Um dos coordenadores do GT de Saúde na equipe de transição, o sanitarista e ex-ministro alerta para o desmonte completo das políticas sanitárias construídas ao longo de décadas. “Fizemos até agora 31 audiências no grupo de transição, ouvindo diferentes setores. Todos, sem exceção, alertam para um problema grave de informação. É um apagão cibernético”, diz Arthur Chioro

O sistema de saúde pública brasileiro vive um verdadeiro caos, uma desorganização sem precedentes. Esta é a avaliação do ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, que coordena o grupo de transição da saúde pública. A falta de política, que ficou evidente durante a pandemia e permanece até agora, faz parte de um projeto necropolítico de fazer negócios aproveitando as brechas criadas pelo negacionismo e pela desorganização.
Chioro afirma que o governo federal perdeu a autoridade sanitária. A situação só não é pior porque o sistema de saúde é de responsabilidade compartilhada entre estados, municípios e a União. As ações tomadas por equipes estaduais e municipais ajudou a manter o SUS em pé.
Hoje, o Brasil não sabe quantas doses de vacinas contra a Covid foram distribuídas pelo governo federal e quantas estão próximas do prazo de vencimento. Além disso, a cobertura vacinal de praticamente todas as vacinas está abaixo da meta. O risco é de que doenças consideradas erradicadas ou controladas voltem a circular, como por exemplo a poliomielite e a tuberculose.
Mas a desorganização vai muito além do Plano Nacional de Imunização. A tabela de medicamentos utilizados no combate ao câncer não é atualizada há quatro anos. O ex-ministro aponta a existência de um verdadeiro apagão de informações na área da saúde. A seguir, trechos da entrevista:

Focus Brasil — O que foi feito — ou o que não foi feito — pelo governo Bolsonaro com relação à vacinação e que precisa ser corrigido? Os problemas na vacinação tiveram muita repercussão, mas o problema parece maior. O Plano Nacional de Imunização foi abandonado pelo governo Bolsonaro…

Brasília – Ministro da Saúde, Arthur Chioro, na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara, fala sobre o regime de contratação dos médicos cubanos no programa Mais Médicos (Antonio Cruz/Agência Brasil)

— Você tem razão. O Programa Nacional de Imunização do Brasil completa no ano que vem 50 anos de existência. Ele é anterior ao SUS. O PNI tem sido considerado uma referência pela Organização Mundial de Saúde… A OMS, quando tinha dificuldade com qualquer país, dizia: “vejam, o Brasil é um país de dimensão continental que conseguiu manter todas as vacinas recomendadas gratuitamente, distribuídas em todo o país e erradicou, controlou doenças”. E até 2015 isso aconteceu. Veja, entregamos com todas as vacinas acima de 95% de cobertura vacinal. A única exceção era a da febre amarela porque tinha uma nova estratégia de vacinação e ela estava crescendo ano a ano. Mas todas as vacinas estavam nesse patamar. Hoje, todas as campanhas de vacinação estão abaixo dos níveis de cobertura recomendados. Algumas em situação gravíssima. Vou dar exemplos: poliomielite, hoje, de cada dez crianças, três não são mais vacinadas; tuberculose, é a mesma coisa… Então, a gente tem o risco de voltar a ter uma doença que era considerada erradicada. Há um risco de grave problema com tuberculose, meningite por tuberculose, quando a gente podia estar vacinando os bebês dentro da maternidade.
Das oito vacinas do calendário para as crianças de zero a 1 ano de idade, e eu estou pegando esse exemplo porque é o momento mais crítico, mais frágil da vida humana, nenhuma das oito vacinas está com cobertura adequada. Isso acontece com gestantes, idosos, com a população de crianças de 1 a 5 anos… Enfim, para todos os grupos populacionais. O desastre é generalizado. Houve uma total desestruturação do programa. Não se reúne mais o Comitê Nacional de Especialistas formado por cinco, seis técnicos ligados à Sociedade de Infectologia, de Pediatria, de Imunização, referências da Organização Mundial de Saúde que faziam aconselhamento técnico. Não se reúnem. Houve uma destruição da capacidade de comunicação. Veja, o Zé Gotinha foi abandonado, foi para o exílio. As campanhas nacionais de comunicação e de informação foram paradas. Não se fez mais campanhas nacionais. Estados e municípios começaram a cada um fazer um esquema vacinal. O governo perdeu a autoridade sanitária. E aí a gente chega nas vacinas da Covid. [O governo] Não consegue colocar as vacinas para os bebês de 6 meses a 3 anos. Só vacinaram aqueles com comorbidade. Não se garante as doses necessárias para bebês de 3 a 5 anos. Não se garante as doses necessárias de reforço para as crianças com mais de 10 anos. As coberturas vacinais, com exceção da primeira dose, são horrorosas. Desprotegeram a população brasileira.
Hoje, a gente tem evidências científicas suficientes de que a vacina para Covid protege contra casos graves, contra óbitos, contra a pletora do sistema de saúde. E essa prevenção é proporcional ao número de doses de reforço aplicadas. Então, nós devíamos estar nesse momento com a população com mais de 60 anos de idade, gestantes, população indígena, pessoas que têm comorbidade e imunodeprimidos tomando a quinta dose. Já podíamos estar usando a bivalente e usando a monovalente para as demais. Mas o ministério não reuniu. Ele só reuniu o comitê de especialistas na semana passada porque nós, do governo de transição, fizemos uma reunião na semana anterior com o presidente Lula e depois, um dia antes, nos reunimos com o Comitê de Especialistas e a Associação Médica Brasileira, a Sociedade de Especialistas. Todos vieram, sentaram-se com a gente e disseram: “olha, a recomendação é essa, é essa, e é essa…” Só que a gente só assume no dia 1º de janeiro. O governo Lula não começa agora. As pessoas às vezes se esquecem disso e, portanto, a responsabilidade é do governo Bolsonaro.

