Entrevista | Tarso Genro – “Lula está num bom caminho para reconstruir o Brasil”
Ex-prefeito de Porto Alegre, ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro da Justiça avalia que o governo está no rumo certo, mas tem imensos desafios pela frente. Ele diz que o Estado precisa recuperar sua capacidade de investir e financiar programas sociais para dar melhores condições de vida ao povo. E prevê que Bolsonaro será condenado e preso pelos crimes cometidos
A marca do novo governo Lula — “união e reconstrução” — está sendo erguida com as três bandeiras encampadas desde o início do mandato: a indignação diante da miséria e o combate à fome; o retorno do Brasil ao cenário internacional e, por fim, o novo arcabouço fiscal que deve gerar sustentabilidade para o crescimento e o desenvolvimento do país. A avaliação é de Tarso Genro.
Ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro da Educação e da Justiça, Tarso se mostra esperançoso de que o país possa não apenas voltar às condições de vida e de bem-estar social que tinha até antes do Golpe de 2016, mas também avançar na garantia de direitos previstos na Constituição de 1988 que nunca se tornaram realidade.
O advogado e professor diz acreditar que o domínio das novas tecnologias de comunicação pelos setores progressistas da sociedade é fundamental para vencer o fascismo. Mas, ao mesmo tempo, espera que a condenação de Jair Bolsonaro e, consequentemente, sua inelegibilidade, tenha como resultado o enfraquecimento da direita que se utiliza da distorção da realidade para ativar afetos e gerar ódio contra a política.
Nesta entrevista à Focus Brasil, Tarso também trata do papel deplorável da grande mídia nos últimos anos. Ele acredita a velhja imprensa quase chegou a comprometer a credibilidade e a capacidade de ação de ministros do Supremo Tribunal Federal.
Focus Brasil — O governo Lula está completando 100 dias. Qual é a sua avaliação?
Tarso Genro — Bem, antes de dar opinião, tem que fazer uma referência a uma mudança completa da situação internacional e da nacional, ambas relacionadas com a emergência do fascismo aqui no Brasil. Estamos diante de um fascismo meia boca, o fascismo caracterizado por surtos psicóticos de um líder político, que é diferente do fascismo tradicional, mas também tem traços marcantes, adequados a ser classificado como fascismo.
Tem que se levar em consideração também a deterioração que o Estado brasileiro sofreu nesse período e a utilização massiva desses instrumentos tecnológicos e comunicacionais novos, que impregnaram a sociedade brasileira de uma série de anti-valores que desgastaram os pressupostos da Constituição de 1988. As margens que um governo democrático e progressista, como é o do Lula, têm para se mexer são estreitas.
Acho que o governo Lula vai bem porque adotou três temas essenciais para atravessar este rubicão, da crise e da desmoralização completa das instituições democráticas no Brasil, feitas pelo governo desastrado do Bolsonaro. Desastrado para nós. Muito bem elaborado e muito bem desenvolvido no terreno das reformas neoliberais, de acordo com os interesses das classes dominantes.
Quais os três temas essenciais que nos ajudarão a uma travessia bem sucedida? O primeiro é uma política externa ativa, propositiva e que recoloca o Brasil no concerto internacional como player importante. Segundo, Lula elegeu a questão da fome como essencial, como um elemento decisivo para uma recoesão social mínima no país. E a terceira questão é o arcabouço fiscal, dessa margem pequena que o Brasil tem em função desse estrago que vamos demorar muito tempo para recuperar, não só nas lesões ao Estado, ao amor próprio do brasileiro, à cultura, à nossa política de solidariedade, nossa cultura de resolver as pendências dentro da ordem, como ocorreu na Constituição de 1988. A gente precisa de uma recoesão dessa natureza.
Temos problemas graves pela frente, inclusive no sistema de alianças. Temos escolhas difíceis para fazer. Mas acho que as coisas começaram bem. Acho que Lula elegeu bem esses temas e tem agora que pactuar o seu governo, inclusive dentro do ministério, desenvolver com os ministros um discurso político comum.
— Recentemente, em um artigo, o senhor falou sobre os limites da democracia no Brasil, um tema com o qual a esquerda sempre teve uma certa dificuldade de lidar (ou de discutir). Começou a se falar de uma categoria que intitulou de “Estado social constitucional”. Como é que se desdobraria isso? Vai além do social-liberalismo, da social-democracia, numa visão menos eurocêntrica?
