimento sindical e político. Eu não era filiado a nenhum partido. Tinha simpatia pelos comunistas, pelo Partido Comunista. E a gente fazia a política deles também. A gente se organizava junto mas, em São Bernardo, eles formaram uma chapa, o Paulo Vidal tinha que sair, tinha que encabeçar o sindicato, e o Afonso sairia. Eles queriam que eu participasse. É um drama na nossa vida, ainda bem que a gente tem essa consciência. Se eu entrasse na chapa, o companheiro que estava no sindicato, representante na minha empresa, ele teria que sair, quer dizer, perderia o mandato. Se ele perdesse o mandato, eu ficava no lugar dele. Só que ele seria mandado embora, porque a empresa não o aguentaria. Moral da história, falei não. Então ele fica e vou embora. Moleque novo ainda, fui para São Caetano.
Nesse período, o Afonso perguntou se não tinha ninguém para indicar. Precisamos de alguém da Villares (mil trabalhadores, era grande). Aí falei: tem o meu irmão. Vamos conversar com ele? Vamos tentar. Ele já namorava a Lourdes. Ele acabou indo e a gente ficava tomando uma cachacinha no Bar da Rosa. E aí o Lula saiu e surgiu no movimento sindical, nesse ambiente, cachacinha e conversa para convencer. Depois que o Lula entrou, vim morar e militar em São Caetano e montamos uma base do Partidão. Foi complicado, porque tem o drama de família. O Lula perdeu a mulher dele, a Lourdes morreu. Eu pagava aluguel e fui morar com ele. Eu, minha mulher, minha mãe e meu filho mais velho. Lula ficou viúvo um tempo, ficou mal no começo, depois conseguimos levá-lo para o sindicato, para ajudar, porque ele estava muito abalado por causa da perda da mulher e do filho. Foi um momento muito difícil da vida dele.
A gente continuava militando no movimento sindical e continuava atuando junto com o Partidão. Nos anos 1970, entrei num carro Volkswagen, fusquinha de um amigo que mora na Praia Grande até hoje com o pai dele (que era do Partidão) e um assistente da região, o Emílio Bonfante de Maria. Emílio era comandante da Marinha Mercante, muito procurado, e ele era nosso assistente. Aceitei me filiar ao partido clandestinamente. Não tinha ficha, é lógico. Aí tem uma passagem engraçada que tenho que contar para o pessoal ver como a vida é engraçada. Pedro Daniel era crente. Dessas igrejas mais conservadoras, tradicionais. Estávamos presos no Doi-Codi. Pedro Daniel foi muito torturado também. Todo mundo, ali não passava ninguém sem ser torturado. E um dia estávamos numa sala grande, nos puseram ali e não cabia 20 pessoas.
Eu fui preso em 1975. Nesse dia, o Pedro Daniel estava lá. Eles nos deixavam ali e iam torturando outras pessoas. Tínhamos um companheiro em Santos que foi muito torturado na nossa frente, na cela. Jogavam um balde d’água nele e o faziam nadar no chão, todo ensanguentado. Ele casou com uma companheira advogada de Santos. O Cebola foi uma das vítimas. Não o mataram ali, mas ficou com muitas sequelas. E o Pedro Daniel vendo tudo isso, uma hora alguém pediu um cigarro para um torturador. Nessa cela estavam o Zé Roberto Melhem, o Pedro Daniel, Osvaldo de Caminato. O Pedro Daniel era o único que não fumava. Eu também não fumava. Aí pediu um cigarro ao carcereiro, que não quis dar. E ele falou, “então o senhor me arruma uma bíblia, porque preciso ler a bíblia”. O carcereiro ficou muito bravo. Sei que o levaram, foi interrogado de novo, deram um pau. Acabaram dando um pau no Pedro Daniel só porque ele pediu uma bíblia. Particularmente, eu achava absurdo pedir uma bíblia, mas ele pediu, fazer o quê?
A ditadura continuava existindo, havia uma briga danada e nesse período, o movimento sindical tinha se organizado. Quero voltar um pouquinho no tempo. Nos anos de 1973/1974 foi descoberto em São Bernardo do Campo a indústria automobilística e tinha o Delfim Netto [ministro da Economia] orientando a não dar aumento. Sei que foi roubado o 13% do salário do trabalhador, pois tudo era decidido pelo governo, não tinha negociação direta. O aumento salarial era o governo quem decretava. E aí foi descoberto, graças ao Dieese, que tínhamos sido roubados. Começou o movimento sindical a crescer em cima disso. E São Bernardo fez uma assembleia monstruosa, naquele tempo o Lula ainda não era presidente. Outras categorias fizeram várias assembleias, mas não conseguiu. Aos pouquinhos recuperaram isso. Foi passando o tempo, em 1976/1977, a gente criou um movimento chamado MIA (Movimento Antiarrocho Salarial). A gente articulava isso, o Partidão e outros companheiros da igreja ligados ao Dom Paulo. O MIA, para fazer a campanha, recuperar as perdas salariais e conseguir influenciar no aumento salarial, se uniu ao movimento sindical. Esse movimento foi estourado na Praça da Sé, em 1968, quando fizemos um ato político unindo até o governador da época, que era o Abreu Sodré. Foi um grande ato na Praça da Sé. Os companheiros mais radicais do movimento operário, ligado à Pastoral da Terra, vieram prontos para tocar fogo no palanque.