— A situação é pior do que desconfiamos…
— É pior ainda. A falta de planejamento, o descaso, chegaram a tal ponto que estamos hoje em dezembro e o Ministério da Saúde não mandou para os laboratórios públicos, para Biomanguinhos e para o Instituto Butantã, a programação de compra de vacinas para o ano que vem. Então, o que vai acontecer? Já sabemos, inclusive, com dados do TCU, que 3 milhões de doses de vacinas contra a Covid foram perdidas por prazo de validade. Têm milhões de doses para vencer em janeiro e fevereiro, mas não há programação de compra de vacinas nem para Covid nem para as demais vacinas. A produção e aquisição de vacinas não é uma coisa simples. Produção industrial, de imunobiológicos, de vacinas, é uma coisa sofisticada. Requer segurança, certificação de qualidade, distribuição com segurança. Até o esforço de vacinação em massa da população que o governo Lula se propõe a fazer, vai ser um grande desafio, porque provavelmente vamos encontrar uma situação de caos. E, detalhe, tudo sob sigilo: estoques, prazos de validade. O governo, hoje, não sabe quantas doses tem, quantas doses distribuiu para estados e municípios, quanto tem em cada lugar, quanto já foi administrado, porque sequer tem um sistema de informação para isso. É um apagão cibernético junto com uma total incompetência.

— O presidente Lula pediu ao povo para tomar a 4ª dose da vacina contra a Covid. E só 18% dos brasileiros tomaram dose de reforço. Pode não ter vacina?
— Não sabemos. A verdade é essa. O que os municípios nos dizem é que tem determinadas vacinas, mas não tem outras… Então, por exemplo, tem que economizar frascos de vacinas… Mas, de qualquer maneira, é fundamental que a população atenda o chamado do presidente Lula. É fundamental porque estamos enfrentando uma nova onda de Covid e ela só não tem um impacto de maior agressividade, não causa mais óbitos porque uma parte da população está vacinada. Vamos dar o exemplo dos bebês: a cada dois dias morre um bebê, uma criança por Covid no Brasil. Não estamos falando de uma coisa que não existe. Aumentamos agora para 100 óbitos de Covid. Estamos com aquele quadro que havia dois anos atrás, um ano, graças inclusive à vacinação, mas não dá para brincar. A covid não acabou e temos o problema das demais vacinas.
Claro que vamos resolver isso de outra maneira, organizando, fazendo campanhas, conseguindo articular estados e municípios, colocando condicionalidade no Bolsa Família para que as mães garantam a vacinação das suas crianças, pedindo para que as creches, as escolas, as universidades cobrem dos estudantes a carteira de vacinação, que os empregadores cobrem dos seus trabalhadores, vamos ter que enfrentar esse negacionismo. Mas, objetivamente, hoje, o Brasil vive um caos e o problema sério é o da informação.
Fizemos até agora 31 audiências no grupo de transição da saúde, ouvindo diferentes setores. Todos, sem exceção, quando começam a apresentar seus problemas, independente da área, fazem o mesmo alerta: “um problema grave é informação”. É um apagão cibernético. O Tribunal de Contas, inclusive, denuncia isso. Há um caos do ponto de vista da organização. É impressionante como, em quatro anos, o governo Bolsonaro conseguiu destruir políticas e programas consolidados que foram edificados a duras penas ao longo dos últimos anos e décadas.

