Movimento de Moscou decorre das sanções ocidentais e acende alerta sobre a Europa. Enquanto isso, o preço do trigo dispara no mercado internacional e a guerra na Ucrânia se aprofunda

Mais notícias ruins vindas do Leste Europeu, um ano depois do velho continente mergulhar numa guerra territorial. Na segunda-feira, 17, a Rússia anunciou sua retirada formal de um acordo negociado pela Organização das Nações Unidas para exportar grãos ucranianos através do Mar Negro, potencialmente colocando em risco dezenas de milhões de toneladas de exportações de alimentos em todo o mundo.

Os efeitos da medida foram sentidos imediatamente. Na quarta-feira, 19, o anúncio fez disparar os preços do trigo. Os contratos futuros em Chicago, uma referência global para os preços do trigo, subiram até 9% após a declaração da Rússia. É o maior aumento percentual desde o início da guerra em fevereiro do ano passado. Os preços permaneceram 8% mais altos ao longo de quarta-feira, 19.

Ainda na segunda, o porta-voz do Kremlin, o jornalista Dmitry Peskov disse aos repórteres que o acordo havia “essencialmente parado” e que a Rússia não cooperaria mais. Moscou reclama desde que a ONU e a Turquia intermediaram o acordo pela primeira vez há um ano. O governo Putin diz que que as sanções ocidentais estavam segurando um acordo paralelo para permitir pagamentos, seguros e remessas para as próprias exportações agrícolas de Moscou.

Peskov apontou que a Rússia retomaria a participação “assim que os acordos relevantes forem cumpridos”. Um diplomata ocidental e um funcionário da ONU confirmaram que Moscou havia dito que se retiraria do acordo. A iniciativa permitiu que cerca de 33 milhões de toneladas de alimentos fossem exportadas por mar da Ucrânia desde agosto, mais da metade para os países em desenvolvimento, de acordo com o comitê de coordenação criado para monitorar sua implementação.

O jornal britânico Financial Times ouviu Carlos Mera, chefe dos mercados de commodities agrícolas do Rabobank. Ele disse que, sem um acordo com o Mar Negro, a Ucrânia teria que redirecionar as exportações através de suas fronteiras terrestres e portos menores pelo rio Danúbio. Isso aumentaria os custos e reduziria os lucros dos agricultores, o que poderia levá-los a “plantar menos na próxima temporada, colocando mais pressão sobre os suprimentos daqui para frente”.

É a segunda vez que a Rússia se retira do acordo de grãos. Em novembro do ano passado, Moscou saiu brevemente antes de se reunir um dia depois sob pressão do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Aliado de Moscou, Erdogan disse na segunda-feira que acreditava que Putin queria que o acordo de grãos continuasse e que Ancara havia “intensificado” seus esforços diplomáticos.

A chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, condenou na segunda-feira o “movimento cínico da Rússia” de desistir da iniciativa do grão, embora um funcionário da UE tenha dito que Moscou “ainda estava deixando a porta aberta” para continuar as negociações. “Parece mais uma suspensão”, acrescentou o funcionário, de acordo com o relato do FT.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, pediu que o acordo fosse restaurado “o mais rápido possível”. “O resultado da ação da Rússia hoje armando alimentos, usando-os como uma ferramenta, como uma arma, em sua guerra contra a Ucrânia, será tornar os alimentos mais difíceis de encontrar em lugares que precisam desesperadamente dele”, disse.

John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, disse que a Casa Branca continuaria a trabalhar com aliados para “permitir que os grãos russos e ucranianos cheguem ao resto do mundo, inclusive garantindo que nossas sanções não tenham como alvo… Comida ou fertilizante russo”. E acrescentou: “Não há nenhuma maneira possível, apenas matematicamente, de tirarmos tanto grão agora quanto seríamos capazes de sair através do acordo de grãos se tivesse sido estendido”.

A Rússia perdeu o interesse no acordo depois que os esforços para facilitar os caminhos para suas próprias exportações de alimentos e fertilizantes entraram em conflito com as sanções ocidentais. Embora os EUA e a UE tenham introduzido desenhos para os exportadores agrícolas da Rússia e facilitado os pagamentos a um grande banco estatal russo, Moscou reclamou que não havia sido feito o suficiente para permitir que suas exportações voltassem ao mercado.

“Absolutamente nada foi feito — quero enfatizar isso. É tráfego de sentido único. Nem um único ponto ligado ao fato de a Rússia ter seus próprios interesses foi cumprido”, disse Putin. David Harland, diretor do Centro de Diálogo Humanitário, com sede em Genebra, que ajudou a intermediar as negociações de grãos, disse que a Rússia “sentiu que não estava recebendo muito em troca e poderia muito bem continuar a espremer a Ucrânia”. Ele acredita que Erdogan ainda pode persuadir a Rússia a retornar.

As reclamações da Rússia sobre as sanções têm sido um elemento crítico para reunir simpatia por sua posição sobre a guerra de países do sul global, particularmente na África, que foi duramente atingida pelo impacto da guerra nos preços dos alimentos e fertilizantes.

A nova ameaça ao acordo de grãos vem antes da cúpula Rússia-Africana da próxima semana em São Petersburgo, na qual uma série de líderes africanos devem participar. Uma delegação africana liderada pelo presidente Cyril Ramaphosa, da África do Sul, visitou Kiev e São Petersburgo no mês passado em um esforço para mediar o fim da guerra e ajudar a garantir os suprimentos agrícolas.

Mas Putin disse ao colega sul-africano que as barreiras às exportações agrícolas da Rússia não haviam sido levantadas. E reclamou: “o principal objetivo do acordo, que é o fornecimento de grãos aos países que precisam dele, inclusive na África, não foi realizado”. Na avaliação do Rabobank, o movimento do Kremlin forçaria os países da África e do Oriente Médio a comprar trigo russo. •

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