Manoel Fiel Filho frequentava esse sindicato, era militante do Partidão. Eu militava em São Caetano há muito tempo. E o Fiel foi uma das vítimas da prepotência do sistema.
O Partidão tinha sofrido derrotas ferrenhas. O Vladimir Herzog morreu no sábado e provocou uma guinada na sociedade brasileira e parte da esquerda democrática, que começou a forçar a barra da anistia e em um monte de coisas, o regime foi cedendo. Houve uma reunião chamada Trilateral, nos anos 1970, quando a burguesia do mundo, a elite dominante que tinha implantado as ditaduras na América Latina, reconhece que não dava para manter ditaduras e começaram a pregar o fim desses regimes. Entenderam que era mais fácil dominar de outra forma, não com prisão, morte, exército. Entramos nesse processo, mas pouca gente acreditava. A gente sentia que tinha muita gente da elite que estava se afastando do regime.
Vem a anistia política. Nesse período, os sindicatos se prepararam muito bem. Tem a Petrobras, no Rio, e companheiros de outros estados. São Bernardo fez um trabalho, porque Lula entrou no sindicato, mas nunca aceitou ser do Partido Comunista. E aí veio essa baita movimentação de São Bernardo, que começou na Scania, e isso mudou a história do Brasil. Mas nós, do Partidão na época, tínhamos uma visão um pouco atrasada, estava na clandestinidade. E é lógico que nesse período surgiram lideranças novas, quadros novos. E perdemos um pouco o bonde da história, o Partidão tinha quadros bons e interessantes, que ficaram a reboque do PT e da CUT, porque o nosso partido tinha uma visão de aliança com pessoas que não tinham mais credibilidade.
Conseguimos a democracia, em parte, conseguimos eleger presidente da República operário. Imagina isso no mundo? Tem gente que não compreende essas coisas. Qual é o país do mundo que elegeu um presidente de origem operária? Só nós. Agora eu digo que graças à urna eletrônica, se não fosse assim, não elegia ninguém, porque o mapa eleitoral com cédula, era estupidamente manobrável. Vejo o modelo norte-americano e me assusta. Até hoje não entendi aquilo e agora mesmo eles estão passando um processo muito sério, porque os caras estão arrebentando o próprio sistema.
Tem umas coisas que estão acontecendo no mundo e não estamos entendendo. Vejo com muita preocupação nosso futuro. Estamos até hoje amarrados, os americanos não abrem mão da gente, somos uma reserva estratégica deles. Não entendemos isso, alguns companheiros não entendem isso. Ficam brincando.
Como é que pode um cara ter uma motocicleta, trabalhar entregando pizzas e achar que é autônomo? A carteira profissional que tínhamos como garantida está indo para o espaço, vamos ter que inventar arrecadação de dinheiro para pagar as aposentadorias. Como manter esse povo trabalhando e sustentando, onde vamos arrumar dinheiro para isso? Não terá sem alguma contribuição.
Sessenta anos depois, eleito democraticamente, Lula sofreu uma tentativa de golpe, inclusive organizado por militares. Mas você vê a conexão, enxergar que a direita brasileira sempre existiu, sempre teve direitista e continua tendo Bolsonaro. Você vê a conexão entre o golpe de 1964 e a tentativa de golpe de 2023. Tem diferença de momentos, mas é a mesma teoria. O que não tiveram dessa vez foi apoio. Conseguimos segurar um pouco, mas eles usaram os mesmos métodos de 1964.
O estudante não quer mais nem ler um livro. Estamos passando por uma fase muito difícil. O movimento sindical que ainda resta tem que entender que é preciso martelar no trabalhador que o sindicato é dele, a garantia que tem de trabalho, de horas trabalhadas… é tudo dele. Não estamos fazendo isso direito. Eu me revolto, não acredito que estamos passando por isso. Estamos tentando com a mídia alternativa, porque essa imprensa que temos influencia o Brasil.