Por José Luís Fiori 

As conversações entre os “donos do mundo” costumam ser secretas e em princípio não deveriam vazar. No entanto, transpirou em alguns órgãos da imprensa internacional que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, teria alegado a seu favor, junto a  Joe Biden e Anthony Blinken, que os ingleses e norte-americanos também teriam  bombardeado e destruído cidades e populações civis em várias de suas guerras ao redor  do mundo. Se isto for certo, Netanyahu tem razão, porque de fato sua estratégia de saturação e destruição aérea da infraestrutura e da população civil da Faixa de Gaza é uma  cópia atualizada dos bombardeios aéreos e massacres noturnos da população civil das  cidades alemãs e japonesas que foram praticados pela aviação da Inglaterra e dos Estados  Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. 

Na verdade, o primeiro bombardeio aéreo massivo de que se tem notícia, de uma população civil indefesa ocorreu durante a Guerra Civil Espanhola, no dia 26 de abril de  1937, sobre a pequena cidade de Guernica, que tinha cerca de 7 mil habitantes. O ataque foi realizado por aviões da Força Aérea Alemã, comandados pelo coronel Wolfram von Richthofen, embora se saiba que foi um bombardeio encomendado pelo próprio Gal  Francisco Franco (1892-1975) contra seus opositores republicanos. Em poucas horas, 50 bombardeiros da Legião Condor despejaram 22 toneladas de explosivos incendiários e bombas de 250 quilos sobre uma cidadezinha – sem a menor importância estratégica – que foi inteiramente destruída, matando 1.645 pessoas e deixando 889 feridas e mutiladas, a maioria crianças e mulheres. 

No entanto, foram os ingleses e os norte-americanos que de fato massificaram a experiência alemã e transformaram a estratégia dos “genocídios aéreos” numa arma de  guerra, utilizada com o objetivo de arrasar grandes cidades e destruir a moral e a vontade  de luta de suas populações. Colônia, Dusseldorf, Hamburgo e Dresden foram as cidades  alemãs mais famosas destruídas pelos bombardeios ingleses, e o mesmo aconteceu com  o bombardeio norte-americano da cidade de Tóquio e de várias outras cidades japonesas,  que foram incineradas antes do ataque atômico norte-americano contra Hiroshima e  Nagasaki, como descreveu de forma realista e implacável o ex-Secretário de Defesa norte americano, Robert MacNamara, no seu depoimento filmado em 2003, com o título “Sob a  névoa da guerra”. 

Nesta história que envergonha a Humanidade, existe um personagem inglês que cumpriu papel central na invenção e no patenteamento desses bombardeios de “saturação” dos espaços urbanos e de suas populações civis: o Marechal e Sir Arthur Travis Harris, também conhecido pelo ingleses como Arthur Bomber Harris, ou simplesmente Bomber  Harris. Sir Arthur Bomber Harris foi oficial da Real Air Force inglesa de 1918 até 1946, e participou da Primeira Guerra Mundial como líder de um esquadrão da RAF. Depois, participou das guerras coloniais da Inglaterra na Índia, em 1921 e 1922, na Rodésia e no Iraque, onde lutou contra as tropas turcas e curdas Entre 1933 e 1937, trabalhou no Air  Ministry inglês, onde desenvolveu suas ideias e estratégia de bombardeios massivos e  noturnos das cidades inimigas. Em 1938-9, Sir Bomber foi enviado para a Palestina, onde  pode experimentar suas ideias de forma pioneira exatamente contra a população palestina,  na chamada a “rebelião árabe” de 1938, podendo ser considerado como uma espécie de mestre e precursor direto de Benjamin Netanyahu.  

Depois do seu longo estágio através das guerras coloniais inglesas, o Marechal  Arthur Harris voltou para a Inglaterra em 1939, e assumiu a liderança do Bomber Comand  da RAF em fevereiro de 1942, organizando de imediato a sua primeira Operação Milênio, que incinerou a cidade de Colônia em menos de duas horas, na noite entre 30 e 31 de maio  de 1942. Nessa noite foram lançadas sobre Colônia 1.500 toneladas de bombas, das quais  8.300 incendiárias, 116 de fósforo, 81 de alta combustão e outras carregadas com 125 litros  de fluidos altamente inflamáveis, deixando atrás de si 45 mil desabrigados. Um ano depois,  Sir Bomber comandou também a Operação Gomorra, realizada em conjunto com a Força  Aérea norte-americana, contra a cidade de Hamburgo, no norte da Alemanha. O  bombardeio de Hamburgo começou no dia 24 de julho e durou 7 dias e 7 noites (à noite  atacavam os ingleses e de dia, os norte-americanos). Foram realizados 3 mil bombardeios 

