Não tem tempo perdido
Após dois anos de pandemia, em que as crianças ficaram distantes da escola, propostas tentam recuperar o conteúdo perdido. Aqui estão três iniciativas adotadas pelo governo do Piauí, Prefeitura de Araraquara e o MST do Paraná
O retorno às aulas presenciais, após dois anos de pandemia, muitas dúvidas, medos e indefinições, é uma realidade em 2022. Os riscos de contaminação e morte pela Covid-19 ainda não deixaram de existir. Porém, com o avanço da vacinação, as escolas e universidades foram reabertas. O desafio agora é recuperar o tempo de paralisação e recompor o conteúdo pedagógico que teria sido compartilhado em outros tempos.
Cenários não-convencionais costumam demandar soluções ou saídas, senão inéditas, ao menos diferentes das usuais. Difícil imaginar que crianças, adolescentes e jovens possam recuperar o tempo de estudo perdido na pandemia valendo-se dos moldes anteriores. Para tentar identificar experiências de recomposição de aprendizado que buscam romper a grade curricular, Focus Brasil ouviu relatos que vêm do Piauí, da cidade de Araraquara e do MST.
As três experiências envolvem diversas ferramentas. Mesmo diferentes em amplitude, têm em comum a inspiração em um modelo em que o ensino não está refém de uma divisão seriada, estanque. Estudantes, por vezes de séries e idades diferentes, podem se encontrar em atividades complementares, de acordo com dois critérios preponderantes: necessidade e potencialidade.
A escola itinerante Caminhos do Saber, que congrega atualmente 220 estudantes dos ensinos fundamental e médio, no acampamento Maila Sabrina, em Ortigueira, Paraná, é uma das unidades de ensino nascidas a partir do MST em que a recomposição de aprendizado acontece nas chamadas aulas intermediárias e no reagrupamento.
Nas aulas intermediárias, estudantes com limitações de aprendizado em alguma disciplina reúnem-se, três vezes por semana, em turmas que cumprem 15 horas adicionais, somadas às 20 horas dedicadas às turmas regulares, que continuam frequentando. O estudante pode deixar essa atividade extra quando seus professores avaliarem que a carência que o trouxe até ali foi superada.
Enquanto isso, uma vez por mês, ocorrem os chamados reagrupamentos. Estudantes de séries e idades diferentes se reúnem para trabalhar dificuldades em língua portuguesa ou matemática, por exemplo. “Essas aulas têm planejamento e metodologia especiais. Com isso, todos avançam”, defende o pedagogo Jones Fernando Jeremias de Lima, que trabalha na escola Caminhos do Saber.
No Paraná, escolas do MST adotam o chamado sistema de ciclos de formação humana desde 2004, quando essa metodologia foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação. Em 2019, a Caminhos do Saber ficou em terceiro lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), entre 100 escolas da região. As aulas intermediárias, que haviam sido suspensas pelo governo paranaense em 2018, foram retomadas no ano passado, no contexto da pandemia, por pressão do MST.
No Piauí, governado por Wellington Dias (PT), o estudante que não consegue um bom resultado na avaliação anual, realizada pela Secretaria de Educação, passa a frequentar uma complementação, enquanto se mantém no ano-série em que está matriculado. Entre algumas medidas para enfrentar o desafio do retorno total às aulas, a complementação conta com a ajuda, desde o ano passado, de quase 2 mil alunos-monitores, selecionados entre aqueles que têm maior grau de evolução nas disciplinas. Em 2021, os alunos-monitores que cumpriram a nova missão com sucesso foram premiados com a posse definitiva dos tablets que a Secretaria de Educação adquiriu para a tarefa.
Na opinião de Maria José Mendes Neta, diretora de Ensino e Aprendizagem da Secretaria de Educação do Piauí, um dos elementos cruciais para atravessar esse período tem sido o Centro de Mídia. Em ação desde 2012, o centro estava “no ponto”, segundo ela, quando a suspensão das aulas presenciais foi decidida, em março de 2020. “No início”, conta Maria José, “o centro foi pensado para atender as escolas mais distantes do território”. A rede estadual piauiense tem hoje mais de 200 mil alunos, 30 mil educadores e 652 escolas, distribuídos em 224 municípios. O tempo de maturação do uso de tecnologias digitais e de telecomunicação no ensino proporcionou o desenvolvimento de plataformas e a formação dos educadores, tornando um pouco mais fácil a adaptação para o período de pandemia.
Na educação, o governo do Piauí mantém parcerias com entidades do terceiro setor, para a elaboração de métodos de avaliação e execução dos planos elaborados para cada ano. O processo de enfrentamento da pandemia também se pautou pelo diálogo com os conselhos nacional e estadual de educação, e com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Esses fóruns intensificaram as trocas com outros entes da federação, ainda mais importantes diante da inação do governo federal durante a pandemia.
Na cidade paulista de Araraquara, administrada por Edinho Silva, também do PT, um dos pilares da recomposição de conteúdo pós-pandemia é o reagrupamento em atividades complementares de crianças com níveis de aprendizado semelhantes, que podem ser estudantes de séries diferentes. Assim como nos casos do MST e do Piauí, a duração dessas atividades depende da superação das carências e o desenvolvimento das potencialidades. Clélia Mara dos Santos, secretária municipal de Educação, afirma que o reagrupamento, para não ter uma perspectiva de simples reforço escolar, vai contar com o apoio de equipes extras de pedagogos.
Outra proposta do projeto, batizado de Educa Mais Araraquara, é o programa Lição em Casa. “Ideia muitas vezes tão polêmica”, comenta Clélia, “mas a experiência que vivemos desde 2020 nos mostra que a criança precisa repercutir esse novo processo de vivência escolar, inclusive envolvendo seus familiares. Mas não se trata de a criança sair da escola e passar o restante do dia fazendo tarefa em casa. Dez minutos que a criança investir para recuperar o que viu em sala vai nos apontar um diagnóstico de aprendizado e ajudar os professores a preparar as aulas seguintes”, garante.
Clélia destaca que o portal da secretaria traz plataformas interativas como suporte para esse projeto, e que parte das atividades do Lição em Casa será realizada no centro de educação, criado pela prefeitura. A leitura e compreensão de textos, princípio para os demais aprendizados, terá peso especial no projeto. Integrando esse esforço, a partir de abril serão realizadas as Quartas de Leitura nas escolas da rede municipal de Araraquara, cujas bibliotecas têm ganhado ampliação de acervos.
“Cada uma dessas ações só se concretiza se tivermos um processo formativo com nossos professores”, acrescenta Clélia. “Nosso projeto tem início nessa preparação dos professores para interagir com o universo que a gente está propondo”.
Essa preparação, lembra a secretária, envolve inclusive educadores que tinham pouca familiaridade com as tecnologias digitais. “Estamos apostando que, nessa janela de oportunidade trazida pela pandemia, possamos finalmente fazer com que as escolas públicas tenham Wi-Fi, um laboratório de informática bacana, que nossos professores tenham laptop para ir e vir com eles nas atividades, fazer roda de conversas com seus pares”, aponta. “Estamos desde os anos 1990 falando dessa necessidade, e nunca caminhou. É chegada a hora de as escolas públicas vivenciarem isso”. •