O tenente-coronel da reserva Paulo José Ribeiro da Silva, o Paulo Ribeiro ficou feliz ao ser convidado e anunciado como pré-candidato do Partido dos Trabalhadores na cidade de Taubaté, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. “O PT existe em mim antes mesmo de o PT existir”, exaltou. Paulo Ribeiro vem ganhando destaque nacional no debate da segurança pública: defende abertamente um debate franco sobre a atuação das polícias e a efetiva implementação do SUSP, o Sistema Único de Segurança Pública, defendido pelo ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, que prevê integração entre União, estados e municípios e tece críticas às tentativas do bolsonarismo de arregimentar a Polícia Militar

Alberto Cantalice e Fernanda Otero 

Hoje coronel reformado, Paulo Ribeiro chegou a Taubaté em 1981, vindo de Teresina, no Piauí. Logo foi admitido como soldado pelo 18º Batalhão de Polícia Militar, em 1984. Não parou de estudar e seguiu carreira militar, interessado cada vez mais na discussão da segurança pública. 

Destaca-se na sua carreira o fato de ter assumido o posto de comandante do 1º Batalhão da Rota logo após o massacre do Carandiru, entre 1993 e 1994. Em seguida, assumiu a Corregedoria da PM e, depois, o 5º Batalhão de Polícia Militar, no interior. 

Quando coordenou o curso em que ele próprio se formou décadas antes, em Taubaté, enfrentou tabus e adotou medidas pouco convencionais: alunos deixaram de ser tratados por número, mas sim por seus nomes. Foi também responsável por acabar com a demissão de policiais que engravidassem durante o curso.

Mestre em Ciências Políticas, voltou à cidade de Taubaté e retomou sua atividade militante depois de alguns anos plantando, cultivando a terra e escrevendo poemas no Piauí para tomar um pouco de ar fresco: “Me escondi lá por cinco anos para uma desintoxicação, para voltar a ser um cidadão sem a carapaça de poder do Estado”, desabafa. 

Ao ser convidado para representar o PT nas urnas em 2024, aceitou o desafio de ser pré-candidato a prefeito de Taubaté. Em entrevista à Focus Brasil, coronel Paulo Ribeiro, como é conhecido, falou sobre os desafios da segurança pública no país, em especial em São Paulo, com Ricardo Nunes (MDB) na prefeitura da capital e Tarcísio de Freitas no governo do estado.

Vamos iniciar esta conversa com uma pergunta direta: por que o PT?

É uma longa história: o PT existe em mim antes mesmo de o PT existir. Em Teresina, desde a minha adolescência, orientado pela minha mãe, eu já integrava movimentos. Era ela uma mulher analfabeta, autodidata, que aprendeu a ler observando as tarefas dos filhos dos patrões e, mais tarde, tornou-se professora pelo Mobral, o Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado pelo regime militar para se contrapor ao método Paulo Freire. Desde então, na minha adolescência, militava nos movimentos sociais em Teresina, até que, em 1979, começou a mobilização para criar um partido de trabalhadores no Brasil. Com 16 anos, eu fugia de casa à noite, escondido, para participar das reuniões clandestinas no fundo da casa paroquial de uma igreja dos padres italianos. Daí, a coisa aconteceu, e virou história. Vim para São Paulo, entrei na PM e, a partir daí, minha militância entrou num estado de letargia até que deixei a corporação. Mesmo dentro da PM, eu criava problemas; sou o único policial do mundo que foi preso por três dias por causa de teatro, pois achavam que era uma afronta à instituição. A própria Lei do Regime Especial de Trabalho Policial, que prevê como exceção o ensino e a difusão cultural, não foi levada em consideração. Deixei a PM, passei para a reserva, fui embora para o Piauí e me escondi lá por cinco anos para uma desintoxicação, para voltar a ser um cidadão sem a carapaça de poder do Estado. Depois de cinco anos, voltei e fui chamado para disputar a vice-prefeitura de Taubaté. Fomos para o segundo turno, mas perdemos a eleição para o atual prefeito, que está com 90% de rejeição. No ano seguinte, entrei para o PSOL, cerrei fileiras e tive um papel fundamental no enfrentamento à tentativa de golpe de 7 de setembro de 2021; depois, entrei para o PSB. Agora, numa conversa, o PT me convidou, baseado na minha atuação no movimento Fora Bolsonaro — aceitei, e isso está bugando a cabeça da direita e da extrema-direita. A figura de um coronel no PT gerou uma nota no Painel da Folha com o título “Rota Vermelha”. Eu adorei isso.

