Desde que o Brasil conquistou a independência, há 200 anos, seus compositores enriqueceram tanto a música clássica quanto o jazz em todo o mundo. De Carlos Gomes a Milton Nascimento, passando por Guerra Peixe, Villa-Lobos e Camargo Guarnieri

A canção brasileira

O lema nacional do Brasil, Ordem e Progresso, está estampado no centro de sua bandeira e encapsula perfeitamente os esforços indomáveis da nação para aproveitar seus recursos naturais e culturais aos rigores do mundo moderno. Com o 200º aniversário da declaração de independência do Brasil do antigo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, parece oportuno fazer um balanço da evolução musical que o país conheceu durante aqueles dois séculos, quando com o mesmo espírito de ‘ordem e progresso’ forjou a sua própria identidade no sala de concertos, e desenvolveu estilos pop e jazz de sucesso global com a vibração de seu folk e tradições musicais populares.

Antes da criação do Império do Brasil em setembro de 1822, a colônia portuguesa tinha visto um aumento constante na quantidade e qualidade da música sacra composta para suas igrejas, particularmente na província de Minas Gerais, no estado de São Paulo, e — depois que a realeza portuguesa fez sua sede em 1808 — no Rio de Janeiro, onde a capela real se beneficiou da prolífica produção do seu kapellmeister José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Muitos dos compositores que contribuíram para este crescente repertório litúrgico, incluindo Garcia, eram de origem mestiça.

Um influxo constante de músicos da Europa estimulou gradualmente o interesse por gêneros seculares, como ópera e peças de salão durante o século 19. O Rio sediou muitas produções de óperas populares italianas, enquanto compositores nativos como Francisco Manuel da Silva (que escreveu o Hino Nacional do país em 1831) e Antônio Carlos Gomes ajudaram a estabelecer uma tradição operística local. Gomes colocou a música brasileira firmemente no mapa internacional com o sucesso de sua ópera O Guarany, estreada no La Scala de Milão em 1870, baseada em um romance sobre um caso de amor interracial no Brasil do século 16.

Gomes havia estudado anteriormente no Conservatório de Milão. Em sua época – e já no século 20 – era de rigueur para qualquer aspirante a compositor das Américas adquirir uma formação europeia antes de voltar para casa para desenvolver suas carreiras. Alberto Nepomuceno, por exemplo, estudou em Roma, Berlim, Viena e Paris antes de se instalar no Rio em 1895 e se dedicar ao cultivo da primeira escola de composição nacionalista brasileira.

Esse processo já havia começado na música de Alexandre Levy, cuja orquestral Suite Brésilienne (1890) trazia um samba-finale. Levy estudou na França e tinha bons contatos na Europa, mas morreu em 1892 com apenas 27 anos. Nepomuceno, no entanto, continuou a defender o trabalho de compositores clássicos brasileiros até sua morte em 1920. Suas próprias obras ocasionalmente fazem referência a tradições musicais vernaculares, como na sua peça orquestral Série Brasileira (composta em Viena em 1891), e a sua música vocal demonstra um notável compromisso com a língua portuguesa, embora no geral o seu estilo de composição tenha permanecido profundamente enraizado nos idiomas românticos de Brahms, Dvořak, Mendelssohn e Wagner.

Essas influências, no entanto, são perfeitamente fundidas em sua Sinfonia em sol menor (1893), e os dois lados de sua personalidade musical – o eurocêntrico e o nacionalista – refletem o equilíbrio entre ordem e progresso que caracterizaria a obra de muitos compositores brasileiros posteriores.

Entre as figuras mais jovens orientadas por Nepomuceno estava Heitor Villa-Lobos, destinado a se tornar o compositor brasileiro de maior destaque internacional do século 20. Em 1915, Villa-Lobos escandalizou a crítica com a ousadia da música que apresentou no primeiro concerto dedicado exclusivamente à sua obra. A essa altura, os compositores brasileiros já absorviam influências mais modernas, demonstrando notável apreço pelas texturas e harmonias inovadoras dos impressionistas franceses.

Essa tendência é perceptível, por exemplo, nas obras de Glauco Velásquez (1884-1914), outro músico cuja carreira promissora foi interrompida por uma morte tragicamente precoce. Os encontros de Villa-Lobos com estilos mais modernos foram em parte consequência de sua associação com Dario Milhaud durante a estada deste último no Rio em 1917-18, e posteriormente por suas próprias visitas prolongadas a Paris entre 1923 e 1930, quando conheceu Igor Stravinsky e Edgard Varèse.

A importante viagem de Milhaud ao Rio — onde trabalhou como agente de propaganda em tempo de guerra para o Ministério das Relações Exteriores da França — não abriu os ouvidos apenas à vibração da música popular brasileira, mas também ao som da Mata Atlântica, que mais tarde ele comemorou em sua escrita inventiva para instrumentos de percussão.

De volta à França, ele compôs Le Boeuf sur le toit (O boi no telhado) – encenado por Jean Cocteau como um balé surreal em 1920 – repleto de alegres ritmos sincopados, o timbre característico de um latino-americano raspador (güiro) e alusões a vários autênticos melodias brasileiras. Como ele logo faria com jazz em outro balé, La création du monde (1923), Milhaud mostrou como elementos da cultura popular a música poderia ser perfeitamente fundida com modernistas técnicas de composição, uma síntese que forneceu um modelo poderoso para compositores brasileiros desejando absorver elementos de sua própria cultura em música para a sala de concertos.

