É difícil pensar em uma artista que encarne de forma tão concreta a vida de uma mulher negra brasileira. Elza Gomes da Conceição nasceu em 23 de junho no bairro de Padre Miguel, Rio de Janeiro. De família muito pobre, foi “casada” aos 12 anos de idade com um amigo do pai, que havia tentado abusar da menina.

Com 15 anos, viu seu segundo filho morrer de fome. Elza então foi trabalhar como operária numa fábrica de sabão. Aos 18, seu casamento com o marido abusador foi oficializado, mas ele morreu de tuberculose alguns anos depois, fazendo de Elza uma viúva aos 21 anos.

Para sustentar os quatro filhos, ela passou a trabalhar de faxineira. Até que tomou coragem para se apresentar como cantora no programa radiofônico de Ary Barroso. Ficou célebre o curto e duro diálogo que Ary Barroso manteve com a jovem Elza: “De que planeta você veio, minha filha?” ““Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta fome”. “Planeta Fome”, inclusive, tornaria-se o título do seu 34º álbum de estúdio.

O racismo foi uma barreira no início da carreira artística de Elza Soares. Seu primeiro contrato para gravar pela RCA Victor quase foi por água abaixo quando os executivos da gravadora descobriram que a cantora era negra. Ela acabou gravando um primeiro compacto pelo selo independente Rony com a ajuda de Moreira da Silva, mas não fez muito sucesso.

Sua entrada no mundo do disco se daria via Sylvinha Telles, que apresentou Elza ao grande produtor Aloysio de Oliveira, integrante do Bando da Lua que acompanhava Carmen Miranda nos Estados Unidos na era de ouro do rádio.

Elza estava com carreira artística consolidada quando conheceu Garrincha em 1962, o gênio do futebol que, junto com Pelé, havia conquistado a primeira Copa do Mundo para o Brasil em 1958, na Suécia. Na Copa do Chile, com Pelé contundido, Garrincha faria uma copa brilhante, garantindo ao Brasil o bicampeonato.

No entanto, o romance de Elza e Garrincha, que durou mais de 20 anos, foi outra dessas tragédias com o nome do Brasil estampado. Casado, com 8 filhos, Garrincha manteve com Elza um caso secreto por quatro anos, temendo a repercussão na imprensa que, muito conservadora, atribuía à cantora o papel de destruidora de lares. A família acabou mudando para Roma em 1966, mas Garrincha, afastado do futebol, estava se tornando depressivo e alcoólatra. Ele morreria de cirrose hepática em 20 de janeiro de 1983, no exato mesmo dia em Elza se foi na semana passada.

Para Elza, um duríssimo golpe, do qual ela só foi se reerguer no final da década de 1980, com o álbum “Trajetória”, que tem parceria com Zeca Pagodinho e uma versão da canção ”Meu Guri”, de Chico Buarque.

Elza conta que Chico e a atriz Marieta Severo, em 1970, naquela conquista amarga do tricampeonato na Copa do México, ajudaram muito os dois. “Era tão grande a minha angústia, que eu tinha vontade de invadir a embaixada brasileira em Roma. Mas segurei a onda. Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma”.

O ensaio da volta no final da década de 1980 demorou um tanto para pegar. Foi a partir dos anos 2000, redescoberta por uma geração de músicos — e da audiência das plataformas digitais — reencantados pela MPB, que a carreira de Elza deslanchou.

O álbum lançado em 2002 “Do Cóccix até o Pescoço” foi indicado ao Grammy Latino, prêmio que ela ganharia 14 anos depois com a “A Mulher do Fim do Mundo”, em 2016. O último álbum de estúdio, de 2019, primeiro ano de Bolsonaro, intitutlado “Planeta Fome” teve capa da cartunista Laerte, retomando o famoso diálogo com Ary Barroso.

Além de sua música imensa e generosa com as novas gerações, Elza Soares tornou-se uma voz potente contra o racismo, especialmente o sofrido pela mulher preta, pobre e periférica. “Eu nunca saí da favela”, declarou. Em uma das últimas entrevistas concedida pela artista, declarou: “O Brasil é o país mais racista que existe. É uma doença sem cura, uma situação absurda. É minha raça que estou vendo ser destruída e a gente tem que falar quando basta disso”.

Dois dias antes de morrer, Elza gravou um DVD no Teatro Municipal de São Paulo e, segundo seu empresário Pedro Loureiro, preparava-se para gravar seu 35º álbum de estúdio. Sua morte ganhou as páginas de jornais do Brasil e do mundo, estampando fotos no New York Times, Le Monde e The Guardian. Uma artista com a cara do Brasil de verdade.

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