Em março de 1962, saía o primeiro disco de Bob Dylan, que a crítica nunca considerou grande coisa. Apesar disso, o álbum homônimo é o marco da carreira do compositor, que em apenas um ano deixou a cena boêmia do Greenwich Village, em Nova York, para virar estrela e se estabelecer como o mais influente compositor do século 20

 

 

 

Quando cheguei, o inverno estava de matar. O frio era brutal, e cada artéria da cidade estava entupida de neve, mas eu tinha vindo do norte enregelado, um cantinho da terra onde bosques sombrios congelados e estradas glaciais não me chateavam. Eu podia transcender as limitações. Não estava em busca de dinheiro nem de amor. Tinha um senso de percepção ampliado, estava firme no meu rumo; para completar, era inexperiente e visionário. Minha mente estava forte como uma armadilha, e eu não precisava de qualquer garantia. Não conhecia vivalma naquela metrópole sombria e enregelante, mas tudo estava prestes a mudar — e depressa”.

A introdução acima é de ninguém menos do que Bob Dylan. Ele chegou a Nova York numa terça-feira, em 24 de janeiro de 1961. Tinha 20 anos. Foi direto para o Greenwich Village, atraído pela atmosfera boêmia. Na primeira noite, vagou pela MacDougal Street até entrar no Café Wha? “O lugar era uma caverna subterrânea, não servia bebida alcóolica, mal-iluminado, teto baixo, como um salão de jantar amplo com cadeiras e mesas. Abria ao meio dia, fechava às 4h da manhã”, descreve o poeta em seu livro de memórias “Crônicas — Volume 1”, lançado em 2004. “Alguém me disse para ir lá e procurar por um cantor chamado Freddy Neil, que comandava o show diurno do Wha?” Foi o que ele fez.

Ali, no Wha? e no bairro estudantil, o jovem e atrevido compositor moldaria em semanas sua persona artística, com muitas mentiras sobre si mesmo — parecia seu esporte favorito. Mentia como o poeta que finge sentir a dor porque é um fingidor. A jornalistas e amigos daquela época disse que era filho de um eletricista, que tinha cruzado os Estados Unidos em vagões de carga de trens, que tinha sido expulso de casa e não tinha notícias da família há muito tempo. Tudo mentira. Nascia Bob Dylan, obliterando o impetuoso Robert Zimmermann, filho de judeus de classe média na distante cidade de Duluth, no estado de Minnesota. Os avós tinham vindo de Odessa, na Rússia, no início do século 20. 

O jovem parecia interessado em esconder o passado e se tornar outra pessoa. No domingo seguinte, no finalzinho daquele janeiro de 1961, e em diversas ocasiões, o rapaz visitaria o lendário Woody Guthrie, que estava internado no Hospital Psiquiátrico de Greystone Park, para conhecê-lo. Era o seu grande herói. Nos anos 30 e 40, Guthrie havia cruzado a América empunhando apenas seu violão, com o célebre aviso — “a máquina de matar fascistas. A partir dali e nas próximas semanas, Dylan passaria a visitá-lo junto com outras pessoas que também celebravam a música folk do poeta e cantor, um dos grandes poetas que cantaram a América, a quem o rapaz passou a mimetizar de maneira quase obsessiva.

No Village, Dylan passou a interagir com outros cantores folk e era um observador atento da cena. Copiava descaradamente o que achava interessante. Chupou e absorveu tudo o que pode — até mesmo o jeito de interpretar a tradicional canção “House of Rising Sun”, “roubada” de Dave Van Ronk. Também mergulhou nas músicas folclóricas tradicionais do cancioneiro estadunidense.

Em 25 de outubro de 1961, o lendário produtor John Hammond — o homem que descobriu Billie Holliday e outras lendas do jazz, como Count Bassie e Benny Goodman, assinou com Dylan para a Columbia um contrato de cinco anos. Pouco mais de um mês depois, entraram no estúdio para gravar o primeiro álbum do jovem trovador. O disco, intitulado “Bob Dylan”, foi gravado em dois dias e editado em apenas seis horas. Custou a bagatela de US$ 402.

Dylan ainda não era um cara que confiava tanto assim no próprio taco. Tanto que só gravou duas de suas próprias canções — “Song for Woody” e “Talkin’ New York”. As duas havia sido compostas ainda em 1961. Dylan escreveu “Song to Woody”, uma homenagem ao seu herói Woody Guthrie, apenas algumas semanas depois de chegar a Nova York. A canção foi escrita na farmácia da 8th Street”, disse ao Sing Out!, em 1962. “Foi um daqueles dias gelados que voltei do Sid and Bob Gleason’s em East Orange, Nova Jersey… Woody estava lá naquele dia e era uma noite de domingo de fevereiro… e eu pensei em Woody, eu me perguntei sobre ele”.

A letra é claramente um respeitoso tributo: “Hey, hey Woodie Guthrie, eu li escrevi uma canção/ sobre um engraçado e antigo mundo em que estou a passar./ Parece doente e esfomeado, cansado e rasgado,/ parece-me que está morrendo, mas que acabou de nascer./ Hey, Woody Guthrie, mas eu sei que isso você sabe/ tudo que estou dizendo e ainda muito e muitas vezes mais./ Estou cantando uma canção, mas não consigo cantar o suficiente,/ porque não existem muitos homens que fizeram as mesmas coisa que você”.

A outra canção de sua autoria conta os primeiros dias em Nova York: “Saindo do Oeste selvagem/ Deixando as cidades que mais amo/ Pensei já ter visto de tudo/ Até entrar na cidade de Nova York/ Pessoas descendo pelo chão/ Edifícios indo até o céu./ Época de inverno em Nova York/ O vento soprando neve por todos os lados/ Caminhando sem ter para onde ir/ Alguém poderia congelar até os ossos/ Eu congelei até os ossos/ O New York Times disse que foi o inverno mais frio em 17 anos”. 

Dezessete canções foram gravadas no estúdio, e cinco das faixas escolhidas do álbum foram cortadas — “Baby Let Me Follow You Down”, “In My Time of Dyin’”, “Gospel Plow”, “Highway 51 Blues” e “Freight Train Blues”. Durante as sessões, Dylan recusou pedidos para fazer outros takes das canções. “Eu disse que não. Não consigo me ver cantando a mesma música duas vezes seguidas. Isso é terrível”. 

Lançado em 19 de março de 1962, o álbum de estréia mostra um jovem Zimmermann bochechudo e com cara infantil. O álbum vendeu apenas 5.000 cópias no primeiro ano, alcançando o 13º lugar no Reino Unido e absolutamente nenhum lugar nos Estados Unidos. Dylan era chamado de “a loucura de Hammond” por executivos da Columbia. Eles logo se arrependeriam.

Um mês depois que o álbum foi lançado, Hammond colocou Dylan novamente em estúdio para gravar outro disco: “The Freewheelin’ Bob Dylan”. Por longos cinco meses, o obstinado Robert Zimmermann passaria a compôr de maneira compulsiva algumas das grandes canções de todos os tempos. É neste segundo álbum do bardo que constam “Blowin’ in the wind”, “Masters of war”, “A Hard Rain’s A-Gonna Fall” e outros clássicos, que ainda assombram o ouvinte, 60 anos depois do início da carreira do músico, o único laureado com um Prêmio Nobel de Literatura.  Mas aí já é outra história. •

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