Rejeitado pelo STF, marco temporal é aprovado pelo Senado
Rejeitado pelo STF, marco temporal é aprovado pelo Senado, revertendo que terras indígenas só podem ser demarcadas se ocupadas pelos povos originários até outubro de 1988
A mudança na legislação sobre os direitos à terra pelos povos indígenas virou uma questão política grave, com resultados imprevisíveis e a possibilidade de risco de crise institucional. Na quarta-feira, 27, o Supremo Tribunal Federal e o Senado adotaram visões absolutamente divergentes sobre a legalidade do marco temporal para demarcação das áreas indígenas.
A tese do marco temporal, aplicada a partir de 2017, prevê que só podem ser demarcadas terras ocupadas pelos indígenas até o dia 5 de outubro de 1988. Mas o entendimento mudou após decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal. Agora, o Congresso decidiu “anular” a decisão da cúpula do Poder Judiciário, numa demonstração de força da bancada ruralista.
Líderes indígenas e as esquerdas são contrários a esse entendimento do marco temporal, mas a força do agronegócio decidiu desafiar o Judiciário. Há duas semanas, os ministros do STF haviam decidido que o marco temporal era ilegal. Esta é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de se fixar apenas às terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, a data de promulgação da Constituição. O Ministério dos Povos Indígenas lamentou, em nota, a aprovação do projeto. A pasta afirmou que a matéria atenta contra os direitos dos povos indígenas e vai na contramão das conversas globais.
O senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Senado, apontou a inconstitucionalidade da medida, pois a Constituição de 1988 não representa um marco para a aquisição de direitos possessórios por parte das comunidades indígenas, e, sim, uma sequência da proteção já assegurada pelas cartas constitucionais desde 1934. “Como está escrito no texto constitucional, como já estava no texto [constitucional] em 1934 com o mesmo sentido, eu entendo que é inócuo votar um projeto, categoria inferior à nossa Constituição, para reafirmar aquilo que já está na Constituição”, apontou o senador ao orientar a votação contra o projeto.
A tese do marco legal foi o critério usado pela primeira vez em 1999 por ocasião da declaração da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. No mesmo dia que o Senado decidia restabelecer o marco temporal, os 11 ministros da corte estavam a discutir como, a partir da ilegalidade da medida, devem ser aplicadas as regras de demarcação de terras indígenas.
O Congresso foi na contramão do Judiciário ao restabeleceu a regra que só passou a valer depois da queda de Dilma Rousseff em 2016, quando ela foi afastada pelo Congresso Nacional por um impeachment aprovado sem crime de responsabilidade. A partir da saída de Dilma, o governo de Michel Temer adotou a tese para definir como regra central para a demarcação das terras indígenas.
Na quarta-feira, o plenário do Senado aprovou projeto de lei restabelecendo o marco temporal como regra para as demarcações. A proposta já havia sido aprovado pela Câmara, em maio, com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), quando os deputados aprovaram um projeto de lei que estabelece a tese do marco temporal no arcabouço legal do país.
A matéria foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado por 16 votos a 10. E, logo depois, o texto foi ao ser aprovado no plenário por 43 votos a a, quando os senadores aprovaram o texto-base. A lei agora segue para sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O PT vai sugerir a Lula o veto ao projeto de lei.
A tese do marco temporal deriva de uma interpretação — considerada equivocada pelo STF — do artigo 231 da Constituição, que diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Os indígenas são contrários ao marco temporal. Argumentam que o critério de ocupação em 5 de outubro de 1988 não é preciso. Isso porque alguns povos são nômades e podem estar ligados a uma terra, mesmo não a habitando naquela data específica. Explicam também que a ditadura retirou muitos povos de suas terras históricas.
A bancada ruralista no Congresso, no entanto, defendeu a legalidade do marco temporal. Os parlamentares temem que, sem esse entendimento, terras hoje em mãos do agronegócio podem ser demarcadas como territórios indígenas.
O julgamento do marco temporal avaliou o caso concreto da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina — habitada pelos Xokleng e por outros dois povos, os Kaingang e os Guarani. Com base no marco temporal, aplicado a partir do governo Michel Temer, em 2017, as demarcações na região foram paralisadas, o que foi contestado pelos indígenas.
Uma parte desse área, de cerca de 80 mil metros quadrados, é reivindicada pelo governo catarinense com a alegação de que a área não estava ocupada pelos Xoklengs em 5 de outubro de 1988. Os indígenas argumentam que a terra não era ocupada naquela data justamente porque haviam sido expulsos do local.
O STF entendeu que o marco temporal não condiz com a Constituição e que esse entendimento deve valer para todos os casos sobre demarcações. Mas a decisão do Supremo não obriga que o Poder Legislativo siga exatamente o que foi definido pelos ministros. Na prática, isso significa que o Parlamento pode legislar sobre o caso — inclusive divergindo do que fixou o Supremo.
Se o presidente vetar a proposta, os parlamentares podem derrubar o veto em sessão conjunta do Congresso Nacional. Neste cenário, o texto seria promulgado e passaria a valer como lei.
Tornada regra, a proposta passa a produzir efeitos no mundo jurídico, entrando em vigor. Mas, em tese, só poderia ser aplicada para disputas que surgissem após sua vigência. Pela Constituição, em regra, as normas não retroagem para mudar situações que ocorreram antes de seu nascimento. •