Entrando no tema do qual você é originário, que é a segurança, como você avalia esse primeiro ano da gestão de Guilherme Derrite e Tarcísio de Freitas na segurança pública em São Paulo? A demanda por segurança pública continua muito forte, não só na cidade de São Paulo, mas também no entorno, no Vale do Paraíba, como é o caso de Taubaté. Como você avalia?

Primeiro, eu avalio como caótico, porque dizem ao policial o que ele quer ouvir, mesmo que seja mentira. Então, esse discurso de onipotência, característico do bolsonarismo para as forças policiais, é o que está sendo a causa de tudo. E depois, na situação de risco, essas autoridades se eximem e sobra apenas para a base das polícias, e isso eu sempre tenho alertado. Agora mesmo, o Ministério Público denunciou três policiais em uma ocorrência no Guarujá, sendo que um deles foi aquele soldado que morreu, o soldado Samuel Wesley Cosmo, que faleceu diante das câmeras lá no Guarujá. Realmente, é um discurso vazio e defende uma política que nós, em sã consciência, não podemos aceitar, que é a política do enfrentamento ao crime, do confronto, e isso não resolve. Nós não temos condição, uma força – a força policial, a força pública não tem estrutura para lutar contra o crime usando as mesmas armas que o crime usa. Nós temos que investir em inteligência policial e inteligência financeira, senão não temos condição. E só lembrando mais uma coisa, por que Taubaté é fundamental? Terá que debater segurança pública sob uma nova ótica, porque enquanto a capital, São Paulo, tem quatro homicídios por grupo de 100 mil, Diadema tem dois homicídios por grupo de 100 mil, Taubaté tem 11. Então, é preciso redefinir as políticas públicas de segurança e não pensar que somente uma força militarizada, uniformizada, seja exclusivamente a responsável pelas ações de segurança pública, que não são apenas questões policiais. Envolve muito mais.

O Ministro da Justiça Ricardo Lewandowski mencionou que um dos objetivos do governo Lula é a criação do SUSP, o Sistema Único de Segurança Pública, articulado financeiramente entre União, estados e municípios, semelhante ao SUS na saúde e ao FUNDEB na educação. Você acredita que essa integração entre governo federal, estados e municípios no SUSP pode ser eficaz para a segurança pública no Brasil?

Nós temos três prioridades dentro da administração brasileira: saúde, educação e segurança.  A saúde tem o SUS, e a educação tem o FUNDEB; ambos são assistidos por ministérios próprios. A segurança, porém, embora tenha o SUSP, que de direito já existe, de fato, não funciona. Nós precisamos rever isso, pois o crime evoluiu, tornou-se transnacional, e não podemos permitir que cada estado decida arbitrariamente o que é e o que não é crime, sem uma política reguladora, sem uma escola nacional de polícia, sem uma escola nacional de inteligência. E, quando vamos para o âmbito municipal, a segurança pública não é feita somente pelas forças policiais, sejam elas municipais ou estaduais. O que eu defendo, até mesmo dentro do meu mestrado profissional, é a prevenção primária da violência pela educação. Prevenção primária é o que realmente resolve o problema que enfrentamos hoje, porque se matar infratores resolvesse o problema, veríamos que os estados que mais matam, teriam resolvido. Contudo, eu digo algo que meus colegas comandantes odeiam que eu diga: uma polícia ostensiva, quanto mais mata e mais prende, mais ineficiente é, porque ela não deve lidar apenas com a consequência do que busca evitar. E, além da força policial municipal, nós precisamos de órgãos da prefeitura que vão cuidar de fatores que podem gerar alguma ocorrência de violência, como iluminação, uma via esburacada que diminui a velocidade dos carros, a falta de programas de valorização humana, de assistente social, com as pessoas em condição de rua, que nós vemos em Taubaté começar a aumentar, e numa visão tosca, colocam a guarda municipal para expulsar essas pessoas da cidade. Quando nós temos que entrar com políticas sociais de várias secretarias, o último recurso que tem que se usar, que é o primeiro que estão usando, é a força policial. Isso é crucial, sem uma visão humanizada, sem uma visão humana da administração, esses problemas não serão resolvidos e a segurança pública continuará com esse discurso que encanta. Encanta dizer que bandido bom é bandido morto, e não dizer que são pessoas. O infrator é um ser humano que vai responder criminalmente e que vai voltar para a sociedade, mas é mais fácil dizer vamos acabar com a saída de presos, por exemplo.

