O Brazil que respeita o Brasil: a tradição diplomática de Lula
Henrique Nunes
No livro “O Brasil dos Gringos”, de Tunico Amâncio, há uma evidência paradoxal revelada a partir do cinema internacional: desde a primeira citação, em 1930, o país aparece sempre, ou quase, retratado na tela grande como destino frequente de personagens em fuga ou em busca de abrigo, digamos, pouco burocrático.
A obra, de 2000, denuncia um estereótipo pouco abonador. Afinal, para quem buscava uma nova vida (mesmo que na ficção), o Brasil parecia ser o lugar ideal, como num prenúncio do que Raul Seixas escreveria em “Aluga-se”: “os estrangeiros eu sei que eles vão gostar/Tem o Atlântico tem vista pro mar”.
Pois bem. Sabemos todos que, dadas as proporções, esta visão ainda está cravada na retina de todos os gringos que, por turismo ou negócio, aventuram-se por estas terras tropicais. Em 2010, por exemplo, Sylvester Stallone disse que adorou gravar seu novo filme por aqui porque “podia explodir tudo e a gente ainda dizia obrigado”.
Uma crise diplomática desnecessária e fugaz, diga-se. E mais: era prova de que, neste departamento, o Brazil de lá ainda pouco conhecia o Brasil daqui. E é com a diplomacia brasileira iniciada por Luiz Inácio Lula da Silva, que o jogo começa a virar.
Começa, não. A bem da verdade: historicamente o Brasil sempre foi gigante quando se trata de relações políticas internacionais – claro que com períodos nem tão gloriosos assim, como na vergonhosa gestão de Jair Bolsonaro. A diplomacia brasileira nunca deixou de estar entre as mais respeitadas do mundo.
Foi com Lula no comando que a diplomacia brasileira teve alguns de seus períodos mais marcantes e nós podemos provar. Há uma vasta bibliografia que pode confirmar a afirmação. Uma delas é a tese de doutorado do pesquisador Kjeld Aagaard. Segundo o acadêmico, foi durante os primeiros oito anos do governo Lula (2003-2010), que a política externa teve o seu plot twist, devido, sobretudo, a questões de “enfrentamento da pobreza e pela luta por igualdade entre as nações”. Uma busca rápida por notícias do período e fica fácil entender o que Aagaard quis dizer. Lula tornou-se a voz que todos queriam ouvir, a imagem que todos queriam ver, em fóruns e encontros internacionais.
Crise com Israel
A atual crise com Israel, por exemplo, desencadeada por uma acachapante e necessária declaração de Lula (agora em terceiro mandato), poderia servir muito bem para que a memória de Osvaldo Aranha (1894/1960) fosse reverenciada. Diplomata que ganhou destaque durante o governo de Getúlio Vargas, teve posteriormente papel decisivo na criação do Estado de Israel enquanto presidente da Assembleia Geral da ONU, em 1947.
Não fosse sua capacidade ímpar para dialogar com todas as nações participantes, talvez a Resolução 181 (que confirmou a criação do Estado de Israel) tivesse demorado ainda mais para sair do papel. Seu desempenho foi tão aclamado que Aranha acabaria indicado para o Nobel da Paz no ano seguinte.
Lula paz e amor
Lula tornou-se, desde a sua primeira passagem pelo Executivo, o maior apaziguador de ânimos do planeta em questões que nem mesmo a ONU conseguia lidar. Uma das mais famosas ocorreu em 2010, quando evitou o agravamento da crise entre Irã e Estados Unidos ao atender um pedido de Barak Obama para que intermediasse um diálogo amistoso entre as duas nações.
Na época, o então presidente do país persa Mahmoud Ahmadinejad se exibia em tevês oficiais com dados sobre a crescente produção de urânio – uma clara ameaça à paz mundial, segundo os estadunidenses. Mas, com a ajuda do ex-chanceler Celso Amorim, hoje conselheiro especial do governo federal, Lula entraria em jogo para evitar o que, em última hipótese, acabaria em guerra.
É aqui que entra a famosa carta de Obama enviada a Lula. A história é uma das maiores pérolas da diplomacia mundial das últimas décadas.
Ele joga em todas
Lula também carrega no currículo participações decisivas em pontos estratégicos da política externa desde quando foi eleito pela primeira vez. De lá para cá, ele mexeu com a placas tectônicas da diplomacia mundial – como já disse o próprio Amorim. Só para lembrar: foi com Lula que o Brasil passou, pela primeira vez em sua história, a fortalecer relações comerciais com países emergentes e/ou em desenvolvimento, como Índia, Rússia, China e África do Sul, membros do Brics, grupo que só passou a ter a relevância que merece pela influência que o ex-operário causa no jogo de xadrez da diplomacia mundial.
Foi no mandato de Lula que surgiu a União de Nações Sul-Americanas e o Conselho de Defesa Sul-Americano; foi com Lula também que o Mercosul viveu o seu auge, ao ponto de, ao final do seu oitavo ano como presidente, ele ter recebido o título de “Cidadão Ilustre” da entidade. Hoje o grupo passa novamente por reformulações, após sucessivos anos caindo em descrédito; engana-se, no entanto, quem acha que isso é coisa do Lula do passado. Quer saber quem foi o único chefe de Estado do planeta que conseguiu segurar as tropas de Nicolás Maduro prestes a invadir a Guiana?
Por intermédio do presidente brasileiro, os dois países vizinhos aceitaram discutir a questão do território de Esequibo. Por fim, a lista de casos e causos que colocam o Brasil num rol bastante distinto da diplomacia internacional é imensa. Sobretudo com Lula, nunca antes na história deste país o Brazil respeitou tanto o Brasil. Isso, sim, é coisa de cinema.
Retranca
Três livros para entender a diplomacia brasileira
Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco – Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos – Ed. Companhia das Letras, 2018
Uma biografia minuciosa e inovadora do mais popular dos homens públicos brasileiros da virada do século XIX para o século XX, considerado o patrono da diplomacia nacional.
A diplomacia na construção do Brasil – Rubens Ricupero – Ed. Versal Editores, 2017
Testemunha e protagonista das últimas cinco décadas da diplomacia brasileira, Rubens Ricupero desvenda a trama de influências nacionais e internacionais desde 1750 até a década atual.
Breves Narrativas Diplomáticas, Celso Amorim. – Ed. Benvirá, 2013
Ao longo dos 12 anos em que foi embaixador do Brasil em Genebra e Londres e ministro das Relações Exteriores do governo Lula, Celso Amorim colecionou histórias que foi anotando no que lhe caía à mão