Poeta rebelde e porta-voz de uma geração, Cazuza faz falta num país que está em constante busca de respostas para suas proprias mazelas. Ele morreu aos 32 anos, vítima de AIDS, mas era uma voz lúcida e um bálsamo na caretice nacional

O 'exagerado' faria 65 anos

Um jovem em ebulição permanente, de carreira meteórica. Um poeta exagerado, compositor intenso, de vida boêmia e uso de drogas sem medidas pelas madrugadas cariocas. No meio de uma geração que experimentava liberdade sexual, Agenor de Miranda Araújo, o Cazuza, deu persona ao transgressor do Leblon.

Filho de família milionária, o rebelde cheio de causas transitava sua revolução pela rua Dias Ferreira, atravessando madrugadas entorpecidas de ilícitos e encontros que mudariam sua vida – e a do rock brasileiro. Se não tivesse morrido vítima da Aids há três décadas, Cazuza teria completado 65 anos de idade em 4 de abril.

Foi um dos nomes pioneiros ao assumir publicamente a doença. No sorriso do hoje eterno menino tresloucado, homossexual assumido, que fez do corpo adoecido uma luta social e do canto um, há uma voz potente que cantou o país e figura entre os mais prestigiados até hoje.

Cazuza nasceu no Rio de Janeiro, em 4 de abril de 1958. É filho de Lucinha Araújo, uma ativista social, e de João Araújo, um dos nomes mais poderosos da indústria musical brasileira, fundador da gravadora Som Livre.

Desde pequeno, o menino Cazuza viveu envolto à música pelo contato constante com as produções do pai, que lançava sucessos atrás de sucessos em seu selo. Artista privilegiado, cresceu em volta dos maiores nomes da música popular brasileira, alguns ainda mais “estrelados” à época, estourando, como Caetano Veloso, Elis Regina, Gal Costa, Gilberto Gil, João Gilberto, os Novos Baianos, dentre outros que acabaram por formar uma referência de música brasileira na formação de Cazuza – alguns, de ídolos a amigos e intérpretes de suas canções.

Fã desde pequeno da dramaticidade musical e latina de cantoras como Maysa, Dolores Duran, e também do desespero passional de Lupicínio Rodrigues, Cazuza também se influenciou, quando morou em Londres – um pré-contato com a geração beat, que teria logo depois nos Estados Unidos – por lendas como Janis Joplin, Led Zeppelin e Rolling Stones. Quando se mudou para a terra ianque, no final de 1979, se maravilhou com a literatura beat e com os poetas malditos – transformando-se ele próprio em uma espécie de um deles, num impulso para vivê-los em toda sua intensidade.

Foi no famoso Circo Voador, na capital fluminense, que o amigo de todos e filho do midas que Cazuza virou-se para a arte por completo. Na época, fez teatro com o grupo Asdrúdal Trouxe o Trombone, capitaneado por Regina Casé e Hamilton Vaz Pereira.

Quando estreou na voz, neste período, o fez em razão da recusa de Léo Jaime para uma certa banda de garagem que se formava, então, no bairro do Rio Comprido, no Rio de Janeiro. Léo não quis e indicou Cazuza para os vocais. Ali, nascia o Barão Vermelho, que conquistou o país – não sem um empurrão do todo poderoso da Som Livre, que mais tarde deixaria o grupo “de lado” para focar na carreira solo de Cazuza.

Ao lado de Robert Frejat, intérprete que mais gravou composições de Cazuza, de Dé Palmeira, Maurício Barros e Guto Golffi, o menino Agenor integrou o Barão Vermelho e dali em diante a vida de nenhum deles seria a mesma, em especial a de Cazuza.

Com as composições da dupla Cazuza-Frejat, a banda alçou o sucesso do rock nacional com gravações autorais que estouraram no país. No álbum de estreia já nascia um dos maiores sucessos: “Todo amor que houver nessa vida”. Esta é uma de suas canções mais gravadas até hoje. Nos anos 80, com o fervor em torno do grupo e Cazuza tonificando o sucesso de todos, Caetano Veloso chegou a apontá-lo como o maior poeta da geração.

Em citações, muitas vezes apócrifas, assim como ocorre com Caio Fernando Abreu, Cazuza é um dos campeões na internet. Uma rápida busca em seu nome no Twitter ou no Instagram, é possível achar dezenas de perfis dedicados a fotografias e trechos de suas músicas e pessoas publicando aspas de seus escritos como legenda para fotos – fenômeno mais pop do que rock, mas ossos do tempo.

Muitos se perguntam como seria um Cazuza com 65 anos, um exagerado analógico com acesso ao instantâneo do digital, a velocidade onipresente da comunicação. É possível que risse do que se chama viralizar, muito mais possível ainda que permaneceria um viralizado. Suas falas em entrevistas a Jô Soares e Marília Gabriela, por exemplo, já doente com AIDS, aparecem sempre em recortes de vídeos nos Reels e TikToks da vida.

Em 15 e 20 de janeiro de 1985, o Barão Vermelho se apresentou na primeira edição do Rock in Rio. A apresentação da banda, disponível no YouTube, tornou-se antológica por coincidir com a eleição do presidente Tancredo Neves e com o fim da ditadura militar. Cazuza anunciava ao público presente. E, para comemorar, cantou “Pro dia nascer feliz”.