— Exato. Você pode verificar que na elaboração jurídica e no processo político democrático brasileiro, nossos juristas estiveram sempre divididos entre duas grandes correntes, evidentemente com algumas gradações. Uma de origem marxista, de origem neomarxista ou frankfurtianos, que analisam sempre o Estado a partir da sua ossatura econômica e da dominação econômica que passa por dentro dele. E colocando a análise da questão do direito, da teoria constitucional, sempre a partir de uma visão ou “rupturista” ou de uma visão revolucionária. Visão rupturista, inclusive, no sentido democrático que é pela Assembleia Nacional Constituinte. Esta é uma corrente. Outra corrente é a dogmática dos juristas tradicionais, que analisa apenas o direito positivo parado, não dinamicamente, cristalizado dentro da norma e a partir disso fazem as suas elaborações democráticas mais ousadas ou menos ousadas, mas por dentro desta visão de ossatura jurídica, ossatura normativa que o Estado tem.
Penso que há uma confusão nessas elaborações. Todas são válidas, criativas, são importantes para refletir. Mas o que temos que refletir agora é o seguinte: temos uma ossatura constitucional, que tem legitimidade, que constituiu no Brasil um Estado social e que este comando normativo que vem da Constituição de 1988, não foi implementado. Não temos a efetividade dos direitos fundamentais que estão ali. Não temos nenhuma completude para conseguir fazer verter esses direitos não só dentro da esfera pública em geral, mas na relação social para as bases da sociedade. Permanece aquela moldura magnífica da consulta de 1988, mas com limitações que são da esfera da política, do tipo de organização do Estado, do tipo de legislação eleitoral, do tipo de partido político configurado dentro desse processo.
Então, quando eu falo em Estado social constitucional, Estado de direito constitucional, estou me referindo a uma questão muito concreta. Por exemplo, temos um Banco Central que é uma estrutura soberana dentro do Estado, e isso não está na Constituição. Então, esta soberania, não autonomia, que pode ser dada, não a capacidade de decidir sobre os temas que lhe são conferidos pela esfera da política para decidir de maneira técnica quando for necessário, mas uma soberania que é emprestada ao Banco Central que obedece a uma lógica não do sistema jurídico, do nosso Estado constitucional do Direito, e sim a uma lógica financeira que vem de fora para dentro e que coloca uma espécie de apêndice dentro da estrutura do Estado, que tem autonomia em relação aos demais, que é quem controla a moeda, quem decide sobre os juros, quem toma conta das relações financeiras internacionais que passam ali por dentro é aquele órgão. O presidente da República não precisa estar de acordo, que aquilo é uma função técnica, como se existisse uma função técnica que não fosse inspirada por uma doutrina filosófica, por uma doutrina que vai colocar a técnica a serviço de alguma coisa.
Então, este é um exemplo que esse Estado democrático, social e constitucional vai ter que resolver ao longo dessa travessia do rubicão, como eu digo, em direção a um novo Estado de Direito, um Estado reformado.
— Fala-se muito sobre a necessidade de disputar a sociedade dividida. Mas como é que se trava o debate contra a mentira propagada pelas redes sociais? Quer dizer, qual é a estratégia possível nesse cenário?
— Temos que retornar a alguns antecedentes dessa situação que se criou. A análise que se fizer da dinâmica política do país, inclusive em relação à construção de um sistema democrático de informação, de um sistema democrático de caça e de desmoralização da mentira, tem que estar vinculado a um fato político anterior: um grupo criminoso assumiu o poder no Brasil. Então, a nossa Constituição social e democrática, que está estruturada dentro do Estado de Direito, foi destruída por dentro. Os órgãos de Estado, como a Polícia Federal, Banco Central, Polícia Rodoviária Federal, o Carf e tantos outros órgãos importantes, foram subvertidos pela extrema direita e foram subvertidos de maneira aberta. Em um primeiro momento, nos dois, três primeiros anos do governo Bolsonaro, apoiados inclusive pela grande mídia no Brasil. Bolsonaro não é um acaso, ele foi um recurso utilizado pelas classes dominantes do país para minar o que tem de positivo e de grandioso dentro da Constituição de 1988, inclusive do seu Estado social. Se me perguntassem: “me simplifica esse contrato?”. Eu simplifico da seguinte forma: Olha, deixa o Bolsonaro fazer as loucuras dele, porque como disse o Fernando Henrique lá em Portugal, soube disso dito por amigos que estavam nessa reunião, “não, o Bolsonaro não tem problema nenhum. As instituições controlam ele”. O Fernando Henrique disse lá. E não controlaram. E, naquele momento, inclusive o próprio presidente FHC estava envolvido numa visão que seria melhor o Bolsonaro ganhar a eleição do que o Haddad. Eu até acompanhei algum diálogo do Haddad com o Fernando Henrique e soube disso de maneira cabal.
