Novo ensino médio é adiado
Ministério da Educação decide adiar o cronograma para ampliar o debate da eficácia da reforma aprovada por Temer em 2017. Apenas 60% da grade estava ocupada com conteúdo obrigatório — português, matemática, ciências e humanidades
A implantação da nova etapa da reforma do Ensino Médio foi suspensa pelo Ministério da Educação. O governo Lula decidiu adiar o prazo para as novas exigências da mudança aprovada em 2017, durante o governo de Michel Temer. Em linhas gerais, o chamado Novo Ensino Médio prevê que 40% da carga horária seja destinado a “percursos optativos” de acordo com interesses dos alunos ou de formação técnica, o que significa que apenas 60% do tempo seria destinado a conteúdos obrigatórios — português, matemática, ciências e humanidades.
Diante do acirramento do debate, o Ministério da Educação soltou nota. A pasta afirma a “convicção de subsidiar qualquer tomada de decisão e reavaliação quanto ao Novo Ensino Médio com base em diálogo amplo e democrático”. Nesse processo de reavaliação, estão previstas uma consulta pública com audiências, oficinas de trabalho, seminários e pesquisas nacionais com a comunidade escolar sobre o processo de implementação do modelo. Isso corrobora a intenção de Lula de reconstruir o país ouvindo seus principais protagonistas. No entanto, depois do anúncio do governo Lula, recomeçou a grita com a correção de rumos.
A imprensa corporativa deu voz às figurinhas carimbadas de sempre, que classificaram a decisão como “retrocesso”, “atraso”, como se a tomada de fôlego para reavaliar a reforma fosse simplesmente um recuo populista diante da pressão das entidades de professores e alunos — omitindo o fato de ambas são as principais implicadas nas mudanças.
Até empresários do mundo do entretenimento entraram na parada midiática em troca de mensagens nas redes. O lobby das escolas particulares, para as quais a implantação do novo ensino médio têm menores dificuldades e pode, inclusive, ser boa para os negócios, já ameaça entrar na Justiça com essa revogação parcial para rediscutir o modelo.
O diretor do Colégio Bandeirantes, escola de elite de São Paulo e membro do conselho consultivo da Associação Brasileira das Escolas Particulares (Abepar), Mauro Aguiar acusa a decisão do governo de “ser ideológica”. “Existe uma pressão política que não tem nada a ver com educação e começa a confundir o próprio ministério ao ponto de ele não conseguir orientar e dar um norte”, questionou.
A presidente da Associação das Universidades Particulares, Elizabeth Guedes — irmã do ex-ministro Paulo Guedes — faz coro: “O Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] como está é uma inutilidade que nada avalia, e continuaremos como estávamos: patinando no passado”.
Importante lembrar que Jair Bolsonaro, que nomeou quatro ministros da Educação para desmontar o ensino superior, favorecer colégios militares e perseguir professores em sala de aula em nome da “escola sem partido”, é um entusiasta da reforma do ensino médio. Ele tentou, ativamente, insuflar a malta bolsonarista para interferir em questões do Enem para “testar” a isenção dos corretores na redação em temas como o Golpe de 1964, o racismo estrutural e até o formato da Terra.
O debate em torno da reforma opõe entidades de educadores e de estudantes, que vêem na reforma um empobrecimento do currículo dedicado às disciplinas de conteúdos ditos tradicionais a organizações de caráter educativo financiadas pela iniciativa provada, empresas de sistemas de ensino e associações comerciais de escolas. O embate é particularmente espinhoso dada a desigualdade das redes públicas e particulares, uma vez que as condições de implantação de cursos de fato atraentes e formativos a adolescentes e jovens são diferentes na escola privada e na pública.
Entre os motivos alegados para a mudança, à época em que foi debatida e aprovada no Congresso, estão vários estudos pedagógicos apontando riscos na queda da qualidade de ensino ao final do percurso escolar obrigatório por lei. Isso sem falar nos índices de abandono e desencanto dos alunos com a educação e a ideia de que há uma quantidade de disciplinas obrigatórias (que eram 13) em aulas expositivas e metodologia ultrapassada. Se os sintomas detectados eram visíveis a todos, o mesmo não se pode dizer dos remédios.
O lobby por uma educação dita meritocrática que empurra jovens e adolescentes das classes populares precocemente para o mercado de trabalho, a pressão das bancadas da bíblia pela tal da “escola sem partido” (incluindo a aprovação do homeschooling) e a pressão de empresas educacionais que “vendem” sistemas de ensino fechados provocou distorções enormes no tratamento do tema. Além disso, a proximidade das fundações de capital privado que oferecem formação a professores, material didático, ajuda financeira para implantação de bibliotecas, laboratórios e outros equipamentos necessários aos percursos ditos mais atrativos aos estudantes deixou educadores e alunos, sobretudo das escolas públicas, à mercê de matérias ainda mais desinteressantes que as aulas de gramática.
“É uma grande falácia dizer que os alunos estão escolhendo estudar o que os interessa. Eles estão tendo que aceitar o que as escolas conseguem oferecer. A reforma esvaziou o aprendizado do ensino médio”, aponta Daniel Cara, professor da USP.
Levantamento junto a secretarias estaduais de educação aponta que nada menos que 1.526 opções de matérias foram criadas e vem sendo oferecidas como alternativa aos estudantes. De acordo com alunos entrevistados pela Folha, além de cursos estapafúrdios e não-condizentes com a realidade social do estudantado — como “Torne-se um milionário” ou que empurram aos alunos mais pobres ao “bico” travestido de “empreendedorismo” — estão roubando tempo de estudo para conteúdos que importam de fato. Um aluno de 18 anos que pretendia ingressar no curso de Geografia na universidade aponta que não conseguiu se aprofundar: “Em vez de estudar história e geografia, tive que fazer uma disciplina de comunicação e marketing”, lamentou.
As diferenças regionais — o ensino médio é regido por determinações curriculares federais, mas as secretarias estaduais têm autonomia para definir e fiscalizar critérios — também provocaram distorções importantes. No Piauí, por exemplo, são sete disciplinas, mas no Distrito Federal, 601.
A maioria dos profissionais que já pisaram em sala de aula como professores afirmam que o processo de preparação de curso e aula, além das avaliações e acompanhamento dos alunos, consome muitas horas de trabalho, muitas vezes não-remunerado ou mal remunerado de forma inadequada. •