— O senhor mencionou o apagão de informação, é possível detalhar um pouco mais em quais áreas o problema existe?
— Eu posso dar exemplos de coisas que a gente foi ouvindo das audiências que a gente fez. No sabemos, por exemplo, onde estão os órfãos da Covid. Sabíamos que crianças perderam seus pais e, para apoiá-las, seja para um tratamento em termos de suporte em saúde mental, seja para acompanhar… Não se sabe onde estão essas crianças. Vou dar outro exemplo: não sabemos a atual situação da saúde bucal da população brasileira. Como está a questão dos índices de dentes cariados, perdidos, obturados, quantas pessoas estão na fila… Outro exemplo: não sabemos as doses de vacinas distribuídas ao longo do Brasil. A cobertura, você acabou de dizer, “18% dos brasileiros tomaram dose de reforço” e só 60% dos adultos tomaram a terceira dose. Mas os municípios dizem: “Não é verdade. A gente vacinou mais do que isso. Quando a gente tenta digitar os dados e subir no sistema, a gente não consegue. E aí as equipes não perdem tempo digitando e começam a vacinar, não informam”.
Vou dar outro exemplo: a gente não sabe hoje qual é a distribuição de medicamentos para HIV/Aids e hepatites. Há informações de que um paciente demora seis meses para entrar no protocolo de tratamento da hepatite, o que pode ser gravíssimo. Outro exemplo: um dos maiores problemas de saúde do Brasil hoje são as filas, acesso para diagnóstico, para cirurgia eletiva, para o tratamento de câncer. Não há informação em nenhum lugar no Ministério da Saúde, nas secretarias estaduais e municipais, de qual é o tamanho da fila e do que é essa fila, se é de casos de câncer, se é de hipertensão, para fazer exame de colonoscopia, uma cirurgia eletiva… Não se sabe. O que se sabe é que a fila é enorme. Então, você imagina o que é fazer gestão, planejamento do sistema onde a base de informação não existe… A Dilma brincava com uma expressão que eu gosto muito, ela dizia o seguinte: “De vez em quando os dados são imbatíveis, não batem nada com nada”.

— Não há precedentes para uma situação assim…
— Estamos vivendo um pouco essa situação com a diferença de que não é que eles são imbatíveis, mas chegam a não existir. Então, o próprio Tribunal de Contas, a gente teve com um dos ministros e ele perguntou: “o que é que vocês querem de ajuda do Tribunal de Contas?” Como coordenador do grupo, eu disse: olha, se os tribunais de contas dos estados conseguissem fazer uma contagem das doses de vacina para a gente ter um BO, ou seja, para a gente conseguir fazer um panorama de fato do que é o estoque que o Ministério da Saúde diz que tem e o que está disponível nos estados só pra gente poder “bater”, saber onde está pisando… Aí, o Tribunal de Contas da União vai pedir para os tribunais de contas dos estados fazerem uma contagem de estoques para nos ajudar. É esse o ponto que a gente chegou. Os caras destruíram o ministério. Eles destruíram a capacidade de planejamento. A autoridade sanitária do Ministério da Saúde, literalmente, se desfez. Não se consegue coordenar nada porque nada se sabe. E agora a gente vê nessa reta final uma tentativa das pessoas que estão lá no ministério protegerem seus CPFs. Estão querendo colaborar, se dispondo a ajudar. Mas está tudo desmontado.
Vivi a transição de 2002 para 2003, fazia parte da equipe do Humberto Costa, quando ele era o ministro. E a gente achava que tinha encontrado problema na transição do governo Fernando Henrique. Nada, nada, nada se compara à destruição do que representou o governo Bolsonaro. É uma coisa inacreditável.

