O escândalo das fraudes em cartões e registros oficiais de vacinação de Bolsonaro deve colocar autoridades sanitárias em alerta: movimento antivacina é um risco à saúde pública

Se Jair Bolsonaro (PL) vai virar jacaré, só o tempo dirá. O que já se sabe é que a campanha antivacina na qual se empenhou como presidente da República e líder político pregou-lhe uma peça. No dia 19/3, o ex-presidente e outras 16 pessoas foram indiciadas pela Polícia Federal (PF) por fraude em cartão de vacinação para covid-19. Em janeiro, a Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou que o registro de vacina de Bolsonaro contra a covid-19 é falso.

PRESIDENTE CLOROQUINA – Jair Bolsonaro (PL) foi um dos entusiastas do movimento antivacina no Brasil

O Cartão Nacional de Vacinação de Bolsonaro continha três registros de vacinação. A imunização que supostamente ocorreu em São Paulo e que foi considerada falsa pela CGU, assim como dois registros adicionais no Rio de Janeiro. No entanto, os dois últimos registros foram cancelados por autoridades municipais antes que qualquer investigação pela Controladoria pudesse ser conduzida.

Os registros no Rio de Janeiro resultaram na detenção de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Cid assinou um acordo de delação premiada durante o período de sua prisão. Dentre os indiciados estão o delator e nomes próximos ao ex-presidente ou à prefeitura de Duque de Caxias, onde foram encontrados registros falsos, como Gabriela Santiago Cid, esposa da Mauro Cid; Gutemberg Reis de Oliveira, deputado federal (MDB-RJ); Marcelo Costa Câmara, assessor especial de Bolsonaro e João Carlos de Sousa Brecha, então secretário de Governo de Duque de Caxias. 

Se condenados, as penas podem variar de dois a 12 anos de prisão, por fraude em sistemas públicos de informações, e de um a três anos por associação criminosa, já que ele se serviu de ação conjunta para enganar o sistema de saúde, com participação, inclusive, de funcionários públicos. 

O estrago da desinformação

Essas penas não dão conta do estrago que campanhas antivacina têm feito no país e no mundo ao longo dos últimos anos. O bolsonarismo é apenas um dos artífices dessa onda de desinformação, muito motivado pelos dividendos eleitorais que prometia.

No entanto, para além das eleições, o principal efeito negativo da desinformação, ainda não punível, é disseminar dúvidas e medo em relação ao conceito de saúde pública, em benefício da ideia de que soluções individuais seriam melhores e mais confiáveis.

Considerado o consenso de que as fake news e a desinformação a partir dos meios digitais são uma indústria movida a lucro, enxerga-se aí a tal mão invisível do mercado.

Laboratório da UFRJ identifica saúde como principal alvo de desinformação

Rose Marie Santini, pesquisadora do NetLab UFRJ

No Brasil, poucas coisas simbolizam a saúde pública como a vacinação. Durante as campanhas de imunização, ricos e pobres dirigem-se às Unidades Básicas de Saúde, as UBS, ou outros equipamentos públicos para receber suas doses. Atacar a vacinação é, portanto, minar a confiança da população no próprio Sistema Único de Saúde (SUS).

“Não importa se as pessoas vão acreditar, por exemplo, que tomar vacina vai fazer que elas virem jacaré. O que importa é o rumor, muito forte, que desinformações como essa causam”, argumenta Rose Marie Santini, professora da Escola de Comunicação da UFRJ, onde também coordena o NetLab, laboratório de investigação e monitoramento das redes e de desinformação digital. 

Os grandes fundos de investimentos, que são acionistas de empresas de tecnologia, de planos de saúde e de redes de laboratórios, entre outros negócios, acompanham tudo com olhos ávidos.

“No Brasil, a produção de desinformação sobre saúde é maior do que sobre qualquer outro setor”, diz a professora, lastreada no monitoramento das redes sociais que o NetLab faz. “A saúde é a área mais difícil de ser atacada, porque é baseada em evidências, mas é a que mais sofre. Querem acabar com a ideia de saúde coletiva”, reforça. “As pessoas são bombardeadas por informações desencontradas, falsas, duvidosas, ao ponto de se perguntarem: ‘será que é verdade?’”.