O que ocorreu, portanto, de lá para cá, foi essa destruição da energia democrática e republicana do Estado que passou pela desmontagem e o aparelhamento vergonhoso desses órgãos, tolerado e estimulado pela grande imprensa. Isso gerou um déficit democrático no Brasil que ainda estamos todos por conquistar, por levar para um patamar novo, que é o funcionamento das instituições democráticas de maneira adequada. Você vai perceber, por exemplo, que a desmontagem começou de uma maneira completamente atípica aqui.
— E como começou?
— Vamos lembrar. Primeiro, foi na sociedade civil. Movimentações ocorreram com reflexo internacional, eu mesmo participei de muitas delas aqui e no exterior. E isso foi extremamente importante, como aquela reunião em Portugal, com líderes espanhóis e portugueses que reuniram 1000 pessoas da intelectualidade e da política portuguesa e espanhola.
Esses movimentos tiveram reflexos no processo, mas ele começa de maneira diferente. Isso se iniciou quando um desembargador aqui do Rio Grande do Sul, Rogério Favreto, que tinha assumido a responsabilidade de deferir ou não um habeas corpus impetrado para a libertação do Lula, deferiu o recurso e, embora a sua ordem não fosse cumprida, porque foi obstaculizada pela polícia e pelo [Sergio] Moro, gerou um escarcéu.
Depois tivemos a movimentação dentro do Supremo Tribunal Federal de ilustres ministros que já estavam por aqui, com todas as perversões que tiveram que aguentar e com toda a manipulação que a imprensa fazia, inclusive em respeito as suas atitudes. Um homem como [Ricardo] Lewandovski, por exemplo, que chegava e levantar o dedo numa sessão do Supremo e dizia “não, eu não concordo que José Dirceu possa ser enquadrado como participante de uma quadrilha” — não era nem para absolver, era para dizer que não era de uma quadrilha.
A imprensa vinha para cima e tentava desmoralizar o Levandowski. E ele aguentou com dignidade. Depois, o ministro Gilmar Mendes, que é um dos mais preparados da nossa Corte, inteligente, compreendeu que chegou-se a um limite. E se essa manipulação continuasse, o Supremo iria ser ressecado, desmoralizado e o prestígio que os juristas que estão lá têm no exterior iria abaixo.
Acompanhei essas discussões, tanto na Espanha como em Portugal. O ministro Gilmar Mendes passa a tomar uma atitude corajosa, inclusive confrontando a imprensa e dizendo que estavam manipulando os fatos. Estavam valorizando determinados fatos para degradar a autonomia do Supremo. A partir desse momento, dentro da máquina pública, aquelas pessoas que estavam envolvidas no processo de bolsonarização do Estado começam a ter mais cautela. Elas começam a conversar: ‘qual é o papel que estamos prestando aqui?’ Então, as coisas começam a vazar. As manipulações, as violências ilegais que o Bolsonaro cometia, as ordens ilegais que ele transmitia para esses órgãos. Isso aí vai se espalhando no corpo sadio do Estado brasileiro. Então, aquele movimento criminoso que ocupava o Estado começa a perder força. Mas vejam que é tão grave a situação que ele perde força, mas a vitória eleitoral do Lula é quase insignificante do ponto de vista quantitativo, embora seja a maior vitória política da democracia no Brasil até hoje porque derrotou uma máquina criminosa que se apropriou do Estado, apoiada pela grande imprensa, por um sistema de partidos em coalizão de direita com a extrema direita e conservador, que, em última instância, queria não só degradar a democracia, mas extinguir o Estado de Direito.
