Depois da borrasca

Primeira canção inédita de Chico Buarque desde 2017, “Que Tal Um Samba”, composição em parceria com o bandolinista Hamilton de Holanda, anuncia turnê nacional por 11 cidades brasileiras e é um convite a “juntar os cacos, ir à luta”

 

 

Alguém uma vez me disse: “Chico faz análise de conjuntura, enquanto X faz leitura da vibe”. Não interessa quem é X nessa afirmação, por que o que vale é a primeira sentença. Lá veio Francisco, de novo, com uma análise de conjuntura aguda & precisa, mas que é também um samba lindo. Não, errei aqui. É O samba do ano da desgraça de 2022.

O clipe começou a circular na sexta-feira da semana passada, às vésperas do aniversário de 78 anos do cantor, no dia 19. Composto em parceria com o bandolinista Hamilton de Holanda, é uma daquelas canções de Chico Buarque em toda sua potência de pensar enquanto canta, de fazer enganchar uma frase na outra, encadeando as palavras de maneira que, tudo ouvido e absorvido, demora a decantar no espírito. É como se estivéssemos ali diante de uma coisa que parece simples, até ingênua em sua singeleza de letras de muitos substantivos e verbos, mas que, numa curva, numa esquina, numa inflexão de fraseado musical, te dá um susto, provoca um choque.

Como em muitas letras dessa turma de letras do compositor começa devagar, com uma ideia vaga, uma proposta modesta: “Um samba/Que tal um samba?” (Queremos, sempre). Daí ele disfarça, como se estivesse com a alma a flanar pelas ruas do Rio, pela orla com seus botecos, olhando o “mar que não tem tamanho” e os morros que delimitam as praias cariocas, a leseira da maresia, do futebol na areia ou das quadras da Lagoa Rodrigo Freitas, como se estivéssemos acompanhando este senhor em uma de suas intermináveis caminhadas (Sabemos, Chico, que você é um andarilho, sabemos disso e achamos isso, sei lá, de uma elegância ímpar e também de uma lógica meio que óbvia, pois o que fazer numa cidade como o Rio de Janeiro se não andar para ver ao rés-do-chão essa beleza que tira o fôlego?)

E então, da melodia envolvente, Chico nos chama às falas, isto é, nos pede atenção para o que realmente importa no samba para o qual nos convidou (“Coração pegando fogo/ E cabeça fria”). Quase poetas, junto com ele, nesse percurso pelas imagens caras a ele, Chico, e que ele nos ensinou a amar (a pelada, o banho de mar, o trago, a cama da amada), despertamos para a necessidade imperiosa de criar beleza (numa simpática citação à canção de Caetano Veloso, “Beleza Pura”):  “Que tal uma beleza pura/ No fim da borrasca?/ Já depois de criar casca/ E perder a ternura/ Depois de muita bola fora da meta”.

Entre estrofes divididas em sete e cinco versos, pontilhadas pelo bandolim de Hamilton de Holanda (não sei descrever; só sei que o instrumento parece sublinhar  e comentar cada palavra, cada pausa, como que respirando junto com o canto), chegamos quase sem fôlego por que sabemos que, então virá a ladeira abaixo na reiteração dos substantivos que rimam com o “samba porreta”: mutreta/ cascata/ derrota/ demência. A “dor filha da puta” faz cair o pano, desvelando o cadáver insepulto e putrefato do bode que o Brasil botou na sala.

Primeira canção inédita desde 2017, ano do LP “Caravanas”, “Que Tal Um Samba” é da mesma linhagem de “Apesar de Você”, de “Meu Caro Amigo”, “Vai Passar”, entre outras. Não custa lembrar que “Apesar de Você”, canção de 1971 e censurada, voltou à vida, por assim dizer, nos anos pós-golpe, foi uma espécie de hino informal da banda progressista das eleições de 2018 e acompanhou muitos panelaços “Fora Bolsonaro” nos primeiros meses do ano 1 da pandemia.

O lançamento dos clipes, um só com a canção e outro com a letra, também é uma espécie de teaser para a turnê nacional do cantor e compositor, que dividirá palco com Mônica Salmaso e tem datas confirmadas a partir da 6 de setembro em João Pessoa, Paraíba, até abril de 2023 em São Paulo. Oxalá, Chico, em 2023, a gente esteja de novo de “coluna ereta, que tal?” •