Fernanda Otero

Doze anos após minha primeira disputa eleitoral, o deputado estadual (MT) Lúdio Cabral se prepara para concorrer, pelo Partido dos Trabalhadores, à prefeitura de Cuiabá, capital de Mato Grosso. Em entrevista à Focus, Lúdio conversou sobre sua trajetória, a carreira como médico e político e os desafios da corrida eleitoral.  “Minha militância na saúde e os ensinamentos da minha família me trouxeram para a política. Sou filho de trabalhadores. É deles que trago o importante ensinamento de dedicar-me ao estudo e às pessoas, sem nunca esquecer o caminho que percorri”. 

Lúdio Cabral, atualmente deputado estadual em segundo mandato pelo estado do Mato Grosso, é o pré-candidato do Partido dos Trabalhadores a ocupar o cargo de prefeito a partir de janeiro de 2025 em Cuiabá, um a capital que combina uma rica história cultural com um expressivo crescimento econômico. Casado e pai de cinco filhos, o médico sanitarista escolheu a cidade para realizar o sonho de estudar em uma universidade pública, e tem um propósito bem definido de “fazer da questão ambiental o ponto central do debate eleitoral”.

Economicamente, Cuiabá destaca-se como um polo de grande riqueza, principalmente devido à agropecuária, um setor forte na região e reconhecida como uma das maiores produtoras de soja, algodão e gado do Brasil. O médico ressalta que isso representa “a maior de todas as contradições”, já que o modelo de exploração econômica presente no território, com latifúndios, monocultura, produção voltada para a exportação sem contribuição de impostos, uso excessivo de agrotóxicos e a destruição do Cerrado, da floresta e do Pantanal, demandam atenção e abertura ao diálogo. Ele reflete que este é “o paradoxo que nossos governos sempre enfrentaram e continuam enfrentando”.

Filiado ao PT desde a década de 1990, ex-vereador e segundo colocado nas eleições municipais de 2012, Cabral também foi candidato a governador do estado em 2014. Ele está ciente dos desafios políticos e econômicos que terá de enfrentar para conquistar a maioria nas urnas em outubro de 2024.

Para começarmos, o senhor poderia se apresentar aos nossos leitores, passando por suas origens e formação?

Sou Lúdio Cabral, médico sanitarista, nascido no interior de Goiás fui criado em uma cidade chamada Cachoeira Alta. Vim para Mato Grosso menino, em 1985, morar em uma cidade onde nasce o Pantanal, Cáceres, às margens do Rio Paraguai.  Foi lá que completei o meu segundo grau e, aos 14 anos, obtive meu primeiro emprego com carteira assinada como bancário, função que exer­ci até meus 18 anos. Me mudei para Cuiabá para realizar o sonho que eu alimentava desde a infância: entrar em uma universidade pública e me formar médico. Com felicidade e honra, fui aprovado no vestibular de medicina na Universidade Federal de Mato Grosso em 1990, graduando-me em 1996. Ainda nos primeiros anos fiz uma escolha profissional pela saúde pública. Como bolsista de iniciação científica, estudei o início da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) na faixa de fronteira do estado de Mato Grosso entre 1990 e 1992. Optei pela saúde pública e concluí a residência médica em Medicina Preventiva e Social na USP em Ribeirão Preto. Após ser aprovado em um concurso público aqui em Cuiabá, comecei a trabalhar em 1996 em um posto de saúde na periferia da cidade. Tenho 27 anos de militância como médico e servidor público na saúde pública, atuando na linha de frente do sistema de saúde. Fui sindicalista e dirigente do movimento estudantil. Me filiei ao PT em 1999 e, em 2004, disputei minha primeira eleição para vereador, permanecendo oito anos no cargo em Cuiabá. Apesar de não termos vencido as eleições para prefeitura e governo do estado, os resultados foram muito positivos. Em 2018, assumi pela primeira vez o cargo de deputado estadual, sendo reeleito em 2022. Hoje, com muita honra, sou pré-candidato a prefeito pelo PT, 12 anos após minha primeira disputa. Comecei com 4% nas pesquisas e terminei o primeiro turno com 42%, quase vencendo as eleições. Fomos superados pelo poder do dinheiro no segundo turno. Minha militância na saúde e os ensinamentos advindos da minha família me trouxeram para a política. Sou filho de trabalhadores; meu pai, semialfabetizado por escolha própria, e minha mãe, professora primária. É deles que trago o importante ensinamento de dedicar-me ao estudo e às pessoas, sem nunca esquecer o caminho que percorri. Minha família é católica, cresci nos ritos do catolicismo, mas hoje, casado com uma mulher evangélica, frequento a igreja na qual ela congregava, uma igreja Batista. Essas experiências influenciaram todas as escolhas em minha vida profissional e política.

