Nova regra. Velhos problemas
O marco fiscal de Haddad muda a lógica do arrocho com desinvestimento, o modelo neoliberal que se impôs a partir do Golpe de 2016. O plano permitirá ao Brasil investir na área social e promover a reconstrução com menos desigualdades
Em 100 dias de governo, uma das tarefas do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi elaborar saídas para um problema que já dura muitas décadas. Depois de muita articulação política e outro tanto de cálculos e pesquisas, a equipe econômica de Haddad acertou um pacote para assegurar uma regra fiscal coerente e anticíclica que recupere a capacidade do Estado brasileiro de promover crescimento e retomar as políticas de inclusão social, mesmo em tempos de vacas magras. Parece pouco, mas há uma certa dose de ousadia nesta proposta.
O eixo da nova política fiscal, apelidada pela imprensa corporativa de “arcabouço fiscal” é composto por dois princípios básicos. O primeiro é que o cálculo de investimentos do governo federal será inserido no orçamento a partir de uma receita existente, e não mais de uma expectativa futura de arrecadação.
O segundo ponto é que o montante desses investimentos não poderá exceder a receita, mesmo em momentos de bonança econômica. Mas tampouco poderá ser reduzido em relação ao ano anterior, ainda que as receitas não tenham aumentado. Isso quebra a lógica que imperou na política econômica desde a queda de Dilma Rousseff da Presidência, com o Golpe de 2016.
Pela proposta fiscal, o governo Lula pretende investir o equivalente a 70% do crescimento da arrecadação de impostos ocorrida no ano anterior. Os 30% excedentes serão destinados a uma reserva, que poderá ser acionada quando houver instabilidade econômica ou alguma nuvem no horizonte do ambiente de negócios do país.
Como o orçamento da União é elaborado pelo governo e apresentado ao Congresso entre junho e julho, é possível construir uma proposta para o ano seguinte com a informação precisa sobre o crescimento da economia e da arrecadação. “Não se crava um número imaginário e se sai correndo atrás dele, como era no Brasil”, disse Haddad, durante a apresentação da nova regra no final de março.
No caso de a economia não crescer ou diminuir de um ano para outro, fica assegurada a aplicação de um mínimo de 0,6% do PIB em investimentos. Esse percentual baseia-se na taxa média de crescimento vegetativo populacional no país.
Essa garantia de recursos estará associada a uma meta de resultado primário do governo – a diferença entre arrecadação e despesas. A nova regra fiscal prevê a necessidade de redução gradual do déficit até que se atinja um superávit de 1% em 2026.
As novas metas anuais serão regidas por bandas de 0,25%, para mais ou para menos (veja gráfico abaixo). Caso a banda mínima em determinado ano não seja atingida, ainda que as receitas aumentem, a taxa de novos investimentos será reduzida de 70% para 50% dessas receitas.
Os recursos disponíveis para novos investimentos ficam também limitados a 2,5% do crescimento da arrecadação de um ano para outro, como uma espécie de subteto. Para explicar, Haddad recorreu à hipótese de um crescimento anual de receitas de 5%: “70% de 5% é 3,5%. Vamos ficar com os 2,5%”.
Historicamente, o percentual de crescimento das receitas é próximo do resultado do PIB. Para Haddad, o limite de 2,5% é positivo: “forma um colchão na fase boa para usá-lo na fase ruim”. Segundo o ministro, isso dá flexibilidade. “Assim não se desorganiza o Estado, especialmente em relação aos direitos constitucionalmente instituídos”, explicou, referindo-se, obviamente, aos repasses obrigatórios assegurados pela Constituição para áreas vitais.
Portanto, as despesas de custeio e verbas previstas no texto constitucional — saúde, educação e previdência — e o chamado piso da enfermagem estão garantidos e não fazem parte desses investimentos abarcados pela proposta do novo pacote fiscal.
Com esse novo modelo, o governo Lula quer substituir o teto de gastos, que congelou os investimentos e deu início ao desmantelamento das políticas de atendimento à população. O teto foi criado em 2016, após o golpe contra Dilma. Antes do teto, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que funcionou a partir do ano 2000, tinha, entre seus defeitos, na avaliação de Haddad, o de não prever mecanismos anticíclicos que evitassem cortes abruptos em momentos de crise.
O ministro da Fazenda ressalta que o sucesso do plano depende da robustez da arrecadação. Além do recolhimento de tributos e impostos estar relacionado ao crescimento econômico, também virá de ajustes que incluirão grandes grupos que se utilizam de sonegação ou elisão fiscais e, portanto, não contribuem. Haddad garantiu mais uma vez que não haverá criação nem aumento de impostos, apenas correção de injustiças.
Outra aposta do governo Lula é que as novas regras fiscais vão melhorar a avaliação do Brasil junto às agências internacionais, elevando a atratividade para investidores nacionais e estrangeiros. O Brasil perdeu o grau de investimento em 2015.
A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, afirma que a nova regra fiscal conjuga estabilidade e previsibilidade. “É fácil de ser entendida e é transparente. Por ser transparente, é crível”, elogia. O foco não é diminuir despesas, mas ter qualidade nos gastos. “Não é possível, num país líder de produção de laranja, as crianças receberem suco em pó na merenda”, criticou. Daí a necessidade de manter políticas públicas a salvo de cortes.
Ao mesmo tempo, na opinião de Tebet, outro objetivo será alcançado com rapidez: estabilidade. “Vamos conseguir já no ano que vem zerar o déficit. Vamos estabilizar a dívida pública”, diz.
Economistas do campo progressista ouvidos pela Focus consideram as regras muito restritivas ao gasto público. No entanto, elogiam que há uma flexibilidade na proposta, uma vez que ela não será objeto de emenda constitucional, e sim um projeto de lei. Poderá ser alterada com mais facilidade no futuro.
Uma das razões possíveis para a rigidez com os gastos, opinam, é sinalizar para o BC, refratário à política social de Lula, não haverá “gastança”. Apesar da ortodoxia da autoridade monetária — chefiada por Roberto Campos Neto, um indicado de Paulo Guedes — isso permitirá a redução da taxa básica de juros.
Cada ponto de redução da Selic representa entre R$ 40 bilhões a R$ 50 bilhões anuais nas despesas com dívida pública. Analistas de mercado ouvidos pela mídia corporativa sinalizam que as novas regras tornam possível e urgente a redução dos juros básicos.
Outra aposta é que com a alavancagem dos investimentos estrangeiros, a partir de estratégias como a parceria com a China, mas também com o setor privado, o volume de recursos para projetos pode amenizar os efeitos da austeridade das novas regras. Ou até que finde o mandato de Campos Neto, em 2024. •