Um livro deve ser como um machado para o mar congelado dentro de nós.” Esse trecho de carta de Franz Kafka (1883-1924) ao amigo de infância e filólogo Oskar Pollak (1883-1915) expressa a força que pode conter um objeto constituído de papel e tinta de impressão. Kafka escreveu muito, publicou pouco em vida e seus romances mais ambiciosos, como “O Processo” e “O Castelo”, só foram publicados depois de sua morte, porque o também escritor e amigo Max Brod não seguiu as instruções de queimar todos os seus manuscritos. Nunca soube, portanto, que seria considerado um dos maiores escritores do século 20 e nem que teria um adjetivo, kafkiano, cunhado a partir de seu nome para designar situações angustiantes, sem saída.

No entanto, o trecho ali em cima sugere justamente o oposto, a possibilidade de a leitura abrir portas e apontar caminhos. Apesar dos contínuos ataques à cultura, 2021 não foi um ano ruim no que diz respeito aos lançamentos de obras de escritoras e escritores brasileiros. Ainda dá tempo de correr para ler (ou encomendar) um bom livro em 2021. A lista abaixo não tem a menor pretensão de ser uma lista de melhores livros do ano. Procurou-se apenas selecionar livros de diversas áreas de interesse, tanto de ficção como de não-ficção, que estejam em catálogo. Outro critério essencial foi procurar refletir alguma bibliodiversidade, trazendo temas, autores e editoras que, de alguma forma, reflitam algo da variedade de vozes e possibilidades estilísticas da literatura brasileira contemporânea.

“Gente Rica: Cenas da Vida Paulista”, José Agudo (Editora Chão)

José Agudo, pseudônimo do comerciante e fundador da Escola de Comércio Álvares Penteado, escreveu crônica e romance sobre os anos 1920 em São Paulo, período classificado pelos historiadores como a “belle epóque”. Na segunda década do século 20, a até então provinciana capital do Estado de São Paulo crescia vertiginosamente pela industrialização, enfrentava uma profunda revolução demográfica com a chegada de novas levas de imigração e queria, pela força do dinheiro, se livrar rapidamente do passado colonial e escravista. Com olhar de cronista e flâneur, José Agudo faz dos encontros de dois personagens que circulam pelo então centro financeiro da cidade, o triângulo formado pelas ruas Direita, 15 de Novembro e Boa Vista uma crônica mordaz dos costumes da elite da São Paulo de então, sempre procurando uma maneira de enriquecer mais e trabalhar menos. O posfácio meticuloso, da crítica Walnice Nogueira Galvão, discorre sobre esse período da vida literária brasileira e, ainda, revela detalhes biográficos sobre o autor que chegou a ser uma espécie de best seller, à época, e depois caiu no esquecimento.

 

“Cartas ao Morcego”, Nurit Besunsan (IEB Mil Folhas, Instituto Socioambiental)

O livro da bióloga e engenheira ambiental Nurit Besunsan é uma surpresa desde a capa. Em dez cartas, dirigidas ao “morcego”, único mamífero que voa, Nurit transita com facilidade entre a biologia, a antropologia e a história para compor uma espécie de pedido de desculpas em nome do Homo Sapiens (os seres humanos em notação científica) pela bagunça que estamos fazendo no planeta que habitamos e do qual nos achamos donos e senhores. Com muita informação das áreas que domina (além das duas graduações, a escritora tem pós-graduação em história, sociologia e doutorado em educação), mas em tom didático, entremeado por ilustrações de Raísa Cury, Cartas ao Morcego faz a estréia de Nurit Bensusan na divulgação científica em grande estilo.

“Anos de Chumbo e Outros Contos”, Chico Buarque (Companhia das Letras)

Em oito contos, Chico Buarque radiografa a longuíssima quarta-feira de cinzas na qual o país está mergulhado pelo menos desde o final de 2018. Com humor e lirismo, Chico mostra uma desenvoltura surpreendente no conto, forma que tem, no Brasil, um acento particular e uma galeria de gênios, como Machado de Assis (1939-1908), Lima Barreto (1881-1922), Rubem Fonseca (1925-2029), este último amigo pessoal e referência explícita em pelo menos duas das histórias, “Meu Tio” e “Os Primos de Campos” (não à toa, os que tematizam a violência urbana). Ao contrário do que sugere o título, apenas o conto que encerra o volume refere-se ao período da ditadura militar. De resto, a diversidade de personagens e histórias mostra que, quando Chico decidiu se dedicar à literatura 40 anos atrás com “Estorvo”, ele mais acertou do que errou.

 

“Lugares de Origem”, Yussef Campos e Aílton Krenak (Editora Jandaíra)

Depois de três livros de sua autoria “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), “O amanhã não está à venda” (2020) e “A Vida Não é Útil (2020), o ambientalista e filósofo Ailton Krenak uniu-se ao historiador Yussef Campos para apresentar esse volume. São três partes que trazem uma série de reflexões sobre a natureza e modo de estar no planeta Terra, mas do ponto de vista das culturas não-hegemônicas e o que isso significa em termos de violência simbólica. Dividido em três partes, começa com uma entrevista em profundidade realizada com Krenak por Campos em 2013, prossegue com a transcrição da fala do líder indígena depois da tragédia da Samarco em Mariana e encerra com um ensaio de Campos. A discussão que Campos retoma, no diálogo inicial e no ensaio final, foram as sobre as definições de patrimônio cultural durante o processo constituinte de 1988. Leitura urgente, diante do destruição que estamos testemunhando.

