Crédito: Trípoli Gaudenzi Filho/2011

O futuro quis que duas datas históricas convivessem próximas no calendário brasileiro, apesar das incompatibilidades que guardam entre si. A Proclamação da República, festejada nos dias 15 de novembro, e o Dia da Consciência Negra, nos dias 20, costumam ser apontadas até mesmo como eventos opostos.

A chegada da República, em análises frequentes, é tida como um mero golpe militar sem a participação das camadas populares, e cuja consolidação política e econômica se deu em grande medida à manutenção das bases escravistas. Nestas, fundamenta-se o racismo estrutural que permeia o país e consolida cotidianamente um regime de exclusão e injustiça. A Lei Áurea, promulgada um ano antes, 1888, não deu conta de debelar os perversos efeitos da escravidão legal que durou mais de três séculos.

O racismo que vai se adaptando às circunstâncias e à mudança de regime é um fato, conforme demonstram diversos acontecimentos cotidianos, além de pesquisas historiográficas e análises, recentes e novas. 

Já a Proclamação da República como simples quartelada, desejo de uns poucos integrantes da elite nacional, não é uma interpretação unânime. “Acho que é uma interpretação conveniente para manter a ideia de que só existia um projeto republicano no Brasil, o que não é verdade”, comenta Ynaê Lopes dos Santos, doutora em História, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da Rede de Historiadoras e Historiadores Negros.

Ynaê destaca que houve movimentos com forte participação popular e protagonismo negro, como a Conjuração Baiana, em 1798, que tinham em sua pauta os ideais republicanos, transcendendo o modelo daquela independência que estava por vir e que manteria o regime monárquico.

“Há, sim, uma ‘ala’ popular do republicanismo, como a Conjuração Baiana deixa transparecer, bem como a trajetória de vários republicanos negros, como o baiano Manuel Querino. Mas é preciso entender que os interesses desse republicanismo popular não foram integralmente contemplados a partir de 1889”, diz ela.

Ela acredita que, embora não incorporados no novo regime, hegemonizado pelos interesses da elite econômica e política do período, é preciso considerar que o processo de luta popular, em sua lógica cumulativa, teve influência na troca de regime e não deve ser ignorado.

“Na verdade, parte das tensões do século 20 dizem respeito a disputas que visavam ampliar (ou restringir) os sentidos de república”, diz ela. Século não tão distante e cujas lutas reverberam até hoje.

Voltando um pouco no tempo, a própria disputa pela independência já opunha monarquistas a republicanos.  A corte e sua estrutura institucional eram pressionadas por agentes que defendiam uma separação não só de Portugal, mas de toda e qualquer coroa. Parte dessa disputa se deu na imprensa, cuja ala republicana teve entre seus protagonistas um que não temeu as consequências e foi punido com o exílio – do qual escapou saltando no porto do Recife para juntar-se à Confederação do Equador, movimento republicano. João Soares Lisboa, homem de origem popular e sem experiência acadêmica, havia sustentado na capital federal o Correio do Rio de Janeiro, fonte de muitos aborrecimentos para o então príncipe regente Pedro de Alcântara.

A historiadora Ynaê, autora do livro Racismo Brasileiro: uma História da Formação do País, considera que é impossível pensar em grandes movimentos sociais que aconteceram no Brasil no final do século 18 e ao longo do século 19 que não tenham tido forte participação negra. Se é assim, isso inclui, até, o fim da escravidão legalmente tolerada.

Se a institucionalidade encaminhou certas bandeiras e lutas para lugares aquém do que desejavam os movimentos populares, negar-lhes papel nos grandes eventos, mesmo aqueles escolhidos pela historiografia oficial, pode ser, como alerta Ynaê, conveniente para os próprios opressores. Se todo o povo acreditasse que as elites acabam decidindo tudo, não teria sido criado, por exemplo, o Dia Nacional da Consciência Negra e os movimentos que continua gerando.

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