Pós-Barão Vermelho, lançou-se em voo solo e era só Cazuza. No sol, a praia. Na noite, a rua. O sucesso da banda o catapultou a astro nacional do rock e sua persona se construiria em um jovem cada vez mais “consciente”, revoltado e dedicado à música como uma forma de declarar polêmicas, um tanto sem medo.

Entre os clássicos compostos por cazuza, eternizados em sua voz e na de outros gigantes da música brasileira, estão “Maior abandonado”, “Bilhetinho azul”, “O tempo não pára”, “Bete Balanço”, “Mal nenhum”, “Exagerado”, “Codinome beija-flor”, entre tantas outros.

O cantor e compositor deixou 230 obras que já foram gravadas 272 vezes por outros artistas, segundo o Escritório Central de Direitos Autorais (Ecad), que também fez um levantamento das músicas mais tocadas de Cazuza nos últimos dez anos. Dessas, cinco foram gravadas em parceria com Frejat.

A mais regravada é “Codinome Beija-Flor”, e a mais tocada, “Exagerado”. Segundo Lucinha Araújo, responsável pelo espólio, há ainda canções inéditas guardadas. Ney Matogrosso, que teve Cazuza como seu grande amor — os dois viveram um romance antes mesmo de Cazuza se lançar —, tem um projeto com Lucinha de gravar um especial com estas letras inéditas.

Rosto e nome emblemáticos dos anos 1980, Cazuza era uma espécie de símbolo das transformações sociais, culturais, econômicas e comportamentais de sua época. Era uma voz jovem, de jovens, com alcance nacional. Talvez fosse mesmo só um rebelde do Leblon, ou como dizem hoje, um ‘nepo baby’, por ter nascido em berço de ouro, mas fez questão de reconhecer de onde vinha e criticar a desigualdade que o fazia privilegiado em um país de miseráveis, sobre quem cantou, por quem pediu piedade. Nos costumes, transgrediu a sexualidade ao tratá-la como uma afronta natural – ‘sou assim, que posso fazer?’.

Crítico desde sempre, em um de seus registros mais pungentes, se mostrava revoltado, já em 1988, com o discurso religioso que tomava pauta no país. Indagado por Marília Gabriela no programa “Cara a Cara” sobre algo ou alguém por quem teria desprezo total, não titubeou e aproveitou para declarar-se um artista de esquerda: “Meu desprezo total? Pela direita, pela Igreja. Eu acho a direita uma coisa tão mesquinha… eu gosto de viver no coletivo. Eu sou de esquerda porque eu tenho muito amigo, eu gosto de dividir minhas coisas. […] Você sabe que ela não prega a divisão no fundo, né? A igreja quer dinheiro”, disse. Apesar de já doente, Cazuza negou à Marília que estivesse com AIDS.

Dois meses após a transmissão da entrevista, no entanto, Cazuza revelou a Zeca Camargo, então repórter da Folha de S. Paulo, que era portador do vírus e que estava doente, mas empolgado com um possível tratamento no Boston Medical Center, nos Estados Unidos, onde chegou a ficar internado e com esperança de cura.

Nesta entrevista, o artista explicou por que negou a doença à Marília Gabriela. “Ela veio me falar que não fazia sentido o fato de eu negar o vírus e a minha posição liberal como artista. Aí eu pensei, vi que ela tinha razão e achei melhor parar de esconder”, afirmou.

Em abril daquele ano, a revista Veja, como muitos veículos que não se davam ao trabalho de tratar o tema com responsabilidade, esclarecendo sobre a transmissão do vírus HIV e a Aids — e sabendo do estigma e o preconceito que carregavam ao paciente portador e doente —, estampou um Cazuza esquálido, com sua sentença de morte declarada em uma publicação de distribuição nacional.

“Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”, dizia Veja. Apesar das polêmicas e do escrutínio, Cazuza prestava um serviço à saúde pública brasileira, em especial a homossexuais, sendo a primeira personalidade nacional a fazer essa declaração na época. Ajudou milhares de vítimas da doença e do preconceito e abriu debate sobre o tema.

O legado de Cazuza hoje é imenso. Além da vasta obra inédita que deixou, algumas já até gravadas, como a emblemática “Poema” (escrita em homenagem à avó paterna e guardada com ela até a morte), que sua mãe entregou para que Ney Matogrosso a gravasse com exclusividade, mantém presença ainda pujante em versões, encontro de amigos e até mesmo como hinos de canções de protesto e críticas sociais e políticas (— “Brasil”, na voz de Gal Costa, por exemplo, é um caso. E “O tempo não pára”, outro.

Cazuza morreu aos 32 anos de idade, em 1990, enlutando um país e a música. Sua mãe, Lucinha Araújo, comandou de 1990, logo após sua morte, até 2020, por 30 anos, o Instituto Viva Cazuza. A instituição, além de manter viva a memória do cantor, dava apoio a pacientes com Aids/HIV, em especial crianças abandonadas.

Infelizmente, não sobreviveu à crise da pandemia e as atividades foram encerradas. A coragem e o exemplo de luta, verdade e a transgressão do poeta, no entanto, foram capazes de ajudar milhares de famílias e portadoras do vírus HIV mesmo após sua partida.

Um sonho de Cazuza ainda vivo. Homenageado com filmes, musicais e canções, segue figura da MPB abrindo portas. •