utilizando 9 mil toneladas de bombas, e no dia 27 de julho vários incêndios se juntaram pela  ação do vento, criando um verdadeiro inferno de fogo, com suas chamas alcançando mais  de 300 metros de altura, e 800 graus centígrados, provocando 42.600 mortes e 37 mil  feridos, e mais de um milhão de desabrigados. Alguns historiadores falam inclusive deste  bombardeio de Hamburgo como tendo sido a Hiroshima da Alemanha.  

Não há dúvida, entretanto, de que a incineração da cidade de Dresden no leste da  Alemanha, em 13 de fevereiro de 1945, já quase no final da Segunda Guerra, pela RAF  inglesa e pela Força Aérea dos Estados Unidos, foi o caso mais absurdo, dramático e  vingativo dos genocídios aéreos anglo-americanos praticados na Alemanha. Neste caso,  por ordem direta e pessoal do primeiro-ministro inglês, Winston Churchill, uma das cidades  históricas mais belas e cultas da Alemanha foi incendiada e destruída em apenas dois dias.  Foram utilizados 1.300 bombardeiros pesados que lançaram 3.900 toneladas de  dispositivos incendiários, destruindo 40 quilômetros quadrados do centro da cidade, e  deixando mais de 100 mil mortos. Um número maior do que todas as mortes de civis  ingleses ocorridas durante toda a Segunda Guerra Mundial, sendo que 80% eram mulheres  e crianças. 

Depois disso, e ainda no ano de 1945, a Força Aérea norte-americana utilizou a  mesma estratégia dos bombardeios noturnos contra cidades indefesas, em Tóquio e várias outras cidades japonesas, que foram literalmente eliminadas do mapa, como aparece  descrito na entrevista ex-ministro Robert MacNamara, já mencionada. No caso mais famoso  da cidade de Tóquio, a Operação Meetinghouse, realizada nos dias 9 e 10 de março de  1945, provocou uma verdadeira tempestade de fogo noturna, com a utilização de bombas  de fragmentação para aumentar o número das vítimas, estimadas em 200 mil pessoas, com  cerca de 1 milhão de feridos. Tudo isto quase na véspera do lançamento norte-americano  de duas bombas atômicas sobre a população civil das cidades de Hiroshima e Nagasiki,  nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, provocando a morte instantânea de mais 200 mil civis  japoneses desarmados. Mais à frente, a aviação norte-americana voltaria a utilizar a mesma  estratégia de “saturação” aérea contra o Vietnã e o Camboja, utilizando napalm contra as  cidades, a população e as florestas vietnamitas e cambojanas. Antes disso, entretanto,  consta que em 1946, o grande “inventor” inglês dos genocídios aéreos, Sir Arthur Travis  Harris, deixou a RAF e foi ser empresário na África do Sul, deixando atrás uma escola e  inúmeros discípulos. 

Resumindo: o atual “genocídio aéreo” do povo palestino da Faixa de Gaza, praticado  pela Força Aérea Israelense, descende diretamente de uma escola estratégica anglo americana. Há, no entanto, duas grandes diferenças com relação à prática anglo-americana da Segunda Guerra: a primeira é que o bombardeio da Faixa de Gaza se dá à luz do dia e é feito por um Estado atômico que recebe 3,8 bilhões de dólares anuais de ajuda militar dos  Estados Unidos, além da venda de outros milhões em armamentos, em cima de um povo  que vive praticamente da filantropia internacional; e a segunda, que esse novo “genocídio  aéreo” está ocorrendo neste momento, ao vivo e à cores, no “coração” religioso da  civilização ocidental, e ao ser assistido diariamente por toda a população mundial, está  contribuindo de forma decisiva e cabal para enterrar a ideia da excepcionalidade moral do  Ocidente. Neste sentido, a denúncia de Israel, pela África do Sul, frente à Corte  Internacional de Haya, pelo genocídio palestino na Faixa de Gaza, deve ser lida também,  como uma denúncia da África Negra da inconsistência moral das potências coloniais e  neocoloniais euromericanas.

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