O modernismo nas artes brasileiras recebeu um impulso significativo em fevereiro de 1922, quando, para celebrar o centenário da independência, um festival de uma semana de ‘Arte Moderna’ foi realizado em São Paulo. Uma de suas luzes principais foi a figura literária multi-talentosa e estudiosa de Mário de Andrade, cujos interesses se estendiam à etnomusicologia. Em 1928, publicou Ensaio sobre a música brasileira, que reflete o espírito nacionalista em que muitos compositores brasileiros agora se propõem a combinar técnicas folclóricas e de música artística. Ao fazer isso, eles foram atraídos para a inspiração para o experimentos semelhantes realizados por Stravinsky em seu início do período “russo”, mas ainda mais por Bartók na Hungria.

Como na Argentina, onde Ginastera alcançou destaque com sua própria abordagem essencialmente a mesma tendência, um amplo padrão foi estabelecido – por meio da qual os compositores brasileiros passaram de um compromisso inicial com autêntico ou materiais folclóricos quase autênticos em direção a um apropriação esotérica deles pelo uso de tais tendências europeias como o neoclassicismo e (mais controversamente) serialismo de 12 notas. A musica de César Guerra-Peixe (1914-93), porém, traça um trajetória inversa: depois de um intenso engajamento com atonalidade e serialismo no final dos anos 1940, ele mergulhou na herança musical de São Paulo e Pernambuco, e a partir da década de 1950 compôs algumas peças das mais coloridas de sua época  com música orquestral nacionalista e acessível.

A paixão de Villa-Lobos por sua herança musical brasileira foi vividamente exibida nos 14 Choros para várias combinações instrumentais que compôs na década de 1920, enquanto seu neoclássico inclinações vieram à tona na série de nove Bachianas Brasileiras (1930-1945). Como o título coletivo sugere, as Bachianas Brasileiras foram uma celebração simultânea da música de JS Bach (descrito por Villa-Lobos como “sem duvidar do dom mais sagrado para o mundo da arte”) e a vibração da música indígena brasileira.

De longe, a mais conhecido da série é a Bachiana nº 5 (1938), cuja primeira parte é uma bela vocalização sedutora para solo de soprano acompanhado por um conjunto de oito violoncelos (instrumento do próprio compositor). A iniciativa de Villa-Lobos em combinar os rigores do contraponto barroco com o lirismo, dinamismo e ritmo, idiossincrasias da música popular brasileira de outrora, novamente refletiu o conceito definidor da nação de ordem e progresso.

Uma tendência à abstração é perceptível em muitas das obras sinfônicas tensamente construídas escritas pela próxima geração de compositores brasileiros, em que motivos sofisticados e desenvolvimentos temáticos às vezes coexistem com traços de cores folclóricas genéricas, e nas quais a linguagem harmônica pode inesperadamente mudar do austero atonal para o alegremente diatônico mesmo dentro dos limites de uma única obra. Claudio Santoro, que estudou com Nadia Boulanger em Paris em 1946 e passou muito tempo na Europa durante a ditadura militar no Brasil (1964-85), exemplificou essas características em uma produção prolífica que incluiu nada menos que 14 sinfonias, a Sétima das quais foi escrita para marcar a fundação da nova capital da República Federativa do Brasil, Brasília, em 1960.

Camargo Guarnieri, que também estudou na Paris (em 1938) e esteve intimamente associado a Mário de Andrade, igualmente equilibrando abertamente tendências nacionalistas e mais intelectuais em uma obra que (como a de Villa-Lobos) incluiu uma série de obras intituladas Choro – um termo para música de dança instrumental urbana, muitas vezes apresentando um solista, que para fins de apresentação Guarnieri tratava como sinônimo de ‘concerto’. Aluno de Guarnieri, José Antônio de Almeida Prado tipificou o espírito mais vanguardista dos compositores mais jovens que vieram destaque após a Segunda Guerra Mundial: estudou em Paris e Darmstadt em 1969-73, caindo fortemente sob o feitiço da música de Olivier Messiaen.

Embora a música clássica brasileira tenha apenas recentemente se tornado mais conhecida e merecidamente apreciada além-fronteiras, a música popular brasileira exerce há muito tempo uma forte e distinta influência no mundo do jazz. A bossa nova foi uma adaptação lírica e descontraída de ritmos de samba cativantes com grande apelo melódico — descrito de forma memorável por Raj em um episódio do sitcom The Big Bang Theory como algo você ouve ‘com seus quadris e também com seus ouvidos’.

Lançada por João Gilberto e Antônio Carlos (‘Tom’) Jobim nos anos 1950, a bossa nova virou uma sensação internacional quando adotado por músicos de jazz norte-americanos Stan Getz (saxofone) e Charlie Byrd (guitarra) em seu álbum vencedor do Grammy álbum Jazz Samba em 1962, encabeçado por ‘Desafinado’, de Jobim. No ano seguinte, Gilberto e sua esposa Astrid gravaram (também com Getz) “Garota de Ipanema”, a música rapidamente se tornou um sucesso mundial, seu sucesso internacional duradouro fama tão grande que foi destaque na abertura cerimônia dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio.

Outra influência seminal no jazz moderno músicos é da MPB (música popular brasileira), um desdobramento ricamente criativo da bossa nova exemplificado pela fusão de música tradicional, jazz e rock ouvido no Clube da Esquina de Milton Nascimento na década de 1970. Esta eclética mistura estilística foi emulada por músicos de alto perfil de jazz-rock dos Estados Unidos, entre eles Wayne Shorter, Chick Corea e Pat Metheny. Metheny viveu no Brasil por vários anos no final década de 1980, e considerava o país “o último lugar no mundo onde a música pop é realmente profundamente envolvido em harmonia”. •