Você ganhou notoriedade nacional por sua oposição aos eventos do dia 7 de setembro de 2021. Isso o projetou para o cenário nacional. Qual foi o momento decisivo ou a “gota d’água” que o inspirou a liderar e se posicionar publicamente contra os acontecimentos no país?

Isso aconteceu em 2021, quando eu estava filiado ao PSOL e comecei a perceber uma movimentação muito estranha. Eu estava quieto, até com barba, e disse a mim mesmo: eu não aceito isso, porque sou um policial, mas defendo muito a instituição séria. Eu faço críticas a pessoas. E pensei: não, isso não está certo, esse cara está querendo usar a base da Polícia Militar, porque se a PM de São Paulo cai, o Brasil inteiro cai. Então, fui até uma produtora de um amigo, rabisquei um texto na hora, gravei, e o vídeo de um minuto foi solto às 19h30 do dia 24. Por volta de 21h30, começaram a chegar os retornos de todo o Brasil e, às 22h30, alguém de Brasília falou que meu vídeo estava no gabinete do Bolsonaro. No dia seguinte, ele se espalhou, e a Folha fez uma entrevista de página inteira comigo; as lives, acho que no 247, tiveram milhares de pessoas assistindo, porque o país estava louco, em comoção, todo mundo assustado, e eu resolvi tomar a frente, uma vez que o governador Doria silenciou, assim como o comando da PM. Quando eu tomei a frente, eles começaram a me ver como alguém capaz de trazer a tropa, impedindo que ela fosse para essa manifestação.

Como é que você avalia esses efeitos deletérios do bolsonarismo dentro das polícias, principalmente da polícia militar? Você acha que esse estímulo, essa coisa deles de defender uma segurança é na verdade, só discurso?

A primeira coisa que digo é que pior do que andar armado é a sensação de poder armar-se. Essa sensação de que posso me armar me induz a usar a arma como primeiro recurso. Quando nós liberamos, e falo “nós” no sentido genérico, a compra de armas em todo o país, vimos a desgraça que isso causou. Pergunto então: qual cidadão precisa de quatro fuzis? Qual é o objetivo? Por que temos caçadores? O que é caça recreativa? São absurdos. Recentemente, tivemos o caso de um cidadão “de bens” — e não “de bem” — que, confrontado por uma dupla de policiais em sua porta, os atacou, matando a policial. E não vimos nenhuma autoridade do governo se pronunciar. Essa é a situação. Desde o início, eu alertava os policiais: cuidado com essa ideia de armar a população, porque chegará um momento em que essas pessoas ricas, que fogem do padrão de suspeito que temos em mente, sob o efeito de forte emoção ou de alguma substância, vão reagir contra nós, eu disse isso há alguns anos. E é isso que vem acontecendo. Um cidadão pobre, na maioria das vezes, em situação normal, jamais sacaria uma arma contra um policial, porque ainda o vê como uma autoridade ou um poder coator ao qual não pode resistir. Mas o rico, não. Vemos o exemplo do Roberto Jefferson, um ex-parlamentar Isso é característico. Portanto, sou contra essa política armamentista desenfreada, que só vai alimentar o crime e as milícias, como estamos vendo cada dia mais.

