A letalidade da polícia assusta
Depois que um soldado da Rota foi morto, PM de São Paulo monta operação que resulta na morte de 16 pessoas. Tarcísio de Freitas afirma estar “extremamente satisfeito com os resultados”
Isaías Dalle
A letalidade da polícia brasileira voltou a ganhar destaque na imprensa internacional. No estado de São Paulo, 16 pessoas morreram como resultado de uma operação policial da PM, que gerou polêmicas e protesto. Tudo seria resultado de uma operação para perseguir o assassino de um soldado da PM. Integrante do batalhão da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), Patrick Bastos Reis, morreu na noite de 27 de julho, no Guarujá, litoral sul de São Paulo.
Ele foi vítima de um tiro disparado à distância de 50 metros, que o acertou no tórax. Outro projétil de calibre 9 milímetros, da mesma origem, perfurou a mão esquerda do policial que acompanhava Reis. Seis dias depois, a operação para apontar os responsáveis pelos dois tiros já haviam causado a morte de 14 pessoas no Guarujá e ricocheteado em outras duas vítimas fatais na vizinha Santos, segundo dados oficiais.
Os 16 mortos são o resultado do uso da força pela PM do estado. A ordem partiu do governador Tarcísio de Freitas e do secretário de Segurança, o capitão Guilherme Derrite. A Operação Escudo tinha como objetivo capturar os autores do crime. Detalhe: quando o principal suspeito dos disparos se entregou à polícia, no dia 30, o total de mortos pela operação policial era de três. Outras cinco pessoas haviam sido presas.
A prisão de Erickson David da Silva, apresentado à imprensa como o “sniper”, por causa da precisão do tiro fatal, não aplacou a escalada de mortes comandada pela polícia no Guarujá. O trabalho de inteligência investigativa que poderia ter sido iniciado com a prisão e seu interrogatório ficou em segundo plano.
Na segunda-feira, 31 de julho, o governador e o secretário anunciavam mais cinco mortos, totalizando oito corpos. Tarcísio afirmou estar “extremamente satisfeito” com os resultados e alegou que “não houve excessos”. Na mesma data, o ouvidor da Polícia do Estado, Cláudio Aparecido Silva, afirmou que havia indícios de mais mortes além daquelas anunciadas pelas autoridades e que a operação era desproporcional. Acertou na mosca. Um dia depois, 1º de agosto, o governador admitia pelo menos 14 mortos e prometia investigar “se houve excessos”.
Tanto o governador quanto Derrite, que antes de ser secretário conseguiu se eleger deputado federal pelo PL, em 2022, são filhos diletos do bolsonarismo. O secretário é ex-integrante da Rota, já havia sido deputado federal, quando se notabilizou por projetos como o que propõe proibir a participação de atletas transgêneros em competições. Ele foi afastado da PM, por participar de uma operação com seis mortes.
Comandante em chefe das forças policiais de São Paulo, Tarcísio foi quem apresentou na campanha eleitoral a proposta de retirar as câmeras dos fardamentos da polícia paulista. Felizmente, a promessa ainda não foi levada a cabo. Há cerca de 10 mil câmeras corporais em operação. Caso ao menos uma tenha registrado algo durante a operação que causou a morte das pessoas no Guarujá, pode conter imagens capazes de desfazer os elogios do governador à Operação Escudo. Mas isso é pouco provável.
A julgar pelas denúncias feitas por moradores do Guarujá, é difícil acreditar que os policiais envolvidos deixariam que câmeras ligadas ao uniforme captassem episódios como a execução do vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes, 30 anos. Na noite do dia 28, ele teria saído para comprar cigarros, segundo testemunhas relataram à imprensa, e foi espancado e alvejado por nove tiros da PM num beco da favela Vila Baiana, a poucos metros da casa onde morava. Ainda segundo os vizinhos, estava desarmado e pediu por clemência. Nunes, que vendia açaí na praia, deixou uma filha de 6 anos.
Em outra denúncia, vizinhos relatam que Cleiton Barbosa Moura, 24 anos, teve o filho de nove meses arrancado de seus braços antes de ser executado por PMs. Cleiton estaria dentro de casa e não tinha participação no crime, segundo uma parente que registrou testemunho em vídeo que foi parar nas redes sociais. Frente à denúncia, a PM divulgou resposta-padrão: Cleiton estaria armado e recebeu os policiais a tiros. Afirmou-se o mesmo sobre outros mortos ao longo da operação. A família de Cleiton nega.
No dia 2, com a prisão de Kauan, irmão do atirador Erickson, o delegado Antonio Sucupira Neto, da delegacia-sede do Guarujá, afirmou à imprensa que considerava encerrada a fase de busca por suspeitos no assassinato do policial Reis. Àquela altura, contavam-se 56 presos. Além dos 14 mortos no Guarujá, outros dois suspeitos foram abatidos pela polícia na cidade de Santos por terem, segundo a Secretaria de Segurança Pública, atirado primeiro nos agentes de segurança. Foram apreendidas armas, munição e drogas durante as operações no Guarujá.
Para o ouvidor da Polícia do Estado, além dos casos que vieram à tona demonstrarem violência policial fora de medida a atingir inocentes, o episódio sinaliza um agravante. “A média histórica de mortes em operações policiais na cidade é de 30 ao ano. Em apenas uma semana, foram 14. Não há normalidade nessa operação”, diz Cláudio Silva. No dia 2, ele e uma delegação de parlamentares e representantes de entidades de direitos humanos estiveram nos locais das mortes, e garante que o clima é de medo. Testemunhas narram torturas e execuções.
Silva pretende levar as denúncias adiante e, confirmados os abusos, pedir que os policiais responsáveis sejam punidos administrativa e criminalmente. ”Se não houver respaldo para o devido julgamento, levaremos a cortes internacionais”, diz. Ele afirma não saber quanto tempo isso tudo levará. Mas sabe que a pressão da sociedade é imprescindível, não apenas para resolver o caso, mas para começar a construir um novo modelo de segurança pública. “Eu não sou contra a polícia. Há setores bem treinados e que fazem um bom trabalho. Mas quem é a polícia da polícia?”, completa.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, também disse considerar desproporcional a reação da polícia à morte do soldado. Dino declarou que o governo federal não vai intervir, em respeito à autonomia do estado de São Paulo. Já o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, colocou a Ouvidoria Nacional para acompanhar o caso.
Na opinião do sociólogo Paulo César Ramos, coordenador do projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, a PM paulista, ao adotar uma postura de vingança, demonstrou que o governador não tem controle sobre a corporação. “Ele não tem autoridade prática. Não quer dizer que não tenha responsabilidade. Mas o fato é que a polícia anda com suas próprias pernas. E os verdadeiros criminosos não vão pagar. E o tráfico de drogas vai continuar agindo”.
Essa violência não está circunscrita a São Paulo. Operações policiais na região metropolitana de Salvador deixaram ao menos 19 pessoas mortas, entre os dias 28 de julho e 1º de agosto. No dia 2, outra incursão policial gerou 10 mortes no Complexo da Penha, Rio. No dia 3, o Comissariado da ONU para os Direitos Humanos pediu que o Brasil realize investigação independente sobre esses casos.•