O uso da força pelo Estado
Livro examina a criação das forças de segurança pública no Brasil. Amir Felitte faz abordagem que combina história, direito e ciência política para contextualizar a formação das polícias no país
Bia Abramo
A premissa desta história da polícia brasileira é aterradora: a constituição das forças de segurança pública num país fundado no extermínio de populações originárias e na exploração de mão de obra escravizada como o Brasil se faz, necessariamente, pela repressão discriminatória, pela violência sem Justiça e pela barbárie institucionalizada.
Em uma análise que combina o ensaio historiográfico e político, Almir Felitte, advogado e pesquisador de sociologia do direito, instituições policiais e segurança pública chega ao questionamento que está expresso no subtítulo: o braço policial do poder estatal criaria um Estado paralelo e à margem do Estado, de permanente exceção?
Para tal empreitada, Felitte se propõe a relatar e contextualizar as características de como as polícias se formaram no Brasil, se detendo a examinar as particularidades de um Estado que se constrói aos trancos e barrancos num vasto território desde a época da colonização e formação dos primeiros grupos econômicos até os dias atuais.
Com aporte teórico exposto de maneira clara e muitos dados de advindos de pesquisa meticulosa, o autor delimita um campo de debate essencial: a quem, historicamente, serviram as polícias? E quem, ou quais grupos, essas polícias controlam, vigiam e reprimem com maior truculência?
Para Felitte, a desigualdade de tratamento diante da lei, que funda os grupos garantidores da manutenção da ordem das oligarquias escravistas e permanece à medida em que uma classe trabalhadora se desenvolve nos grandes centros urbanos ao longo da primeira metade do século 20, é constitutiva até hoje das corporações policiais. Ou seja, o Estado que atende a interesses de classe garante a criação de forças de segurança que morrem e matam para atender a esses mesmos interesses. E, como nos deparamos todos os dias, matam muito e grupos específicos – dados levantados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 mostram que, das 6.430 pessoas mortas pela polícia em 2011, 83% são negras.
O volume, portanto, percorre esse caminho da história para tentar mostrar como, apesar de avanços do país nos direitos sociais e da consolidação da democracia desde a o fim da República Velha, a instituição policial é marcada por constantes — ou continuidades.
“Ao analisar a história das polícias brasileiras, podemos constatar que, em mais ou menos dois séculos de desenvolvimento, estas instituições e as práticas de segurança pública no país, apesar das óbvias transformações, foram marcadas pelo continuísmo de alguns aspectos centrais a elas”, aponta. “São justamente estas persistências, aliás, que auxiliam a enxergarmos o sistema policial nacional na ideia de permanência do estado de exceção no Estado democrático brasileiro.
De acordo com Felitte, as práticas e características contínuas, três se destacaram na história policial brasileira e podem ser consideradas centrais ao sistema de segurança pública como mecanismo do estado de exceção permanente vivido no Brasil: o militarismo, a inquisitorialidade e as normas penais genéricas, abertas ou de perigo abstrato.
Não escapam ao autor, as relações perigosas entre as instituições policiais e militares que, no Brasil, criaram a temida figura do PM, e das formações das polícias políticas durante os períodos ditatoriais.
Chegando até o presente, Felitte também faz apontamentos críticos importantes sobre a insuficiência (ou mesmo inexistência) das políticas públicas de segurança desde a redemocratização, que tiveram como algumas das consequências o encarceramento em massa, a adesão da ideologia da guerra às drogas, que penaliza as comunidades mais pobres das grandes cidades, e a impotência de governantes para garantir o direito social de toda a população à segurança pública. •
SERVIÇO
A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?, de Almir Felitte. Editora Autonomia Literária. 288 páginas. Preço: R$ 70. À venda no site autonomialiteraria.com.br