— Isso já era uma expectativa que a gente tinha, porque quando houve o golpe contra a Dilma, a gente já viu um certo abandono do SUS. Dali foi ladeira abaixo? Vamos encontrar o SUS arrasado.
— A palavra que tem sido utilizada não só por nós, mas com quem a gente conversa é: reconstrução. No caso do SUS, a gente tem uma situação que de alguma maneira serviu como um contrapeso. Como a estrutura do SUS atribui também responsabilidade para municípios e estados e como boa parte da execução das ações é feita por estados e municípios, de alguma maneira, em muitos lugares, a ação dos prefeitos, dos governadores, das equipes, dos trabalhadores e das secretarias acabou segurando um pouco as pontas. Então, a destruição não foi total, mas há muita desorganização. Perdeu-se a coesão, a ideia do único. Chamamos o sistema nacional de saúde de único porque o SUS tem que fazer essa articulação, integração. E o ministério tem a função de coordenar. Quando se perde essa capacidade, degringola tudo. Eu diria que esse talvez seja um dos grandes desafios. Vamos ter que reconstruir o Programa Nacional de Imunização. E construir o Brasil Sorridente, a Farmácia Popular, o Samu, a política de saúde mental e assim vai. É reconstrução.
Em alguns casos, a destruição foi deliberada para colocar uma agenda conservadora. Vou dar um exemplo: saúde da mulher. Foi deliberado. Todo o trabalho de humanização do parto, no cuidado integral, no cuidado ao aborto legal, ao enfrentamento do racismo estrutural que temos no sistema de saúde. Todas as políticas de humanização foram substituídas por práticas retrógradas, por uma coordenação alinhada aos conceitos mais conservadores… Mais do que conservadores, conceitos fascistas. Com práticas, inclusive, não mais recomendadas pela medicina em âmbito internacional há duas décadas. É claro que isso abriu espaço para os interesses econômicos, interesses privados e grupos empresariais. A fragilização do SUS também interessa, porque em determinados lugares abre espaço para outros setores. O negacionismo serviu para negócios. Eu usei essa expressão, mas é o seguinte, destruiu-se o Programa Nacional de Vacinação, a capacidade técnica e etc para comprar vacina superfaturada de fora, como a CPI demonstrou. Então, não tem ingenuidade, não tem “os caras são incompetentes”. “Ah, não tinha política”… Tinha política, sim. E ela estava a serviço de um projeto. Vai vir muita coisa ainda decorrente do trabalho que foi feito pelo Humberto Costa, Rogério Carvalho, Randolfe [Rodrigues] e os senadores que trabalharam na CPI — eu tive a oportunidade de assessorar a comissão durante sete meses. Tem muita coisa no TCU, na Polícia Federal. É claro que a PGR tem segurado muita coisa…
O domínio, por exemplo, da rede federal de hospitais do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro pelas milícias é uma coisa impressionante. Impressionante! A desativação de alguns hospitais do Rio é um exemplo escancarado de interesses econômicos. Vou dar o exemplo do Hospital Geral de Bonsucesso. Ele tem um papel fundamental no atendimento da população do Rio… E eu estou pegando alguns exemplos, mas isso se reproduz em várias outras áreas em que a gente teve prejuízos muito significativos. E aí as pessoas podem dizer: “bom, mas isso é uma crítica meramente política, está fazendo um contraponto”. Não. Eu vou dizer claramente, tivemos a interrupção de uma tendência histórica de diminuição da mortalidade infantil. E aumento da mortalidade materna. Voltamos a ter internação de bebês desnutridos. Isso é fruto da desmontagem da atenção básica, do programa Mais Médicos, da fragilização, da resposta e da fome. Claro que mistura todo esse contexto de crise econômica e social que o país mergulhou com Bolsonaro.
“Ah, mas teve pandemia”, “teve guerra na Ucrânia”. Sim, mas para isso que serve o Estado, para, num momento como esse, construir capacidade de resposta. E foi não tivemos isso. O que tivemos foi um presidente e um governo que aprofundaram a desgraça, que serviu como um grande inimigo da população brasileira e está aí. Está no Ministério da Saúde, está no da Educação, da Cidadania. Está em todas as áreas a expressão dessa desmontagem.