Esses ataques se intensificaram a partir da pandemia de covid-19, mas são mais antigos. Segundo relatório do NetLab, entre 1981 e 2020, a discussão sobre desinformação na saúde focava sobretudo nas epidemias de febre amarela e zika e em tabus em torno da Aids e consumo de carne suína. Os estudos acadêmicos sobre desinformação abordavam teorias conspiratórias sobre a origem das doenças e notícias falsas sobre tratamentos alternativos.

Contágio geral

Desde a ascensão da extrema-direita internacional e, depois, a chegada da Covid-19, o foco e a intensidade dos ataques mudaram. Levantamento do NetLab, a partir do Portal de Periódicos da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), mostra que a produção de artigos acadêmicos sobre desinformação cresceu exponencialmente, e 77% dela estão voltados a fake news, tratamento precoce e infodemia, nome dado a um grande fluxo de informações originado de evento específico.

Segundo Rose Marie, no Brasil há um marco importante nesse fenômeno: as eleições 2016, quando o tema saúde pública se revelou um forte nicho para desestabilizar candidaturas. Mas, em 2020, a indústria da desinformação experimentou mutação significativa.

“Enquanto até 2018 e 2019 as informações eram totalmente falsas e publicadas por veículos não profissionais, a desinformação pós-pandemia é caracterizada por informações distorcidas, com títulos sensacionalistas produzidos por veículos profissionais”, destaca a pesquisadora. O contágio foi quase geral.

Não se trata, portanto, de pura maluquice. Trata-se de um negócio que usa milhões de incautos para compartilhar desinformação, produzir dúvidas e minar os sentimentos positivos que as pessoas possam ter em relação ao sistema público de saúde. Em suma, no caso do Brasil, o SUS.

Tem remédio?

Produzir contrainformação nas redes sociais e plataformas digitais não têm se revelado o mais eficaz dos remédios contra fake news. Aliás, esse esforço de guerra é bom para as plataformas, porque, a cada post, sobe o número de visualizações, likes e compartilhamentos, o que gera mais lucro.

Por vezes, o dinheiro público acaba alimentando essa indústria lucrativa. “O dinheiro que financia o fundo partidário e o fundo eleitoral é usado por candidaturas e partidos para atacar a própria coisa pública, em conteúdos contra a saúde, por exemplo”, argumenta Rose Marie.

Uma hipótese de resistência proposta pelo NetLab é o bom e velho recurso do corpo-a-corpo, ao menos no setor saúde. Em alguns casos, o melhor modo de desestabilizar a desinformação é não a desafiar diretamente, e sim apostar em alternativas estratégicas de educação de pais e crianças, sobretudo por meio de difusão com médicos locais, equipes de saúde da família e agentes comunitários de saúde, encorajando ações informativas sobre prevenção.

Outro aspecto que não pode ser esquecido é a necessidade de regulação pública das plataformas digitais. O Brasil patina no tema. É previsível que nas eleições municipais deste ano sejam tomadas novas providências para conter abusos, assim como em 2022. Mas é pouco.

O país existe também fora dos períodos eleitorais. Por enquanto, a principal proposta na mesa para regulação de plataformas é o projeto de lei 2630/20, parado no Congresso Nacional. 

Morte de crianças

Em 56 dias, correspondentes às primeiras oito semanas de 2024, a Covid-19 matou 48 crianças ou adolescentes de até 14 anos de idade no Brasil. Isso é resultado da baixa taxa vacinal.

Segundo monitoramento do programa Observa Infância, da Fiocruz, a cobertura vacinal na faixa etária entre três e quatro anos, até fevereiro deste ano, estava em 23% para duas doses e apenas 7% para o esquema vacinal completo com três doses. Na faixa de cinco a 14 anos, a cobertura sobe para 55,9% com duas doses, e 12,8% completando o esquema com três doses.

O mesmo estudo mostra que a taxa de mortalidade observada nos primeiros meses de 2024, embora alta, é inferior a anos anteriores, o que comprova a importância do imunizante.

Nas primeiras oito semanas de 2024, segundo a Fiocruz, foram registradas 48 mortes de pessoas até 14 anos por Covid. No mesmo período de 2022, foram 326 mortes nessa faixa etária causadas pela doença.

Há vacinas à disposição, garante o Ministério da Saúde. Não é a falta de abastecimento que tem contribuído para as mortes. As campanhas antivacinas certamente têm impacto nesses números. 

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