Você continua atuando na medicina? 

A medicina é uma vocação permanente, pois você está sempre a postos… Antes da nossa entrevista, por exemplo, me vi examinando uma funcionária do gabinete, que teve um episódio de hipoglicemia e eu estava verificando a frequência cardíaca para descartar qualquer arritmia. Uma vez médico, sempre médico. Mas, desde que me formei em 1996, este é o único período em que estou afastado das atividades médicas em uma unidade de saúde, devido ao exercício do mandato como deputado estadual. A legislação atual não me permite conciliar as duas funções, diferente de quando fui vereador por oito anos, período em que pude manter ambas as atividades.  Embora oficialmente licenciado das minhas funções médicas, nunca deixei de estar próximo da medicina e dos inúmeros pacientes com quem mantenho laços há anos. A atuação no parlamento, especialmente em questões relacionadas ao SUS, me mantém conectado ao cotidiano da prática médica. Coincidentemente, durante meu primeiro mandato como deputado estadual, no segundo ano, enfrentamos a pandemia da COVID-19. Sendo médico sanitarista, a epidemiologia é uma ferramenta essencial, e assim tive a oportunidade de unir minha formação como médico ao trabalho parlamentar para combater a pandemia. Lutamos contra a disseminação do negacionismo que, infelizmente, contaminaram uma parte significativa dos governantes, autoridades públicas e, lamentavelmente, também uma parcela da população.

A atual gestão municipal foi alvo de diversas operações policiais, grande parte delas na área da saúde. Qual a resposta a essa situação?

A saúde é um tema central, e a população exigirá dos candidatos à prefeitura um posicionamento firme, pois representa o maior desafio enfrentado por nossa população. Existem questões conjunturais relacionadas ao atual mandato na prefeitura, mas também existem problemas estruturais, antigos e crônicos no nosso sistema de saúde. O principal e mais grave problema é que nosso sistema de saúde não consegue prover atendimento no tempo adequado, com os recursos necessários e com um nível de qualidade superior. Infelizmente, essa situação não é nova e, a partir do aprendizado obtido em mais de 27 anos de atuação na saúde pública, como médico lá na ponta do sistema de saúde, entendo que fortalecer a atenção primária é essencial. É vital promover o cuidado básico da saúde da população no local onde ela vive e trabalha. Abrindo um parêntese, um terço da população economicamente ativa e metade das pessoas com mais de 50 anos sofrem de hipertensão. Este problema, que pode ser facilmente gerenciado, controlado e prevenido na atenção primária à saúde, se negligenciado, leva a complicações que demandam atendimentos de urgência, emergência, internações e até UTI devido às complicações que podem surgir. Portanto, fortalecendo a atenção primária, asseguramos um cuidado de qualidade à nossa população, proporcionando atendimento no tempo certo, com os recursos adequados, e promovendo saúde ao prevenir ou controlar problemas de forma eficaz. Além disso, ao valorizarmos este nível do sistema de saúde, empoderamos a ferramenta mais importante para a saúde da população: o trabalho humano dos profissionais da saúde. Este trabalho na atenção primária não é exclusividade de médicos, enfermeiros ou técnicos de enfermagem, mas envolve também o importante papel de outras profissões, como nutrição, psicologia, educação física e assistência social, criando uma abordagem multidisciplinar que eleva a qualidade e a complexidade tecnológica do cuidado primário. Na minha visão, a saúde representa o principal problema e o caminho para superar os desafios da saúde passa por priorizar esse campo do cuidado. Sem controle adequado e em tempo oportuno, os custos se tornam exorbitantes, inviabilizando orçamentos e impedindo a obtenção de resultados positivos no sistema de saúde. No caso específico de Cuiabá, todos esses problemas estão na raiz das operações policiais e estão relacionados a um modelo de gestão que pratica a terceirização indiscriminada de atividades-fim no sistema de saúde. A contratação terceirizada, por meio de modalidades contratuais absolutamente precárias, favorece desvios e o mau uso dos recursos públicos. Este é um problema não apenas de Cuiabá, mas também do estado de Mato Grosso, como demonstrado pelas operações policiais decorrentes do desvio de recursos também vinculados à terceirização indiscriminada das atividades-fim na saúde, comprometendo a qualidade da assistência e o uso adequado dos recursos públicos.