Quando eles tentaram o golpe de Estado no dia 8 de janeiro, já estavam sem força, porque esta diluição da visão bolsonarista do mundo, do extremismo que passava por dentro da sua visão, tinha também alertado os quartéis de que seria um papel trágico do Exército entrar numa aventura como essa. Então, é assim que vejo o processo. Tudo foi atípico.
A vitória do Bolsonaro foi atípica. O fato de que um futuro candidato a presidente faz um elogio público da tortura na frente da torturada, da presidenta Dilma, no impeachment, e isso foi aceito e naturalizado pela grande imprensa, pelo Supremo, pelo Ministério Público, ali se marcou um ponto de virada que gerou toda essa degradação no Estado e esse bando de criminosos que se incrustou no poder e só foi tirado depois de quatro anos. Uma situação atípica.
As categorias tradicionais de análise que utilizamos aqui no Brasil de uma maneira muito mecânica, ou seja, com o conflito da burguesia tal com o setor da burguesia tal, dos movimentos populares com a polícia e tal, que vão desgastando o poder do Estado, que vão mostrando a sua natureza, não operaram aqui. Nunca o movimento popular, o movimento sindical, os servidores públicos, o próprio movimento dos sem terra, dos agricultores familiares, nunca estiveram tão quietos durante todo esse período, nunca estiveram tão intimidados, tão paralisados. Os professores das universidades, os alunos, muitos resistiram e inclusive pagaram caro por isso. Mas não houve movimento de resistência de massas ao bolsonarismo. E isso é atroz. É o significado da formação fascista, violenta, da formação que é típica da cabeça dos torturadores na sociedade.
— Bolsonaro cometeu uma série de crimes. O TSE irá torná-lo inelegível?
— Pode torná-lo inelegível dentro da lei e da ordem e hoje diria que tem uma maioria dentro do TSE disposta a fazer isso. Agora, quais são os recursos que serão usados pelo bolsonarismo, ainda incrustado no Estado, e por aqueles setores da classe dominante que não perderam a esperança de um golpe? Não se sabe como eles vão atuar, o que é que eles vão gastar com tudo isso? Mas seguramente tem motivos para o bloqueio de Bolsonaro e, inclusive, motivos para colocá-lo na cadeia.
Se você disser, por exemplo, ‘mas o Lula foi para a cadeia sem motivo’. Vamos supor que tivesse algum motivo, apenas supor. Eu acho que não tinha, não tinha prova e não tinha como colocar o Lula na cadeia legalmente. Mas, vamos dizer, se tivesse algum motivo, pode-se dizer com toda tranquilidade que em relação ao Bolsonaro, há mais de 100 motivos.
Então, é o momento em que o princípio da neutralidade formal do Estado adquire uma importância estratégica para o futuro do país. Ou seja, se funcionar esse princípio nos julgamentos do Bolsonaro, se ele não for motivado por paixões políticas, por compromissos ou por compra de consciências de maneira direta ou indireta, seguramente o Bolsonaro vai para cadeia.
Veja a qualidade dos ministros que eles colocaram que não poderiam ser nomeados. Quando Bolsonaro diz que vai nomear dois ministros terrivelmente evangélicos, está ofendendo um princípio republicano essencial que é o princípio da laicidade do Estado. A sua ordem de nomeação no funcionamento do Estado de Direito deveria ser nula de pleno direito porque é um ato administrativo que não é dotado de moralidade nem de legalidade. Ele viola, e diz que vai violar esse princípio da laicidade formal do Estado e nomeia dois ministros analfabetos jurídicos, reacionários e terrivelmente evangélicos.
— Supondo que de fato ele se torne inelegível, o senhor acredita que isso vai desorganizar mais a extrema direita ou, ao contrário, vai dar força?
