Um dos grandes desafios do governo Lula e das forças progressistas que o apoiam consiste em destruir a herança maldita da ditadura militar. A história mostra como atuam a direita e as Forças Armadas para deter o avanço da esquerda

O golpismo não morreu

Em torno de mais um 1º de abril, vale a pena revisitar a história. No dia 3 de outubro de 1960, Jânio Quadros venceu as eleições com 5.636.623 votos. Marechal Lott recebeu 3.846.825 votos. Adhemar de Barros alcançou 2.195.709 votos. O total de votantes, incluindo quem votou em branco ou anulou, foi de 12.586.354, menos de 1/5 da população total do Brasil em 1960, calculada em 70.992.343 pessoas.

A legislação vigente naquela época permitia que presidente e vice-presidente fossem eleitos separadamente. Por este motivo, o vice-presidente eleito em 3 de outubro de 1960 foi João Goulart, que concorrera na chapa encabeçada pelo Marechal Lott. Jânio Quadros e João Goulart tomaram posse em 31 de janeiro de 1961. Poucos meses depois, em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou à Presidência.

A direita política e militar buscou impedir a posse do vice-presidente João Goulart, que no momento da renúncia encontrava-se em visita oficial à República Popular da China. A esquerda desencadeou uma “campanha pela legalidade” para garantir a posse de João Goulart na Presidência.

Assim que Jango regressa da China ao Brasil, em 1º de abril, as forças da direita acenam com um acordo: João Goulart tomaria posse na Presidência da República, mas quem governaria seria um primeiro-ministro, Tancredo Neves.

No dia 2 de setembro de 1961 o Congresso aprovou uma lei convertendo o Brasil ao parlamentarismo. Pouco tempo depois, no dia 6 de janeiro de 1963, um plebiscito popular reintroduziu o presidencialismo. E vários sinais indicavam que a esquerda venceria as eleições presidenciais marcadas para o ano de 1965. Os setores de direita reagiram preventivamente, com o golpe militar de 1º de abril de 1964.

A ditadura militar acabou com as eleições diretas para presidente, que só retornariam em 1989. Então, o primeiro turno da eleição presidencial foi convocado para o dia 15 de novembro e o segundo turno previsto para o dia 17 de dezembro de 1989.

Para a maior parte do eleitorado brasileiro, a eleição presidencial de 1989 foi a primeira oportunidade de escolher o presidente da República. O primeiro turno das eleições foi disputado por 22 candidatos, dos quais 18 eram patrocinados por um único partido, sem qualquer tipo de coligação. O segundo turno da eleição presidencial de 1989 foi disputado entre Fernando Collor e Lula.

Pela primeira vez na história do Brasil, um operário militante de um partido socialista chegou às portas da Presidência da República. Mas foi Fernando Collor de Mello, um playboy apoiado pelo establishment, quem ganhou as eleições, ainda que por relativamente pouco: 35 milhões (53,03%) contra 31 milhões de votos (46,97%).

Importante registrar que mais da metade da população brasileira teve direito a participar do processo eleitoral: 82.074.718 eleitores numa população total pouco inferior a 143 milhões. E até hoje é assim: a maioria da população brasileira tem o direito de votar. E nas nove eleições realizadas com base neste universo, o PT venceu cinco (2002, 2006, 2010, 2014, 2022) e ficou em segundo lugar em quatro (1989, 1994, 1998, 2018).

Como teria sido o Brasil, caso a ditadura militar não tivesse ocorrido? Não saberemos nunca. Mas sabemos que a ditadura interrompeu um processo que, se tivesse tido curso, poderia resultar em reformas estruturais (conhecidas na época como as reformas de base), maior soberania nacional, maior desenvolvimento e mais liberdades democráticas.

Também sabemos que a ditadura, para além dos crimes que cometeu, deixou uma herança maldita para a imensa maioria do povo brasileiro. Parte importante desta herança está materializada na permanente pressão das Forças Armadas, no sentido de serem um poder moderador. A herança também se faz presente na militarização da segurança pública, que trata como inimigas amplas parcelas do povo.

Um dos grandes desafios do governo Lula e das forças de esquerda que o apoiam consiste em destruir a herança maldita da ditadura militar. Além de mudanças nas polícias, precisamos de Forças Armadas despartidarizadas, mas politicamente comprometidas com a defesa da soberania nacional contra inimigos estrangeiros. Isso passa, entre outras medidas, por alterar o que está no artigo 142 da Constituição. E passa por formar uma nova oficialidade, totalmente diferente da atual, majoritariamente contaminada pela extrema-direita e submissa ao imperialismo.

Desde 1989 até hoje, os governos democraticamente eleitos não quiseram ou não tentaram fazer isso. Um dos preços que pagamos por isso foi ver um cavernícola vencer as eleições presidenciais de 2018 e chegar perto disso em 2022. Outro preço foi o apoio dado por muitos comandantes militares à Intentona de 8 de Janeiro. Por estes e por outros motivos, não há escapatória: é preciso enfrentar a questão militar. •