Como você se posiciona diante da crítica de falta de experiência, já que não ocupou cargos políticos ou não cumpriu mandatos anteriormente?

Isso é uma tática, um discurso que os oportunistas usam para manter as pessoas íntegras fora da política. Qual é a minha experiência? Minha experiência consiste em 30 anos administrando um serviço extremamente essencial e zelando pela vida, tanto de quem presta o serviço quanto de quem o recebe. Essa é a minha justificativa. E eu, seguindo a lei de Deus — não pretendo trazer religião para o debate —, acredito que devemos adotar um princípio básico, um dos Dez Mandamentos: Não roubarás.

Com tantos problemas na cidade, com uma dívida astronômica, problemas na saúde e educação, alguns candidatos começam a apresentar propostas que são, tradicionalmente, propostas petistas. Como apontar isso aos eleitores?

A primeira coisa a dizer é que não me convidaram para essa festa de afundar o município. Então, tudo o que aconteceu leva a população a um discurso que afirma: “a esquerda não pode governar Taubaté porque vai afundar a cidade”. Espera aí, mas a cidade vem afundando há 40 anos. Portanto, o primeiro ponto a ser dito é: nós não somos responsáveis pela crise de Taubaté, mas temos a solução para Taubaté, baseada nas políticas públicas do governo federal, do jeito PT de governar. Outro ponto a destacar são os programas, principalmente os programas de transferência de renda do partido, além das verbas federais destinadas à cidade, que estão lá na transparência, no Casa 13. São esses os benefícios que o governo federal tem proporcionado ao município e que precisamos explorar, que não são divulgados. É dessa forma que vamos conversar e lembrar que quem tem a chave do cofre e pode nos ajudar é o governo federal.

No contexto da educação, o PROERD desempenhou um papel significativo. Considerando a situação educacional em Taubaté, assim como em outros setores, saúde sendo a prioridade, seguida pela educação, você tem algum projeto específico que possa promover uma mudança cultural no município? Há planos para incorporar essas experiências?

Quando eu fiz o meu trabalho no mestrado profissional sobre prevenção primária da violência pela educação, destaco dois pontos: o PROERD. Dessa forma, percebe-se claramente a minha simpatia, pois dentro da teoria do crime, criei o triângulo do crime, composto por três atores: produção, comercialização e consumo. Quanto à produção, não podemos atacá-la, pois ninguém produz cocaína dentro do Brasil. Em relação à comercialização, ao prendermos o traficante, surge imediatamente outro na fila, que é o que a polícia militar faz, outros dez já estão na fila, por causa do salário. No entanto, se focarmos no consumidor em um trabalho de médio e longo prazo, como é o Proerd, obteremos sucesso. Em Diadema, onde estou Corregedor-Geral da Guarda Municipal, a convite do Dr. Benedito Mariano, que é uma sumidade neste assunto de polícia cidadã, desenvolvemos um programa chamado Jovem Aprendiz, posteriormente transformado no programa Manoel Quirino e, por fim, em um Programa Nacional pelo ministro Luiz Marinho. O objetivo é preencher o vácuo deixado pelo Estado, agora ocupado pelos poderes paralelos. Neste sentido,  o programa Pé de Meia do governo federal que concede R$200,00 mensais aos estudantes é uma iniciativa essencial para jovens da periferia. Um professor conhecido meu que está dentro da sala de aula me contou que de repente, um dos alunos grita: caiu! Eles acompanham pela conta e é uma festa quando entra o dinheiro.  Se para nós R$200,00 não é pouca coisa, para esses jovens da periferia, faz muita diferença. Recentemente, compartilhei no meu perfil um vídeo de Paulo Freire, no qual ele aborda como ter escolas alegres com professores tristes? Nós devemos cuidar da saúde mental dos alunos e dos professores também para trazer equilíbrio tanto físico quanto mental para esses jovens para que a gente não tenha problemas, porque já tivemos casos de suicídio em escolas de Taubaté.