O segundo tema é a rejeição pelo tribunal das contas da prefeitura. Como a pré-campanha tem tratado esse tema?

A reprovação das contas municipais é central nesta discussão, representando um sintoma e um fato inédito. Ela sinaliza uma série de problemas relacionados à gestão financeira do município. Nesta fase de pré-campanha, é essencial que tenhamos o cuidado de construir nosso programa de governo em diálogo com a população. Nosso objetivo é a produção de um diagnóstico aprofundado das contas do município, permitindo-nos gerir os recursos de forma adequada e assim maximizar a qualidade dos serviços públicos oferecidos à nossa população. Deste contexto, destaco duas preocupações principais: a primeira é colocar a saúde no centro de nossas atenções; a segunda, ter um diagnóstico detalhado da realidade financeira do município. Isso fundamentará nosso programa de governo, capacitando-nos a realizar aquilo que nos propusermos.

Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, SNIS, Cuiabá ficou entre os 5 municípios com maior variação negativa de investimentos em tratamento de esgoto em 2023. Como você pretende tratar o assunto caso seja eleito?

Esse é um sinal que demonstra a necessidade de cuidados, pois em 2011, vivenciamos o processo de privatização do sistema de saneamento em nossa cidade. Houve um período em que esse processo não avançou e não resultou em melhorias para o sistema de saúde. É importante destacar que, até 2022, foi possível observar um volume significativo de investimentos. No entanto, do ano passado para cá, percebe-se claramente uma perda na qualidade do serviço de saneamento em nosso município. Recentemente, há pouco mais de uma semana, enfrentamos um desabastecimento no sistema de água que afetou uma parte importante da região central da cidade, deixando dezenas de bairros sem acesso à água. O esgoto continua sendo um problema crônico aqui em Cuiabá, uma cidade localizada às margens do rio Cuiabá, que é um patrimônio natural e um dos mais importantes rios que alimentam o Pantanal Mato-Grossense. Resolver isso implica a necessária aplicação de um volume significativo de recursos, visto que não é barato construir redes de coleta e tratamento de esgoto. Esta é uma demanda que exigirá de nós muita atenção. Apesar dessa situação paradoxal que enfrentamos, temos o desafio de abordar este assunto durante o debate do programa de governo. Atualmente, temos um sistema que é privatizado, resultado de uma concessão da gestão do serviço de saneamento para a iniciativa privada em 2011. Na época, como vereador, lutamos para evitar que isso acontecesse. Portanto, precisamos conduzir esse debate, incluindo uma discussão sobre o marco legal do saneamento no país e sobre como assegurar investimento público para que possamos efetivar o direito da população ao acesso à água e a serviços de esgoto de qualidade.

Você tem alguma prioridade, algum tema que receberá mais atenção na construção do programa de governo?

