É falso que se trata de censurar
“Países da Europa estão caminhando numa direção em que, quando o conteúdo é impulsionado ou monetizado, deixa de ser tratado como opinião e passa ser tratado como mídia”
O governo Lula vem fazendo um grande esforço para cercar o problema da desinformação, da disseminação de mentiras e do uso abusivo das fake news. Ainda em janeiro, o Palácio do Planalto enviou à apreciação do Congresso uma PEC para combater notícias falsas, que está sendo recebida da pior maneira tanto pela oposição como pela imprensa corporativa. Alegam que se trata de censura à liberdade de expressão e opinião.
Em entrevista recente ao jornal O Globo, Paulo Pimenta, ministro da Secom, defendeu uma distinção importante: “O que estamos tratando é de conteúdo ilegal, conteúdo criminoso. Por exemplo: a divulgação do link do remédio que não tem comprovação na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a divulgação impulsionada de links de golpes na internet, conteúdo homofóbico, racista, antidemocrático”.
Ele argumenta que não se trata de uma questão de opinião. “Acho também que deveríamos ter uma distinção entre o que é conteúdo impulsionado e monetizado”, aponta. “Países da Europa estão caminhando numa direção em que, quando o conteúdo é impulsionado ou monetizado, deixa de ser tratado como opinião e passa ser tratado como mídia”.
Empresas e grupos contrários à responsabilização das empresas pelos conteúdos falsos que indivíduos ou grupos fazem circular sempre reagem às tentativas de regulamentação invocando o direito à liberdade de expressão — em geral, tomando como modelo jurídico a maneira pela qual a liberdade de expressão é entendida nos Estados Unidos. Isso permite que esse direito individual se sobreponha a várias tipificações de crime.
Ainda assim, também nos Estados Unidos, desde que o então presidente Donald Trump usou seu perfil no Twitter para contestar o resultado das eleições norte-americanas, que deram a vitória ao democrata Joe Biden, ele teve seu perfil pessoal banido por disseminar informações falsas. Lá na América vem avançando a discussão sobre as big techs — e não apenas no âmbito da política institucional.
Em 15 de fevereiro, a Câmara dos Deputados estadunidense aprovou o relatório final da CPI que investigou práticas econômicas monopolistas das empresas gigantes de tecnologia. O Capitólio pretende elaborar lei que obriga as plataformas digitais a compartilhar mais do que lucram com publicidade digital, de forma a reverter para o que a imprensa produz.
Na Austrália, Facebook e Google já têm de dividir com a imprensa os lucros de publicidade digital. Nos EUA, a ideia é que a lei valha para todos os meios (jornais de qualquer porte e alcance regional, rádio, televisão e publicações online) e tipo de conteúdo jornalístico, inclusive o chamado ideológico.
Mecanismos antitruste, que levam as grandes empresas a comprarem startups com enorme rapidez e estabelecerem monopólios em várias áreas do mundo digital, estão contemplados por outra lei, que também deve ser aprovada pelos parlamentares norte-americanos. A divisão entre democratas e republicanos é na definição de conteúdo desinformativo, mais conhecidas como fake news.
Republicanos das várias matizes reagem ao controle da desinformação, alegando censura e abafamento das narrativas e práticas da direita. A questão reveste-se ainda de mais importância por que a corrida para as eleições presidenciais de 2024 já começou por lá, inclusive com a possibilidade de volta de Trump.
O gesto do governo Lula, colocando a discussão no plano internacional e em fórum de discussão global, pode contribuir ainda mais nesse mesmo sentido. Mencionando a tentativa de golpe de 8 de Janeiro, que inclusive macaqueou a invasão do Capitólio por apoiadores de Trump que não aceitavam a derrota para os democratas em 6 de janeiro de 2021, Lula explica a urgência em chegar a um modelo de moderação de conteúdo que leve ao extremismo e à prática de crimes.
“O que ocorreu naquele dia foi o ápice de uma campanha, iniciada muito antes, que usava, como munição, a mentira e a desinformação”, justifica o presidente. “E tinha, como alvos, a democracia e a credibilidade das instituições brasileiras. Em grande medida, essa campanha foi gestada, organizada e difundida por meio das diversas plataformas digitais e aplicativos de mensagens. Repetiu o mesmo método que já tinha gerado atos de violência em outros lugares do mundo. Isso tem que parar.”
Em seguida, Lula assinalou: “(…) não podemos permitir que a integridade de nossas democracias seja afetada pelas decisões de alguns poucos atores que hoje controlam as plataformas. A regulação deverá garantir o exercício de direitos individuais e coletivos. Deverá corrigir as distorções de um modelo de negócios que gera lucros explorando os dados pessoais dos usuários. Para ser eficiente, a regulação das plataformas deve ser elaborada com transparência e muita participação social. E no plano internacional deve ser coordenada multilateralmente. O processo lançado na UNESCO, tenho certeza, servirá para construção de um diálogo plural e transparente. Um processo que envolva governos, especialistas e sociedade civil.”
Como líder de um país latino-americano que volta, aos poucos, a recuperar seu papel na diplomacia e no concerto das nações com o tamanho e a potência de um Brasil diverso e multicultural, capaz de mostrar como se reduzem as várias desigualdades que o constituem, Lula não deixou de apontar caminhos para políticas públicas. Na mensagem à Unesco, o líder brasileiro foi claro e direto: “Devemos trabalhar para reduzir o fosso digital e promover a autonomia dos países em desenvolvimento nessa área. Precisamos garantir o acesso à internet para todos, fomentar a educação e as habilidades necessárias para uma inserção ativa e consciente de nossos cidadãos no mundo digital. Países em desenvolvimento devem ser capazes de atuar de forma soberana na moderna economia de dados, como agentes e não apenas como exportadores de dados ou consumidores passivos dos conteúdos.” •