Morte e destruição no coração da selva amazônica
Omissão criminosa de Jair Bolsonaro já levou à morte mais de 570 crianças ianomâmis. O descaso do antigo governo pode resultar em condenações ao ex-presidente, que enfrenta denúncias na Justiça Federal e no Tribunal Penal Internacional
A crise humanitária vivida pelo povo ianomâmi por inação e omissão do governo Jair Bolsonaro pode resultar na condenação do ex-presidente e outras autoridades. Tanto na Justiça Federal quanto no Tribunal Penal Internacional. No dia 26, a Polícia Federal anunciou a abertura de um inquérito para investigar se houve crime de genocídio e omissão de socorro ao povo ianomâmi pelo antigo governo. A investigação vai começar após um pedido feito pelo ministro da Justiça, Flávio Dino.
O ex-presidente continua a posar de vítima. Bolsonaro escreveu em aplicativo de mensagens que a denúncia sobre a crise humanitária envolvendo os índios ianomâmi é uma “farsa da esquerda”. Ele diz que o seu governo levou atenção especializada para territórios indígenas. Na semana anterior, o governo Lula declarou emergência médica na Terra Indígena Yanomami, a maior reserva indígena do Brasil, após relatos de crianças morrendo de desnutrição e outras doenças causadas pela mineração ilegal de ouro. São mais de 570 crianças indígenas que morreram por desamparo do Estado.
Deputados do PT entraram no dia 22 com uma representação criminal no Ministério Público Federal contra Bolsonaro por genocídio. A senadora eleita Damares Alves (PL-DF), ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, bem como todos os ex-presidentes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), no governo anterior, também são alvos da ação. De acordo com o Ministério da Saúde, nos últimos quatro anos 570 crianças ianomâmis morreram de fome ou em decorrência de contaminação por mercúrio, por causa do garimpo ilegal.
Ainda há outras duas denúncias em avaliação preliminar no Tribunal Penal Internacional, localizado em Haia, nos Países Baixos. A Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Comissão Arns, formada por juristas brasileiros, incluindo os ex-ministros José Carlos Dias e José Gregori, defendem que o ex-presidente cometeu crimes de genocídio durante a pandemia de covid-19 e na forma como lidou com a proteção dos indígenas nos últimos quatro anos. O líder David Kopenawa, já havia denunciado pessoalmente o descaso do governo Bolsonaro em março de 2020, perante a Corte de Haia.
Naquela ocasião, o desabafo de Kopenawa foi dramático: “Gostaria que os Direitos Humanos da ONU pudessem olhar para nós e nos dar um apoio muito forte para que as autoridades do Brasil – os políticos dos municípios, dos estados e da capital – todos esses brancos das cidades, nos respeitem e não nos molestem mais. Que eles compreendam e reconheçam os direitos dos seres humanos, assim como faz a ONU. Os Direitos Humanos da ONU são construídos para defender os que sofrem”.
E continuou o apelo: “Meu povo tem o direito de viver em paz e em boa saúde, porque ele vive em sua própria casa. Na floresta estamos em casa! Os brancos não podem destruir nossa casa, senão, tudo isso não vai terminar bem para o mundo. Cuidamos da floresta para todos, não só para os ianomâmis e os povos isolados. Trabalhamos com os nossos xamãs, que conhecem bem essas coisas, que possuem uma sabedoria que vem do contato com a terra. A ONU precisa falar com as autoridades do Brasil para retirar – imediatamente – os garimpeiros que cercam os isolados e todos os outros em nossa floresta”.
Agora, mais cinco entidades voltaram a denunciar o ex-presidente ao Tribunal Internacional Penal por genocídio em razão do descaso com as comunidades ianomâmis, assoladas pela desnutrição em função da invasão de suas terras, situadas em Roraima, por garimpeiros. A denúncia foi oferecida dia 25 pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) e a Associação da Rede Unida. As ONGs pedem que o tribunal admita a representação criminal e instaure uma investigação para apurar uma a omissão do ex-presidente na proteção aos indígenas.
As organizações da sociedade civil apontam que Bolsonaro ignorou dezenas de pedidos de auxílio, estimulou o garimpo ilegal e deixou de tomar providências determinadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ainda citam que os dados disponíveis sobre as condições de saúde dos ianomâmis eram ocultados ou de difícil acesso. A Procuradoria Geral da República não abriu nenhum inquérito nem há procedimento criminal em vigor por parte do Brasil.
“O biopopulismo desenvolvido pelo Sr. Jair Messias Bolsonaro contra os ianomâmis aumentou a vulnerabilidade sanitária a ponto de ameaçar a existência do grupo étnico, inclusive com aumento de mortes que poderiam ser evitadas”, dizem as entidades na denúncia oferecida ao TPI. Juristas apontam que há elementos suficientes para iniciar uma investigação, mas que é preciso encontrar evidências e provas para seguir com eventuais julgamentos no futuro.
Em 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão cobrando uma resposta do Brasil para “proteger a vida, a integridade pessoal e a saúde dos membros dos povos indígenas ianomâmi, iecuana e mundurucu”. A comissão que avaliou o caso disse que a situação dos indivíduos dessas três populações era de “extrema gravidade e urgência”. Entre as medidas que o país precisaria tomar, a corte apontou a necessidade de “proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e água potável” desses povos.
A corte da OEA pediu ao Estado brasileiro um relatório com um resumo das ações que foram tomadas para reverter a situação até 20 de setembro de 2022. Depois disso, novas atualizações sobre o caso deveriam ser enviadas a cada três meses. Até hoje a Corte Interamericana de Direitos Humanos está esperando uma resposta por parte do Brasil.
As denúncias sobre a omissão do governo Bolsonaro diante da invasão de terras indígenas, estimulando a pesca predatória, o garimpo ilegal e o desmatamento descontrolado remonta ao início de 2020. O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental, denunciou a extração ilegal de ouro e outros minérios na região.
“Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%”, aponta o texto.
O levantamento das associações mostra que, em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares. “Desde então, a área impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares”, aponta.
Durante os quatro anos de presidência, Bolsonaro falou diversas vezes sobre a mineração em terras indígenas — o governo propôs inclusive um projeto de lei que viabilizaria a prática dentro da lei. Em março de 2022, por exemplo, disse: “índio quer internet, quer explorar de forma legal a sua terra, não só para agricultura, mas também para garimpo”. E destacou: “A Amazônia é uma área riquíssima. Em Roraima, há uma tabela periódica debaixo da terra”.
Santos Junior, que integra a Comissão Arns, entende que são vários os exemplos do estímulo de Bolsonaro ao garimpo. “Os garimpeiros vão se apropriando das áreas, desmatam a floresta, invadem unidades básicas de saúde… Quem dá suporte a isso é justamente quem incentiva o garimpo e o desmatamento, quem não dá as condições para que povos e etnias sobrevivam”, acusa.
O Ministério Público Federal também fez operações para apurar desvios de medicamentos em território ianomâmi. Segundo procuradores, só 30% de mais de 90 tipos de medicamentos que deveriam ser fornecidos foram entregues em 2022. O MPF diz que o desvio de vermífugos impediu o tratamento adequado para 10 mil das 13 mil crianças que vivem nesta região. Há ainda denúncias sobre a interrupção no fornecimento de alimentos. Ainda no governo Bolsonaro, o Ministério da Saúde cortou o fornecimento de alimentação aos indígenas nos postos de saúde do Estado em 2020, sem dar explicações. •