O escritor matogrossense Joca Reiners Terron usa da alegoria e da narrativa tensa do thriller para contar uma história de carnificina nos anos da mortandade do coronavírus

A pandemia e o matadouro

Bia Abramo

O escritor matogrossense Joca Reiners Terron não poderia ter escolhido um cenário mais sinistro para o nono romance, “Onde Pastam os Minotauros”. Um matadouro em algum lugar do Mato Grosso, terra já devastada há tempos pela criação de gado e pela matança de gado. Não sabemos exatamente onde fica a empresa de abate de animais, só que fica próxima a um rio também deteriorado, mas isso importa menos do que o tempo da história: estamos ainda nos primeiros tempos da pandemia.

Sabemos disso nas primeiras páginas, quando se delineam o Cão, o Crente e Lucy Fuerza, os dois abatedouros e a secretária que, sabemos logo, estão tramando alguma coisa. O Crente e o Cão, assim mesmo com nomes que demoraremos a saber, são dois trabalhadores de uma morte mecânica, suja e desagradável, ainda que aparentemente necessária. Lucy, namorada do Cão, trabalha limpa e bem arrumada como secretária e faz-tudo administrativa no escritório da empresa.

O trio está no limite da pobreza, de uma pobreza que já conhecera dias mais dignos, mas que ainda não atinge a linha da miserabilidade dos que aguardam, ansiosos, junto à cerca, os rejeitos dos bois esquartejados e carneados. O negócio da carne para exportação é próspero; o frigorífico abate os animais de acordo com as restrições alimentares kosher (judaica) e halal (islâmica). É nesse set dentro de um mundo deteriorado que vai se delineando aquilo que vamos percebendo que é uma espécie de conspiração entre o Cão, o Crente e Lucy.

Entremeados a esse fio narrativo principal, Joca Terron recorre a dois outros planos, o das memórias da infância e juventude dos personagens e o das alegorias mitológicas. Como uma espécie de fuga mítica do Cão, personagem cujo apelido já sugere um hibridismo entre o humano e o animal, ele reconta a história de Dédalo no labirinto e do monstro de cabeça de touro e corpo de animal. O quase devaneio poético, que volta às mitologias do Mediterrâneo e circunda o imaginário brasileiro, aos poucos conecta-se com a trama de vingança que se adensa a cada desdobramento da ação.

Numa prosa de textura cerrada, minimalista até, e ritmo de tirar o fôlego, Joca constrói uma história  tensa, entre o thriller e a distopia. Como pelo menos desde “Noite Dentro da  Noite” (2017), “Onde Pastam os Minotauros”, novamente trata do fim de um certo Brasil ou, melhor dizendo, de uma certa promessa de Brasil que sua geração herdou – o autor nasceu em 1968 -, mas nessa vez na chave ainda mais dramática dos anos da pandemia.

Numa amostra do que o melhor da literatura brasileira tem produzido hoje, ou seja, o esforço de flagrar a vida que se desenrola nas franjas, Terron lança um olhar desencantado para os vários graus de degradação ambiental, social e cultural ao mesmo tempo que convida o leitor a torcer pelos seus personagens desgarrados, sobretudo quando se lançam num gesto que parece aventureiro, mas não disfarça o cheiro do desespero.  •