— Tenho certeza que enfraquece. Porque o funcionamento das correntes políticas de extrema direita e do bolsonarismo são apoiadas num setor da sociedade, seja na lúmpen burguesia, que é um estrato importante na formação da ideologia fascista, seja nos estratos inferiores da sociedade, sem rumo, sem consciência, subordinados a necessidades imediatas que têm as suas consciências compradas. A formação desses contingentes políticos se dá muito por influência do dinheiro e o dinheiro verte para dentro de movimentos fascistas, sempre a partir do grande líder. Foi assim na época do Hitler, que fez acordo com os grandes empresários alemães. Foi assim com Mussolini, que fez acordo expressivo com 80% do empresariado dos grandes proprietários de terra italiana, que financiaram este movimento. E daí aparece publicamente como um movimento organizado, um movimento militarizado inclusive, e que coloca contingentes até paralelo de milícias organizadas para fazer o combate político. Então, tenho certeza que sim, o Bolsonaro indo para a cadeia, esses vasos comunicantes da ideologia fascista vão ser relativamente obstruídos e terão mais dificuldades para se expressar como alternativa política do país.
— Hoje, temos os comitês populares de luta. Na sua opinião, eles são um instrumento importante para esse período que se aproxima?
— São importantes, mas sozinhos não serão importantes. Na minha época, os movimentos sociais, o movimento sindical, da intelectualidade emancipatória, dos intelectuais de esquerda, todos se organizavam e se integravam a partir de ideias, mas ideias se expressavam em panfletos, jornais, ocupação de espaços nas rádios, por exemplo. Muito pouco na televisão, sempre foi muito oligopolizada aqui no Brasil. Hoje, os movimentos populares têm que se adequar a esses novos tempos da comunicação. A comunicação hoje que é feita pelas massas populares é horizontal em rede, não é mais obedecida de maneira vertical. Não vem o panfleto do comitê central, da direção nacional, da comissão executiva, não vem um panfleto assinado pelo líder chamando alguma manifestação e as pessoas se movem. Não é assim hoje que funciona a mente das pessoas.
Não estamos mais na civilização da praça e da movimentação de amplas massas na esfera pública, a não ser em momentos especiais, como está ocorrendo na França. As movimentações de consciências e as decisões políticas se dão através dessa horizontalidade comunicativa que é amarrada por determinados nós de think tanks, de grupos, de organizações de consciência, de sociedade civil, ideais que vão espalhando horizontalmente essas ideias. Então, sim, os comitês populares são importantes, mas cada um tem que ter uma estrutura em rede para se comunicar de maneira direta, horizontal, com toda a comunidade, não somente com o seu grupo.
— A esquerda vai ter condição, a curto e médio prazo, de enfrentar essa maré de regressão?
— Vou te dar uma resposta economicista. Evidentemente a questão econômica não pode ser vista de maneira isolada, depende de um conjunto de subjetividades que se integram nela de uma maneira mais aprovativa ou mais recalcitrante. O que vai determinar a base social e política do governo Lula nesses quatro anos, que serão fundamentais para que a gente possa responder sem achômetro a tua pergunta importante, se conseguirmos emplacar uma âncora fiscal que dê uma relativa estabilidade pra economia e que nos permita recursos para recoesionar a sociedade em torno do interesse público, vamos ter sucesso e esse processo será breve. Porque esta âncora vai determinar quais classes sociais vão se mover para uma coalizão política, para um acordo com o governo. E aqui eu estou falando não somente em relação a parte das classes dominantes.
Estou falando das classes sociais em geral. E vou dar dois exemplos concretos: se a taxa de juros não for paulatinamente, mas em sequência, coerentemente abatida, não teremos o apoio do pequeno e do médio comércio. Não teremos apoio dos industriais brasileiros que estão sofrendo as concorrências predatórias que vêm de fora, da China, inclusive, que é um parceiro econômico extremamente importante para nós.
Se não tivermos recurso para pagar um Bolsa Família decente, para recuperar a merenda escolar e para colocar o ensino fundamental e ensino médio num bom nível de funcionamento, vamos perder em definitivo essas camadas populares. E tudo isso depende de quê? Da saúde econômica do Estado e da possibilidade de financiamento que o Estado vai ter com a coleta dos impostos, as arrecadações e com a ajuda internacional a partir das relações bilaterais e multilaterais que vão sendo estabelecidas de maneira competente pelo governo Lula até agora.
Estamos exatamente no momento de conformar isso. Eu tenho dito para alguns companheiros que nós temos que prestar atenção muito mais na ocupação dessa pequena margem que temos de manobra para nos recolocar no cenário mundial e refinanciar o Estado de maneira adequada. Lula vai fazer o governo dele, como sempre fez. E está fazendo isso de maneira competente, até agora. •