Você falou que Taubaté tem um índice de homicídio de 11 por 100 mil, mais do que outros municípios considerados maiores e mais problemáticos da região. Por que esse índice tão alto?

As pessoas, sem analisar, costumam atribuir o aumento da violência aos presídios. No entanto, o exemplo de Lorena, com índice de criminalidade superior ao de Taubaté e sem presídio, refuta essa ideia. Em Diadema, houve um notável progresso: em 2001, registrava 237 homicídios por ano, mas em 2022, esse número reduziu para 22. Enquanto isso, Taubaté passou de 43 para 37 homicídios no mesmo período. O que Diadema fez de diferente? Além de várias políticas implementadas, incluindo a (operação) “Fecha Bar”, cada homicídio era minuciosamente estudado — características, horário, perfis dos envolvidos, modus operandi — permitindo uma ação direcionada de acordo com as motivações subjacentes. A postura do secretário de segurança anterior, de que “está morrendo só o bandido”, é irresponsável. A abordagem deve ser caso a caso, analisando individualmente as circunstâncias para atacar os fatores envolvidos de forma efetiva.

Não podemos deixar de tratar dos altos índices de suicídio dentro da Polícia Militar. Temos discutido isso com muitos especialistas e ouvido muita gente sobre esse tema. A que você atribui esses números tão altos?

Você tocou em um assunto que eu adoro discutir. Desde 1989, tenho acompanhado de perto essas questões, e agora estou analisando um trabalho do novo chefe do CAPS – Centro de Apoio Psicológico e Social da Polícia Militar. Nos últimos 20 anos, registramos entre 500 e 600 suicídios apenas na Polícia Militar de São Paulo. Na gestão atual, em apenas 16 meses, acredito que já ultrapassamos 40, beirando os 50. Mas não se discute isso, porque dizem que se a gente ficar discutindo, vai aumentar os índices. Então se a gente discutir feminicídio, vai aumentar o feminicídio? É uma alegação idiota. Estamos enfrentando dois desafios principais: uma questão doutrinária e uma questão estrutural. No que toca à questão doutrinária, durante o processo de seleção, formação e treinamento, constrói-se a ideia, de forma bastante direta, de um “super-homem” que não tem sentimentos, necessidades e existe apenas para sua função. Assim que entram na corporação, os novos membros recebem uma orientação clara: esquecer os amigos, pois dali em diante, esse é o novo mundo deles. A figura materna, representada pela imagem convencional de uma mulher de óculos, é substituída pela bandeira no mastro, é por ela que você vai chorar.  Aí você começa a desconstruir o indivíduo; surge então a pressão de que, para ser considerado policial, precisa-se matar três ou quatro pessoas. Isso faz com que o jovem inicie um processo de despersonalização e perda de identidade, entrando em um ciclo de humilhações e perda de dignidade. Embora aprendam coisas boas dentro da academia, ao chegar à rua, os mais antigos dizem para esse jovem esquecer tudo que aprenderam, pois “é na rua que se aprende a ser policial”. Essa subcultura prevalece nas forças policiais. Eu acho que vocês nunca ouviram essa comparação. A Praça, quando entra, entra para ‘ser polícia’. O aluno, quando entra para ser oficial,  entra para seguir carreira. E onde está a diferença? Está no cotidiano; a frustração pode ser diária para alguns, enquanto outros apenas enfrentam essa frustração após décadas quando percebem se seus planos de vida prosperaram ou não. Mas como você foi condicionado a não ter  sentimentos, quando as emoções afloram, elas começam a ser represadas, até que em um determinado momento, você explode.  Para resolver isso, sugeri alterações durante uma live com Maria do Rosário pelo DCM. É essencial ajustar o artigo 83 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que estabelece que o ensino militar será regido por lei específica. Atualmente, cada força policial formula sua própria lei e, no caso da PM de São Paulo, o ensino é gerenciado pelo comandante-geral. Eu acrescentaria um parágrafo neste artigo para que o gerenciamento do ensino seja realizado por uma comissão que inclua membros da comunidade e da sociedade civil. As matérias técnicas continuarão sendo lecionadas nas instituições por profissionais internos, mas as questões sociais devem ser encaminhadas para ambientes universitários, conduzidas por professores civis. Esta abordagem pode promover uma formação mais balanceada e integrada à realidade social, contribuindo para uma visão mais humanizada dentro das forças policiais. Essa é a questão doutrinária. 

