Hebe de Bonafini e a resistência

A presidente das Mães da Plaza de Mayo morreu aos 93 anos e pediu que suas cinzas fossem espalhadas onde denunciou o desaparecimento de milhares de militantes políticos a partir de 1977. Lula e Dilma lamentam o falecimento da lutadora argentina

 

A história da resistência argentina ao cerco e à brutalidade da ditadura permanece. Mas um dos seus símbolos deixou o planeta no domingo, 20. Hebe de Bonafini morreu aos 93 anos. Ela perdeu dois filhos durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983) e transformou a luta pela busca dos mais de 30 mil cidadãos que foram assassinados naquele período em uma trincheira. Foi símbolo da luta pelos direitos humanos na América Latina. O governo Alberto Fernández decretou luto oficial por três dias.

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva lamentou a perda da histórica fundadora e presidenta da Associação das Mães da Plaza de Mayo. “Hebe dedicou sua vida à luta por memória e Justiça. Defensora dos direitos humanos, ajudou a criar um dos mais importantes movimentos democráticos da América Latina”, disse. “Sua luta e perseverança seguem sendo exemplo para os que acreditam em um mundo mais democrático”.

A ex-presidenta Dilma Rousseff também elogiou a luta e o combate da histórica militante dos direitos humanos. “Hebe viverá como exemplo de mulher e personificação da coragem. Orgulho da Argentina e de toda a América Latina”, afirmou. “Com a morte de Hebe de Bonafini, o mundo perde um exemplo de dignidade, uma mulher defensora da vida e lutadora pelos direitos humanos”.

O Papa Francisco divulgou uma carta lamentando a morte da fundadora das Mães da Plaza de Mayo. “Quero estar perto de todos os que choram a sua partida”, escreveu. Na carta, o Pontífice refletiu o carinho que o unia a Hebe e destacou a luta pelos pobres. 

O ex-bispo de Buenos Aires lembrou que Hebe fez uma opção pelos marginalizados. “Ela soube transformar sua vida, como vocês, marcada pela dor de seus filhos e filhas desaparecidos, em uma busca incansável pela defesa dos direitos dos mais marginalizados e invisíveis”, disse, na carta endereçada às Mães da Plaza de Mayo.

Às 9h20 de domingo, Hebe faleceu – aos 93 anos – no Hospital Italiano de La Plata. Ela estava internada há uma semana, segundo fontes do governo provincial que acompanharam de perto o seu estado de saúde. No mês passado, ela havia sido internada, mas a liberaram em 13 de outubro para que pudesse continuar sob cuidados em casa. Sua filha, Alejandra, foi quem relatou a morte.

Hebe nasceu em 4 de dezembro de 1928 em uma pequena casa com piso de tijolo em El Dique, bairro operário de Ensenada. Era a filha mais velha de uma família em que o pai ganhava o pão trabalhando numa fábrica de chapéus. Chamada então de “Kika” , ela sonhava ser professora. Queria ir para o Normal, mas nem a mãe nem o pai concordaram. Eles a enviaram para aprender costura. Mais tarde, continuou com o tear.

Conheceu Humberto Bonafini — ou “Toto” — no bairro. Ele era um pouco mais velho que ela. |Também trabalhador, como seu pai. A essa altura, Toto trabalhava na Rodovia Nacional. Eles se casaram em 1949 na Igreja de San Francisco de La Plata. Pouco depois, Hebe engravidou de Jorge Omar, seu filho mais velho, nascido em 1950. Aos três anos, chegou Raúl.

A sorte começou a sorrir para a família quando Toto conseguiu um emprego como funcionário da YPF. Com isso foi o suficiente para se mudarem para uma casinha mais perto de La Plata e, em 1965, nasceu Alejandra, a caçula dos irmãos. Os filhos ingressaram na Universidade Nacional de La Plata (UNLP). Jorge destacou-se como aluno de Física em Ciências Exatas e Raúl estudou Zoologia em Ciências Naturais. Ambos eram ativos no Partido Comunista Marxista Leninista (PCML). O fim dos dias felizes chegou depois do golpe militar de 24 de março de 1976. •

 

A DOR DE NÃO SABER ONDE ESTÃO OS FILHOS

Foi Raúl Bonafini quem ligou para para dar a notícia à mãe: Jorge havia sido levado embora. Kika estava então cuidando de seu irmão que estava morrendo de câncer. Em 8 de fevereiro de 1977, começaram as buscas da família Bonafini pelo filho. O habeas corpus manuscrito foi apresentado pelo marido. Todos deram início ao ritual de bater nas portas das delegacias e dos regimentos para saber onde estava o filho.

Antes do desaparecimento de Raúl, Hebe não havia pisado na capital mais de uma ou duas vezes. A busca pelo filho a levou até onde estava o poder. Como outras mães, abandonou o sobrenome de solteira e adotou o de casada – para ser identificada com o do filho.

Em 30 de abril de 1977, outras mulheres que procuravam seus filhos e filhas começaram a se reunir na Plaza de Mayo. Hebe soube pela mãe de um preso político e ingressou dias depois. A primeira mãe com quem falou foi Azucena Villaflor. A busca foi dilacerante, mas não estava mais sozinha.

Quando se envolveu com outras mães para arrecadar o dinheiro e as assinaturas para publicar um requerimento no qual denunciassem publicamente o que muitas famílias sofriam, Raúl desapareceu. Foi levado de casa em Berazategui. Era 6 de dezembro de 1977, dois dias antes do sequestro de duas das Madres na igreja de Santa Cruz. 

Hebe descobriu o que havia acontecido com suas colegas, Mary Ponce de Bianco e Esther Ballestrino de Careaga, no dia seguinte. Quis desistir, mas foi Açucena quem a convenceu de que era preciso seguir em frente. Finalmente, o jornal La Nación pubiclou o texto em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. No mesmo dia, uma turba da Escola de Mecânica da Marinha sequestrou Azucena.

“Quando sequestraram as Mães, todas as famílias diziam: ‘Pare com isso, eles vão matar todos’. Foi uma batalha com as nossas próprias famílias porque o medo é uma prisão, mas nunca pensámos em sair ”, contou Hebe. Os golpes continuaram. Em 1978, sequestraram a nora, María Elena Bugnone Cepeda, companheira de Jorge.

No ano seguinte, na casa de Emilio e “Chela” Mignone, Hebe foi eleita presidente das Madres – que, em agosto de 1979, foi constituída como associação civil. Nos anos 80, denunciou as leis de perdão do governo de Raúl Alfonsín e, nos anos 90, os de Carlos Menem. Foi a resistência ao modelo neoliberal de fome e desemprego. •