“Cloroquination“. Um livro-reportagem explica como um país inteiro foi mergulhado no delírio da cloroquina. Investigação da jornalista Chloé Pinheiro e do farmacêutico Flávio Emery remonta a tenebrosa história do tratamento precoce

 

Ninguém vai esquecer da imagem de um Jair Bolsonaro trôpego, andando sozinho nos jardins do Palácio da Alvorada, tirando uma caixa de cloroquina do bolso da camisa social de manga curta e brandindo-a na direção das emas que circulam por lá.

O presidente, depois de fazer pronunciamentos em cadeia nacional de TV desdenhando da pandemia, havia contraído o coronavírus e estava em isolamento. Era 20 julho de 2020 e o país estava assustado com o fato de que tínhamos 84 mil mortes causadas pela doença. Isso em pouco mais de 3 meses de pandemia. O ministro da Saúde, o terceiro desde 2019, respondia ainda como interino à frente da pasta.

Seiscentos mil óbitos e uma CPI depois, ainda há muitas perguntas e questões sobre a condução do governo federal e das autoridades de saúde diante da maior crise sanitária do Brasil contemporâneo.

Para além da postura pessoal de menosprezo de Bolsonaro e seu entorno,  destacam-se pelo menos dois grandes temas: o atraso e os esquemas de corrupção na compra de vacinas e a insistência no chamado tratamento precoce com medicamentos ineficazes.

É sobre esse último tema que a jornalista Chloé Pinheiro e o farmacêutico Flávio Emery se debruçaram para responder à pergunta: “Como o Brasil se tornou país da cloroquina?”. Ela é especialista em saúde  e ciência. “O Brasil só se tornou este antro de medicamentos ineficazes porque a saúde foi levada para a esfera política”, disse a repórter ao Opera Mundi. 

Combinando pesquisa histórica e científica com investigação jornalística, a dupla de autores persegue essa história macabra, que contribuiu para que o Brasil ocupasse um desonroso terceiro lugar em mortes por covid em todo o mundo, muitas delas evitáveis.

De acordo com pesquisa conduzida pelo  epidemiologista Pedro Hallal, um dos entrevistados do livro,  entre 120 mil e 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas, o que  equivale dizer que quatro em cada cinco pessoas que morreram de covid poderiam estar vivas hoje.

“Essa desinformação circulou nas esferas políticas. Muitos médicos ‘cloroquiners’ acusam a gente de ter politizado os medicamentos, mas todos os canais e principais atores são bolsonaristas também”, denuncia a jornalista, que é repórter da Veja Saúde e do podcast Ciência Suja.

Utilizando os recursos da reportagem investigativa, mas também da divulgação científica, “Cloroquination” consegue remontar as circunstâncias culturais e históricas não apenas da busca pelos remédios milagrosos na qual insistiam negacionistas de toda ordem e charlatões a soldo do dinheiro público e privado, mas também da guerra de desinformação promovida pelos interesses políticos.

O papel vergonhoso dos profissionais de medicina na promoção do chamado kit covid, espécie de cesta básica de remédios na melhor das hipóteses ineficazes e na pior potencialmente danosos à saúde está muito bem esquadrinhado. O governo federal insistiu em meter goela abaixo da população esses medicamentos.

O livro só resvala um pouco quando se arrisca às explicações comportamentais que levaram milhares de pessoas a embarcarem na solução fácil dos tratamento precoce, o que talvez se evidencie pela pouca distância entre os fatos narrados e a elaboração do texto. O que aconteceu na vida mental das pessoas que viveram o terror dos dias mais duros da pandemia e o que essa experiência global de caos talvez mereçam reflexões mais amadurecidas ou autores menos apressados. 

Ainda que a esta altura seja difícil relembrar desses dias, “Cloroquination” é obra que consegue jogar várias luzes nesse túnel escuro, que, dois anos e seis meses depois, ainda não acabou.  •

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