— Quanto tempo será necessário para essa reconstrução?
— É difícil dizer agora quanto tempo. Se a gente trabalha com a perspectiva de que a gente quer recuperar a dignidade e o direito da população à saúde… Acho que isso vai ser uma tarefa para os próximos quatro anos, mas com respostas muito imediatas. A saúde tem uma grande vantagem. Da mesma maneira que ela impacta muito significativamente a população quando o direito à saúde é negado e produz respostas muito rápidas. Então, é claro que o novo ministro ou nova ministra vai ter que entrar com a sua equipe montando um gabinete de crise. Construindo uma estratégia de garantir abastecimento de medicamentos, vacinas… Será preciso uma intensa campanha vacinal, enfrentando a pandemia de Covid, fazendo mutirão, convocando a sociedade para poder ter respostas e melhor impacto. Mas, enquanto isso é feito, isso produz respostas rápidas e vai ser o tempo necessário também para que sejam adotadas políticas estruturais. E aí o financiamento é fundamental. Por que estou falando isso? Porque logo que a gente montou o grupo de trabalho, quando ainda estavam só os quatro ex-ministros: eu, [Alexandre] Padilha, [Gomes] Temporão e o Humberto Costa, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o [Aloizio] Mercadante nos deram uma tarefa: analisar o orçamento de 2023 aprovado pelo Congresso.
A gente identificou que para poder garantir R$ 10 bilhões para as emendas do chamado “orçamento secreto”, o governo Bolsonaro simplesmente cancelou R$ 10,47 bilhões de despesas. Ou seja, aquele orçamento que já era muito ruim, impactado pelo teto de gastos, afundado, como expressão da negação do direito à saúde, estava cortado em R$ 10,47 bilhões. Então, esses R$ 22,8 bilhões que estamos propondo na PEC emergencial vão recompor R$ 10,5 bilhões para voltar a garantir o mínimo e ter mais R$ 12 bilhões para ampliar o Farmácia Popular, comprar vacina, fazer um mutirão e enfrentar esses gargalos de acesso, comprar medicamentos oncológico…

— Você falou que eles queriam fazer negócio e eram negacionistas. É o“negocionismo”…
— Eu sempre digo isso. É negacionismo a serviço do “negocionismo”. A pior coisa que a gente pode dizer é que o Bolsonaro era incompetente, que não tinha projeto. Que nada. Tem projeto, foi muito competente para produzir necropolítica, para produzir negócio. Não tem essa não, gente. Por isso que foi tão importante derrotá-lo nas urnas e agora precisa ser derrotado na política. Na disputa simbólica do sentido da vida, da vida política do povo brasileiro.

— Sobre a questão do complexo industrial da saúde, que fala-se muito sobre a necessidade de o Brasil desenvolvê-lo, mas qual o tempo que isso pode levar?
— A política para o complexo econômico industrial de saúde começou a ser construída no segundo governo do presidente Lula, quando a gente percebeu a importância de ter soberania, de usar o poder de compra pública do SUS, que é um grande comprador, para enfrentar os principais gargalos das necessidades tecnológicas de produzir inovação. Então, há, por exemplo, medicamentos que são destinados para poucos pacientes ou porque são doenças raras ou porque são drogas de segunda, terceira escolha para o tratamento do câncer, por exemplo. Mas custam absurdamente caro. Às vezes é um tratamento que custa milhares ou milhões de dólares. Então, começou-se a se perceber o seguinte, ou a gente domina essa tecnologia ou não vai conseguir garantir a produção em larga escala e dar acesso a toda a população. Veja, se hoje Bio-Manguinhos, se hoje o [Instituto] Butantan têm capacidade de produção de vacinas, é porque lá atrás a gente investiu em políticas de desenvolvimento produtivo, transferência de tecnologia e políticas de inovação.
Portanto, se trata de uma questão absolutamente imprescindível. Se não houver investimento na capacidade de produção no parque nacional, público e privado, no uso do poder de compra público, na inovação, na ciência e na tecnologia, vamos ficar eternamente dependentes. A nossa balança comercial hoje é altamente negativa. O Brasil gasta muito dinheiro para importar produtos, medicamentos e equipamentos que poderiam estar sendo produzidos aqui, gerando emprego qualificado, renda, fazendo com que o país fosse exportador. E temos capacidade.

— Tanto Bolsonaro quanto pessoas que fizeram parte do governo podem vir a ser responsabilizados judicialmente por tudo o que foi feito?
— Sim. Pelo conjunto de informações que a gente tem e se os órgãos de controle funcionarem com autonomia, independência e sem obstáculos criados ao longo do governo… Veja, as denúncias que a CPI fez são fundamentadas e a PGR segura todas. Uma das audiências que fizemos foi com familiares de vítimas da Covid e uma das coisas fundamentais é a memória, a reparação, combater essa impunidade. Tivemos um genocídio e não podemos repetir o que fizemos, por exemplo, na ditadura militar — “deixa pra lá”. A gente já viu onde isso vai parar. Para que nunca mais se repita, é preciso, sim, apurar responsabilidades. Houve ali um conluio…

— Uma condescendência criminosa…
— Podemos chamar como quiser, mas é isso mesmo… É só lembrar o seguinte: temos 2,7% da população mundial e registramos 11% dos óbitos. E todos os óbitos que estão além de 2,7% são evitáveis. Esse é o estoque daquilo que pode ser claramente atribuído. Eu digo sempre: no atestado de óbito não basta constar Covid, tinha que aparecer também ‘Bolsonaro’. •

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