Endividados aguardam nova fase: 40% dos brasileiros estão com contas em atraso. Retomada da economia, controle da inflação e queda nos juros devem ficar para o ano que vem, sob novo governo. Lula anuncia que vai renegociar dívidas

 

Milhões de brasileiros estão com contas atrasadas. Segundo pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e da Confederação Nacional de Lojistas (CNDL), divulgada no início de agosto, 63,2 milhões de pessoas, mais de 39% da população, estavam inadimplentes em julho. Quatro em cada dez brasileiros adultos vão dormir preocupados com boletos vencidos que não conseguiram pagar. A maioria, 36%, está com contas em atraso acumulado entre 90 dias e um ano. Em segundo lugar, com 21% do total, estão pessoas que não pagaram contas vencidas havia 90 dias. Os índices são os maiores captados pelo SPC/CNDL desde que o levantamento passou a ser feito, há oito anos.

É como estar preso a um terreno de areia movediça, em que a sensação de afundamento agrava-se a cada dia. Contas em atraso geram mais juros e pressionam o devedor, que precisa fazer escolhas difíceis entre o que é realmente indispensável para a vida de sua família. Comer ou pagar o cartão de crédito. Quitar o boleto da compra financiada ou regularizar a conta de energia elétrica. O cenário ao redor não é inspirador: quando não o desemprego, o devedor tem de se virar com salários ou ganhos cada vez mais comprimidos, frente a uma inflação persistente que atinge bens indispensáveis à sobrevivência, apesar da tão decantada queda de preços em alguns itens. Mas o conjunto dos alimentos, por exemplo, continua com preços nas alturas.

Outro indicador importante de inadimplência utilizado no Brasil aponta na mesma direção. A pesquisa Serasa mais recente, de junho, destaca que 66,8 milhões de pessoas no Brasil estavam com contas em atraso de 90 dias ou mais. São homens e mulheres que têm seus nomes incluídos nas famigeradas listas de calote. Além das dificuldades práticas que essa condição impõe, como não conseguir mais fazer compras a prazo ou perder o acesso aos limites de crédito dos bancos, a inadimplência adoece. Oito em cada dez brasileiros foram acometidos de ansiedade, depressão, estresse ou vergonha – este sentimento é apontado por 54% dos inadimplentes, conforme apontou pesquisa da CNDL em março deste ano.

O valor das dívidas em atraso demonstra que a maioria dos inadimplentes compõe as bases da pirâmide social: 34,5% das pessoas devem até R$ 500. Na outra ponta, 12% acumulam dívidas acima de R$ 7,5 mil. Já 20,5% dos devedores têm boletos vencidos que acumulam entre R$ 1 mil e R$ 2,5 mil. Em iniciativa inédita, a Serasa e um grupo de 45 empresas aboliram os juros na intermediação de dívidas de pessoas físicas.

A pergunta que tira o sono de muitos — o que fazer? — deve, ou deveria, estar rondando a cabeça dos candidatos a presidente e seus assessores de campanha. No caso do candidato à reeleição, o principal gesto até o momento foi convidar as pessoas a se endividar ainda mais, especialmente as mais pobres. A possibilidade de contrair crédito consignado sobre o Auxílio Brasil, criada pelo governo Bolsonaro, promete produzir mais empobrecimento e dor de cabeça. Caso o beneficiário pegue o consignado, nos meses seguintes o dinheiro ficará retido no banco, como, aliás, tem alertado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Na sabatina promovida pelo Jornal Nacional, na quinta-feira, Lula reiterou o compromisso de renegociar as dívidas da população. “Nós temos quase 70% das famílias brasileiras endividadas, e a grande maioria delas é mulher, 22% endividadas porque não pode pagar a conta de água, a conta de luz, a conta do gás”, lembrou o ex-presidente. “Nós vamos negociar essa dívida. Pode ficar certo que nós vamos negociar com o setor privado e com o sistema financeiro”, disse.

Um novo governo Lula planeja promover a renegociação das dívidas das famílias e das pequenas e médias empresas por meios dos bancos públicos e incentivos aos bancos privados para oferecer condições adequadas de negociação com os devedores. A proposta está na plataforma “Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil”, elaborada pelos sete partidos que compõem a coligação Lula-Alckmin.

Para compreender melhor o que pode acontecer com a inadimplência a partir de 2023, um rápido olhar sobre o passado pode ser de grande valia. Apesar de terem origem em outras pesquisas e refletirem momento diferente, alguns números mostram que houve queda consistente na inadimplência da população no primeiro governo Lula. Segundo dados da época produzidos pela Abracheque, empresa ligada ao setor financeiro, houve redução de 42% na inadimplência em 2003, em comparação com o ano anterior. Já a Serasa divulgou o índice de inadimplência de 5,1% ao final de 2003, contra os 39,9% da população em atraso com cheques, cartões, títulos e outras dívidas ao final de 2002, antes da posse de Lula.

À época, a imprensa brasileira destacava como fatores da queda a retomada da atividade econômica, os programas de transferência de renda — como o Bolsa Família — e os esforços de equalização de dívidas, por intermédio de instrumentos como o crédito consignado nas aposentadorias.

“Houve também um cenário internacional favorável, com o incremento do preço das commodities, que nos ajudou a arrefecer a inflação e valorizar nossa moeda, o que facilitou na quitação de dívidas das famílias”, lembra o economista Gabriel Galípolo.

Para 2023, ele não prevê uma conjuntura externa favorável como aquela. No entanto, aposta, as condições estão dadas para uma nova recuperação. “O Brasil está mais preparado do que antes, porque é um credor líquido internacional, têm reservas”, lembra. “E há o fator Lula, um estadista preparado e reconhecido, capaz de navegar num mundo mais complexo e fragmentado”. Galípoli é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ex-presidente do Banco Fator.

Para o economista, o enfrentamento da crise e consequente queda da inadimplência das famílias brasileiras passa por propostas apresentadas pela campanha de Lula. “O PT já fez e sabe fazer”, aponta. “Há várias frentes de geração de emprego e renda em massa e com rapidez, como a retomada das obras públicas de infraestrutura econômica e social. E os prometidos investimentos em reindustrialização, uma indústria de novo tipo, sustentável, vão se refletir no aumento da renda média”, comenta.

Há ainda a questão das taxas básicas de juros, hoje em 13,75%. No início do atual governo, o índice era de 6,50%. Galípolo lembra que é preciso reduzi-las. “Hoje o governo sobe a taxa para aumentar o prêmio dos investidores que têm títulos da dívida e para aumentar a demanda por reais e segurar o dólar. Remédio errado, com efeitos colaterais muito ruins, inclusive sobre a capacidade de as famílias pagarem suas contas”, ressalta. A independência do Banco Central pode atrapalhar essa missão? “Olha, acho que a Gleisi Hoffmann acertou quando disse que essa independência é técnica e operacional, mas não independência diante de um presidente eleito. Não é independência frente à democracia”, conclui. •

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