Juliana Borges*

Quando prestei vestibular, há 21 anos, apenas uma escritora figurava na lista de leituras obrigatórias para a prova. Dentre grandes figuras literárias, parecia não caber mais nenhuma que destoasse do gênero masculino, não fosse Clarice Lispector e seu “A hora da estrela” (Ed. Rocco, 1917).  

Não houve muita discussão de minha parte, confesso. As prioridades, para mim, eram outras, como passar no vestibular e dar seguimento aos sonhos de minha mãe, de minha avó e de minha bisavó que se consubstanciam aos meus.

Quem tem medo da literatura escrita por mulheres? Por Juliana Borges

Quando prestei vestibular, há 21 anos, apenas uma escritora figurava na lista de leituras obrigatórias para a prova. Dentre grandes figuras literárias, parecia não caber mais nenhuma que destoasse do gênero masculino, não fosse Clarice Lispector e seu “A hora da estrela” (Ed. Rocco, 1917).  

Não houve muita discussão de minha parte, confesso. As prioridades, para mim, eram outras, como passar no vestibular e dar seguimento aos sonhos de minha mãe, de minha avó e de minha bisavó que se consubstanciam aos meus.

Em novembro de 2023, a Fuvest, fundação responsável pelo vestibular de ingresso à USP, anunciou a lista de leituras obrigatórias para o triênio 2026-2028 e causou alvoroço. O motivo? Para ingressar na USP, nesses anos será necessário ler apenas mulheres. Serão 9 autoras e cerca de 11 de suas obras. Entre as escritoras: Nísia Floresta, Júlia Lopes de Almeida, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Paulina Chiziane e Conceição Evaristo. 

Não é preciso dizer que não se trata de iniciantes ou escritoras pouco expressivas. Suas obras são estudadas em cursos de Letras por todo o país, a despeito da falta de presença entre quem é considerado canônico até aqui – mas há um detalhe importante diante do alvoroço que o anúncio causou: a canonização e o apagamento. 

Não foi preciso ir muito longe. Bastou que realizasse uma breve verificação sobre a presença de mulheres na lista de leituras obrigatórias dos últimos 21 anos, desde que passei pela experiência de vestibulanda. 

Na lista para 2003, apenas Clarice Lispector; na lista para 2020, apenas Helena Morley [pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant]; na lista para 2021, apenas Cecília Meireles, que assim figurará até 2025, ano no qual Ruth Guimarães e seu “Água Funda” (1946, Ed. 34) lhe farão companhia. 

Não é brincadeira: da lista para 2004 até a lista para 2019, nenhuma escritora esteve à altura do cânone para marcar presença. Por 15 anos, o vestibular para uma das instituições mais importantes do país não contou com mulheres nas listas de leituras obrigatórias para o exame. E por que não houve alvoroço? Por que não houve incômodo? Quem tem medo da literatura produzida por mulheres?

Por muitos anos, a crítica literária tratou a literatura produzida por mulheres como algo secundário, profundamente subjetivo, texto e pensamento sensível. Não foram poucas as vezes que escutei que Clarice Lispector era “Chatice Lispector”. Esse tipo de postura e adjetivação nos faz perder enquanto humanidade e no exercício literário. E não falta qualidade. 

O romance de Ruth Guimarães, “Água Funda”, por exemplo, foi sucesso de crítica quando publicado, fazendo com que Antonio Candido escrevesse resenha apurada e entusiasmada. Ambos nutriram amizade por anos, de imensa estima e respeito. 

Por outros críticos, a obra foi apontada como pertencente à linhagem de autores como Mário de Andrade e Jorge Amado. Uma autora gabaritada e respeitada por seus pares – “Água Funda” foi lançado no mesmo ano, 1946,  e no mesmo evento de “Grande Sertão: Veredas” (Ed. Companhia das Letras), de Guimarães Rosa, e liderou o ranking dos livros mais vendidos do ano.

Por que tanto tempo para Ruth Guimarães emergir entre leituras obrigatórias?

Um dos exemplos mais contundentes é o da escritora Conceição Evaristo, uma das mais populares em atuação, hoje, no Brasil. Não apenas tem uma produção literária de imensa qualidade, como fórmula, reformula e produz a partir de inovação, fazendo incorporar em metodologias e outros fazeres literários a sua escrevivência. 

A literatura de Evaristo dialoga com aquela produzida por Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector e escritores contemporâneos. Seu texto nos faz submergir nos brasis, retorce temporalidade, subverte a personagem ao reposicionar as vozes negras, sua presença, postura e representação literária. Sua escrita brinca com a palavra e com a língua, força o novo, tem cadência e ritmo poético no romanceio. 

A provocação da Fuvest é bem-vinda e chega em boa hora ou, como diria a geração z, “antes tarde do que mais tarde”. O choque de ter uma lista inteira só de escritoras mulheres é a resposta necessária à década e meia, dos últimos 21 anos, no qual mulheres foram excluídas de suas listas. 

A reação questionadora que surge em resposta é uma comprovação do que o movimento feminista problematiza e denuncia há décadas: o apagamento da presença e contribuição das mulheres em qualquer área é fruto de algo que tem nome e é incontornável de ser combatido: patriarcado. Se, há alguns anos, a resposta poderia ser “mas aqueles tempos eram outros”, hoje, é impossível manter-se em desculpas. 

Em 2029, a lista de leituras obrigatórias para a USP voltará a dar espaço para homens, privilegiando a presença negra. Outra grita à vista ou já teremos compreendido que escritores negros tiveram, e ainda têm, contribuição fundamental para a identidade literária-nacional? Oxalá que sim! 

O fato inquestionável é que, no panteão literário que mulheres e pessoas negras vislumbram, não queremos ser absolutos porque buscamos algo chamado igualdade. Nem totalizantes, nem hegemonizantes, a despeito do choque, no momento, ser mais do que necessário. Se acalmem. No mundo da igualdade, todos e todas são muito bem-vindos. 

*Juliana Borges é escritora e livreira. Sócia-proprietária da Livraria Tamarindo, estudou Letras (USP). Autora dos livros “Encarceramento em massa” (Jandaíra, 2019) e “Prisões: espelhos de nós” (Todavia, 2020). Escreve para a coluna “Perspectiva Amefricana”, da Revista Quatro Cinco Um.