A elite paulista desnudada

“Roupa Suja”, livro do escritor Moacyr Piza, faz caricatura impiedosa dos donos do poder político na República Velha. A obra tem posfácio de Bóris Fausto e resgata o Brasil do século passado

 

 

Mas as vozes perdem-se, abafadas pelas ondas sonoras que a orquestra, no salão próximo, expande, na execução batucada d’ ‘O passo do jocotó’. Terpsícore domina, eletriza os bailarinos. Dança o sr. Luís Fonseca. Dança o sr. Casimiro da Rocha. Dança o sr. Rodolfo Miranda, esforçando-se penosamente para adaptar à cadência repinicada do maxixe o passo obsoleto da mazurca. Dança a Comissão Diretora. Dança o presidente, com delícia”.

A cena se passa num festa de gala no Palácio do Ipiranga para comemorar a Proclamação da República.  O “presidente”, no caso, era Washington Luís, então chefe do governo de São Paulo.

Quem descreve a cena é o escritor e advogado Moacyr Piza (1991-1923) num livro chamado “Roupa Suja”, apresentado pelo seu autor como “uma polêmica alegre, onde se faz o panegírico de alguns homens honrados da política republicana”.

É um retrato da elite paulista da chamada República Velha então dominada pelo Partido Republicano Paulista, que representava as oligarquias de boa parte do Sudeste, principalmente os fazendeiros de café. O PRP, além de ter eleito  quatro presidentes do Brasil — Campos Salles, Rodrigues Alves, Washington Luis e Júlio Prestes —, tinha muita força no estado.

Piza também era ele mesmo um homem da elite. Filho de fazendeiro, veio como estudante para a cidade de São Paulo e foi na Faculdade de Direito que começou a circular pelos meios literários. Nas primeiras décadas do século 20, a faculdade situada no Largo de São Francisco preparava os moços ricos para assumir a condução dos negócios do Estado e da vida econômica. Ao mesmo tempo, era um dos epicentros da vida intelectual, literária e boêmia da cidade. Foi a partir da faculdade que Piza começou a se destacar como literato, publicando poemas satíricos e outros textos nas diversas revistas e pasquins da Belle Époque.

Em “Roupa Suja”, o escritor entra na polêmica para ridicularizar a prepotência do PRP no governo do Estado e em suas práticas duvidosas para se manter no poder. O mote foi a tentativa  do partido de fraudar o resultado das eleições municipais em Capivari, cidade na região de Campinas, fazendo o uso da força pública. O caso foi parar na Justiça e Piza foi chamado de “alma de esgoto” no processo por Júlio Prestes, cacique do PRP e  então protegido de Washington Luís.

Ao que parece, o xingamento desencadeou alguns dias de fúria em Piza, que retratou a “corte” de Washington Luís com um humor feroz e muitas considerações desabonadoras sobre o comportamento político e ético do líder político.

Com imaginação vívida, o escritor desfia um rosário de cenas ridículas, comentários ácidos e insinuações desairosas sobre a vida privada dos políticos num fôlego só.

Obra original, “Roupa Suja” transcende o interesse do pesquisador ou do historiador.  Com uma escrita sem pudores, Piza descreve vícios dos homens do poder — a ganância, a indiferença com a coisa pública, a dupla moral, o puxa-saquismo — que, sabemos, continuam a vicejar. O volume tem posfácio do historiador Boris Fausto, que também é responsável pela indicação editorial. •

 

Roupa Suja. Polêmica alegre

Moacyr Piza

Editora Chão

200 páginas

Preço sugerido: R$ 59