“Mas em que mundo tu vive?”, José Falero (Todavia)

Escritor jovem, criado na periferia de Porto Alegre, José Falero supreendeu 2020 com seu primeiro romance, “Os Supridores”, narrativa nervosa sobre dois trabalhadores de um supermercado em Porto Alegre que, como o autor, são negros numa cidade que custa a se reconhecer negra e racista. A coletânea de crônicas “Mas Em que Mundo Tu Vive?”, publicadas originalmente na revista eletrônica Parêntese, revela um Falero ainda indignado, mas também na procura do aprimoramento estético e da exploração de novas possibilidades de linguagens. Junto com outra revelação vinda do Rio Grande do Sul, Jeferson Tenório, autor de um dos melhores romances brasileiros de 2020, “O Avesso da Pele”, Falero vem se firmando como uma voz original da literatura brasileira contemporânea.

“Lula — Biografia Volume 1”,

Fernando Morais (Companhia das Letras)

A aguardada biografia do jornalista e escritor Fernando Morais vale a espera. Com pesquisa minuciosa e ritmo cinematográfico, eletrizante, Morais surpreende pela técnica cada vez mais apurada na dificílima tarefa de contar a vida de uma pessoa pública – ainda por cima quando se trata, apenas, de Luiz Inácio Lula da Silva. O grande achado neste caso é o fato de Morais enfrentar, logo de cara, as histórias que cercam a criminalização da qual Lula é objeto, ou seja, suas duas prisões, em 1980 como líder sindical metalúrgico e em 2018, depois de ter presidente da República por dois mandatos (2003-2010). Livro-reportagem de enorme fôlego, com projeto gráfico de Hélio de Almeida à altura, Fernando Morais ainda adicionou um apêndice em que faz análise de mídia sobre a perseguição promovida pela imprensa corporativa a Lula e ao PT.

“Menos Marx, Mais Mises – O liberalismo e a nova direita no Brasil”, Camila Rocha (Todavia)

A pesquisa que a cientista política Camila Rocha apresentou como tese de doutoramento em 2019 e deu origem a esse livro investigou como surgiu e tornou-se protagonista do embate político a chamada nova direita no Brasil. A autora concentra-se nos grupos ultraliberais, com cujos principais líderes realizou entrevistas e na reconstituição histórica da atuação da direita no espaço público brasileiro. Dos grupos de olavistas escondidos no anonimato da internet, nos blogs e nas caixas de comentários de colunistas reacionários dos grandes portais desde 2006 aos grupos de estudos em departamentos de economia, a neodireita tomou o centro do debate público em menos de dez anos, quando conseguiu fazer uma enorme frente para eleger Jair Bolsonaro. A análise de Rocha interessa a todos que querem, ou precisam, entender quem é o adversário.

“Nossa Correspondente Informa – Notícias da Ditadura Militar Brasileira na BBC de Londres”, Jan Rocha (Alameda Editorial)

Nascida na Inglaterra, a jornalista Jan Rocha veio ao Brasil pela primeira vez em 1969, onde acabou se radicando e vive até hoje. Entre 1973 e 1985, como correspondente da BBC de Londres no Brasil, escrevia notícias e notas breves sobre o que acontecia no Brasil, que iam ao ar em inglês e, posteriormente, eram traduzidas para a versão brasileira da rádio britânica. Ela teve o cuidado de gravar e preservar as fitas-cassete que deram origem a esse livro. Os relatos curtos, desapaixonados, do jornalismo de rádio conseguem compor um painel do que se passava no Brasil dos governos militares, de Emílio Garrastazu Médici às José Sarney, já na reabertura lenta e gradual e ainda longe das eleições diretas para presidente, que só se dariam em 1989.

O último ancestral: Uma distopia brasileira (Harper Collins)

Temos ficção científica afrofuturista? Temos. O escritor Ale Santos exibe um daqueles currículos ultramodernos: é comunicador digital, podcaster e consultor em gamificação. Aos 35, já foi finalista do prêmio Jabut 2020 pelo livro “Rastros de resistência: Histórias de luta e liberdade do povo negro”, coletânea de histórias sobre líderes quilombolas e outros heroínas e heróis do longo processo de resistência à escravidão. Em “O Último Ancestral”, ele entra no terreno do afrofuturismo, gênero que combina elementos da ficção científica, da fantasia e da ancestralidade africana para criar narrativas de protagonismo negro (o filme “Pantera Negra”, de 2018, recriação de um herói da Marvel com elenco exclusivamente negro é dos exemplos mais bem sucedidos dessa tendência no entretenimento), numa narrativa urbana & tensa.

 

A Libertação de Laura, Helena Zelic (Edições Macondo)

O caminho tortuoso do fazer poético levou Helena Zelic, uma mulher paulistana de 26 anos, a procurar as origens de uma canção entreouvida em árabe e a se entender com suas memórias sobre a avó de origem libanesa Salua. Os amores reprimidos de muitas mulheres, os choques com o novo país (e, portanto, uma nova língua e novas músicas) e a observação arguta da poeta constituem a matéria prima do conjunto vigoroso de poemas de “A Libertação de Laura”. Em torno desses caminhos do afeto e das histórias familiares, Helena constrói uma investigação sobre suas origens migrantes e, por extensão, sobre trama de sua própria linguagem poética. Zelic é autora outro livro de poemas, “Durante um Terremoto” (2019) e das plaquetes, espécie de livros em formato menor e parcialmente montados de forma artesanal, “3.255km” e “Caixa Preta”.•

`