Precisamos fazer da questão ambiental a questão central no debate das eleições, dado que o aumento do calor pode tornar a cidade inabitável. Precisamos de políticas públicas eficazes para enfrentar essa questão, e não é suficiente apenas relembrar que Cuiabá já foi uma “cidade verde”. A necessidade de arborização, a descarbonização da cidade e a construção de corredores verdes são urgentes. Nosso programa deve englobar saneamento, gestão de resíduos sólidos, agricultura nas proximidades da cidade, questões hídricas, construções sustentáveis e a matriz energética. Dispomos da capacidade de gerar energia solar descentralizada por meio de cooperativas populares, o que traria justiça climática à população trabalhadora de Cuiabá, que suporta temperaturas de até 45 graus com transporte precário, trabalho precário e desconforto. Os trabalhadores até conseguem comprar um aparelho de ar-condicionado, mas a conta de luz é tão cara, que eles não conseguem manter o aparelho ligado durante a noite, por exemplo, pois não conseguem pagar a conta de luz. O desafio está em como enfrentar tais condições, garantir conforto à população, assegurar justiça climática e gerar emprego e renda a partir de uma matriz energética alternativa. Propomos a agricultura urbana e a compostagem para melhorar a alimentação escolar e promover uma dieta livre de agrotóxicos, posicionando Cuiabá como um centro de produção agroecológica.  Nossa região abrange três biomas: Amazônia, Cerrado e Pantanal, que juntos compõem o ecossistema único de Cuiabá. Os gravíssimos incêndios de 2020 e novamente no ano passado são consequências da seca no Pantanal, decorrente do desequilíbrio nos outros dois biomas. Os rios que nascem no Cerrado e alimentam o Pantanal estão ameaçados pela devastação prolongada para expansão agrícola. Isso afeta o ciclo de chuvas, crucial para a manutenção do ecossistema do Pantanal. Com cada ano mais quente que o anterior, estudos alertam que Cuiabá pode se tornar inabitável em 10 a 20 anos se não alterarmos essa dinâmica. Medidas devem ser tomadas não apenas pela gestão municipal, mas também em colaboração com o governo estadual e federal. Temos uma dinâmica aqui de realização de rodas de conversa,  tendo vivenciado um período intenso de debates internos no PT no último semestre. Após resolvermos as questões sobre a federação, pretendemos levar o debate sobre o programa de governo diretamente às ruas, para discutir com a população. Isso é imperativo e ocorrerá.

Cuiabá tem uma grande concentração de comunidades indígenas e outros grupos étnicos. Sua pré-candidatura tem projetos para este grupo?

Sim, Cuiabá é detentora de uma riqueza étnica diversificada em sua população. A cidade abriga uma expressiva comunidade negra, além de povos indígenas. Originalmente, o território onde se encontra Cuiabá era habitado por indígenas. Há, inclusive, comunidades indígenas significativas nos arredores da cidade e uma população desaldeada vivendo em Cuiabá. Recentemente, o cenário etnográfico da cidade se enriqueceu ainda mais com as migrações, incluindo comunidades haitianas e venezuelanas, bem como um povo indígena da Venezuela, o povo Warao. Essa diversidade étnica e cultural representa uma riqueza, mas, ao mesmo tempo, impõe desafios às políticas públicas. Para efetivamente organizar o sistema de saúde, a educação pública e pensar no desenvolvimento econômico da cidade, é necessário estabelecer um diálogo que leve em consideração as características culturais dessas variadas populações. Temos trabalhado neste sentido, com uma preocupação de que em todas as políticas exige uma compreensão transversal, visando reconhecer, respeitar e acolher as especificidades dessas diversas populações.   

Considerando o provável cenário eleitoral, existe a possibilidade de sua vice ser uma mulher? E, para encerrar, como o PT está preparado para assumir a prefeitura em 2025

Ainda é muito precoce falar em formação de chapa, mas estamos dialogando para construir um projeto muito interessante para a nossa cidade, e isso inclui o atual ministro da Agricultura e presidente estadual do PSD. Temos dialogado com a Rede Sustentabilidade e outras personalidades históricas, com políticos experientes, com o partido Cidadania. Estamos também em diálogo com o PSDB e o PSB. Isso significa uma visão ampliada, incluindo a população, que considero o mais vital de tudo. A eleição em Cuiabá promete ser bastante disputada, com candidaturas fortes representando a extrema direita e a política tradicional. Temos a oportunidade de construir uma candidatura progressista, alinhada com a aliança que governa o país. As pesquisas já nos colocam em uma posição promissora, o que destaca a importância de uma campanha de debates intensos. Já estivemos perto de vencer em Cuiabá, mas enfrentamos resistência ao PT. Compreender e superar essa resistência, com humildade, é crucial para conquistarmos o governo da cidade. Estou confiante de que, estabelecendo um diálogo positivo e de aprendizado com a população, especialmente com aqueles resistentes ao nosso partido, Cuiabá terá a oportunidade de vivenciar um governo que reflete nosso projeto histórico, enriquecido por diversas lideranças, quadros técnicos, empresários, acadêmicos, a população trabalhadora e entidades da sociedade civil. Um governo aberto é essencial para superarmos os desafios estruturais de saúde, saneamento, diversidade cultural e étnica, entre outros, considerando também a pauta ambiental como central para o futuro da cidade. Somente com humildade e colaboração construiremos um governo que proteja nossas águas, promova a agroecologia, explore o potencial turístico e cultural da cidade, beneficiando toda a população.

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