Uma das grandes intérpretes da MPB, musa da Tropicália e ícone pop, a cantora baiana morre de infarto aos 77 anos. Sua arte e presença marcaram os últimos 50 anos da vida cultural do país

 

 

Poucas cantoras podem dizer que são, ao mesmo tempo, personagem e intérprete de canções em sua homenagem. Um dos maiores sucessos de Gal Costa foi “Meu Nome é Gal”. A composição de Erasmo Carlos, de 1969, traduz com precisão o espírito colaborativo que havia então se estabelecido entre duas turmas da música brasileira, a Jovem Guarda e a Tropicália: “Meu nome é Gal/  E desejo me corresponder/ Com um rapaz que seja o tal/ (…) Meu nome é Gal/ E tanto faz que ele tenha defeito/ Ou traga no peito/ Crença ou tradição/ Meu nome é Gal/ Eu amo igual/Ah, meu nome é Gal”.

Maria da Graça nasceu em 1945, em Salvador. Era uma adolescente, portanto, quando foi lançado “Chega da Saudade” em 1958, o disco de João Gilberto que acendeu uma fagulha incontrolável em centenas de jovens pelo Brasil todo, chamando para uma música que soava nova, vibrante e plena de possibilidades. Amiga de bairro de Sandra e Dedé Gadelha, as irmãs que, mais adiante, se casariam com Gil e Caetano Veloso, conheceu Caetano em 1963 e já no ano seguinte começaria a carreira de cantora ao lado de  Gil, Tomzé, Caetano e Bethânia, o grupo baiano da Tropicália.

Apesar de Salvador ter sido um importante pólo cultural nesse período, era no Sudeste que estavam os centros produtores de música, espetáculos e os festivais das canções. Gal mudou-se para o Rio de Janeiro em 1966 e, no ano seguinte, já gravou o primeiro álbum em parceria com Caetano, “Domingo”.

Foi, no entanto, com “Tropicália ou Panis et Circensis”, o disco-manifesto de 1968, que se fixaria uma rota de inventividade e ousadia na MPB dali para frente. “Baby”,  composição de Caetano e cantada pela dupla no disco, como que anunciava a mulher jovem da contracultura: “Você precisa saber da piscina/ Da margarina/ Da Carolina/ Da gasolina/ Você precisa saber de mim”. 

Com uma voz afinadíssima, educada e límpida, Gal passava da suavidade bossanovística às distorções das guitarras em segundos. Conseguia imprimir a mesma intensidade aos sambas mais delicados e às popices vanguardistas mais experimentais. O impacto da voz de Gal nos seus dois primeiros discos, Gal (1969) e Legal (1970), e a força de sua interpretação muito particular fulguravam num cenário já habitado por excelentes cantoras e cantores, mas com um sentido de autoria que, se não era exatamente inédito, passou a ser uma marca dessa geração. 

Como Nara Leão e Elis Regina, Gal — e Maria Bethânia, numa trajetória sempre próxima, mas paralela — seguiram as vozes dissonantes do lugar da cantora-mulher, agora tornadas intérpretes-curadoras. Eram conhecedoras curiosas da muita música que se fazia, reveladoras de novos compositores e verdadeiras criadoras de versões definitivas de canções, novas ou velhas. Essa qualidade fica evidente em “Fa-Tal”, álbum duplo e ao vivo, do show homônimo dirigido pelo poeta Wally Salomão.

O disco foi gravado num dos últimos shows da longa temporada no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, em 1971. De Ismael Silva (“Antonico”) ao então desconhecido Luiz Melodia, do radical Jards Macalé à dupla estreante de compositores dos Novos Baianos, Moraes Moreira e Galvão, o repertório do disco percorre o melhor da tradição com o que havia de mais novo e pulsante na música brasileira. Ainda hoje, 50 anos depois, “Fa-Tal” ainda soa impecavelmente moderno e interessante.

Nos anos 1970, Gal faria nada menos que sete discos de estúdio — “Índia” (1973), “Cantar” (1974), “Gal Canta Caymmi” (1976),  “Caras & Bocas” (1977), “Água Viva” (1978) e “Gal Tropical” (1979).  Os Doces Bárbaros, reunião com Caetano, Gil e Bethânia em 1976 para uma série de shows pelo Brasil, de certa forma, finaliza a experiência contracultural, num grande espetáculo performático e coletivo, com presença forte da cultura e da religião afrodescendente, dos ritmos baianos do litoral e do interior e, claro, do samba.

Em “Os Mais Doces Bárbaros”, como que a canção-manifesto do projeto, cantam os quatro: “Alto astral, altas transas, lindas canções/ Afoxés, astronaves, aves, cordões/ Avançando através dos grossos portões/ Nossos planos são muito bons/ Com a espada de Ogum/ E a benção de Olorum/Como num raio de Iansã/ Rasgamos a manhã vermelha”.

Nas décadas de 1980 e 1990, Gal percorreria uma sólida carreira como grande intérprete, gravando canções ou participando de shows e discos com dois gênios da Bossa Nova, João Gilberto e Tom Jobim. Ainda fez parcerias com outros grandes nomes da música brasileira, como Luiz Melodia, Tim Maia e Milton Nascimento. Sua natureza tímida se agigantava com o microfone na mão e a qualidade sempre clara, cristalina de sua voz era capaz de fazer de qualquer show um grande espetáculo.

Depois de um período de certa reclusão, que também coincidiu com o processo de adoção do seu único filho, Gabriel, em 2007, e os cuidados dos primeiros anos do menino, Gal voltou com o elogiadíssimo álbum “Recanto”, em 2011.

E, desde então, entremeou o lançamento de mais três discos  —“Estratosférica”, 2015; “A Pele do Futuro”, 2018 e “Nenhuma Dor”, 2021 — com os registros de palco das turnês. Se em “Recanto”, gravou apenas composições de Caetano, nos discos seguintes voltou à variedade de repertório, interpretando composições de velhos amigos como Tomzé, Jorge Mautner, Djavan e compositores da nova geração, como Céu, Emicida e, sim, Marília Mendonça, a rainha do “feminejo” cuja voz grave e potente a atraiu. Sorte enorme das novas gerações de fãs que puderam sentir a força da voz e da presença de palco de Gal.

Dona de uma vida tão linda e intensa, senhora de sua trajetória artística tão enormemente pessoal, Gal Costa partiu de repente, de  infarto, aos 77 anos, em 9 de novembro, deixando o filho Gabriel, de 17 anos. •

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