Vamos abordar agora a questão estrutural, um tema muito mais amplo. O sistema é muito bem distribuído, capilarizado pelo Estado inteiro, são mais de 50 NAPES, mas tem defeitos. Todos os psicólogos são policiais militares, o que cria um dilema: como um psicólogo pode tratar alguém que vê como parte de sua família”? Nós somos condicionados a não ver no outro alguém além do uniforme, além da farda. Então o psicólogo sempre vai ser um PM para mim. Por exemplo, se eu sou um comandante e já disciplinei um cabo que agora é psicólogo, como posso vê-lo de outra forma senão como o cabo que já pune? Assim, o PM se fecha e não procura ajuda. Um outro estigma muito comum é a tropa rejeitar trabalhar com alguém que foi a um psicólogo, que acaba sendo rotulado como “louco”. O comandante olha para ele e diz: “tá enrolando”. O que esse PM faz? Ele se fecha, até a hora em que ele explode, para a surpresa de todos. Eles dizem: nossa, eu não sabia! A última comandante do CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, disse que o sistema de saúde mental atende menos de 1% do efetivo, o que significa aproximadamente 800 PMs por ano – um número extremamente baixo considerando a necessidade. Faço um desafio: quantos dos policiais que cometeram suicídio estavam realmente sendo acompanhados por esse sistema? Pode ser que nenhum, porque eles não procuram. A saúde emocional de um policial repousa sobre dois pilares fundamentais: o convívio familiar e a estabilidade financeira. Sem estabilidade financeira, o governo opta por “comprar” as folgas dos policiais, compelindo-os a trabalhar horas extras quando deveriam estar com suas famílias. Isso mina ainda mais qualquer equilíbrio emocional, pois eles sacrificam o tempo que deveriam passar descansando ou com entes queridos, adicionando mais estresse e isolamento às suas vidas. Esse contexto torna ainda mais complexa a gestão da saúde mental dos policiais. É uma situação realmente difícil.

Existe um sentimento generalizado, possivelmente devido à formação policial, de que as forças de segurança precisam de reeducação para não distinguirem entre brasileiros de diferentes categorias sociais. Além disso, é essencial que haja uma cultura antirracista nas polícias de todo o Brasil. Como você vê essa questão?

A primeira coisa a ser entendida pelo policial é que ele não é um nobre, mas sim um trabalhador. Ele pertence à mesma classe social daquele que pega o metrô ou o trem às quatro da manhã com a marmita fria. Quero levar essa reflexão ainda mais adiante. Quando eu coordenava a escola de formação em Taubaté, houve um dia em que organizei os alunos para sentarem-se no pátio durante a educação física, vestidos apenas de calção, sem camisetas. Olhando de trás, observei a diversidade de tons de pele, a mesma matiz que vi em outra ocasião, durante uma revista num grande presídio em Tremembé, a Penitenciária 1, onde os presos também estavam vestidos de maneira semelhante. Essa constatação me levou a uma conclusão: a Polícia Militar recruta seu efetivo das mesmas áreas geográficas de onde o crime recruta os seus. É uma realidade difícil de aceitar, dolorida, mas o policial precisa tomar consciência disso. De que quem precisa dele é aquele cidadão que tem a mesma origem dele. E não o rico, porque o rico não precisa de polícia.

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