Nos idos de 1953, uma jovem negra de 23 anos que trabalhava como faxineira em casas de família, na Zona Sul do Rio de Janeiro, inscreveu-se no concurso do programa de rádio Calouros em Desfile, apresentado por Ary Barroso. Ao subir no palco, Elza foi recebida às gargalhadas pelo apresentador. “De que planeta você veio, minha filha?”, perguntou Ary. E Elza, prontamente, respondeu: “Do mesmo que o senhor, seu Ary. Do planeta fome”.

Ao interpretar “Lama”, dos compositores Paulo Marques e Alyce Chaves, a cantora disse a que veio: “Se quiser beber, eu bebo/Se quiser fumar, eu fumo/ Não interessa a ninguém/Se o meu passado foi lama/ Hoje quem me difama/ Viveu na lama também/ Comendo da minha comida/Bebendo a mesma bebida/ Respirando o mesmo ar/ E hoje por ciúme ou por despeito/ Ah se assim for direito/ Resolveu me humilhar”.

Surpreendendo a audiência e, principalmente, o apresentador do programa, exímio conhecedor da música brasileira, nascia ali para o mundo a figura que é considerada, com toda a justeza, uma das principais artistas brasileiras de todos os tempos: Elza Soares.

O retumbante sucesso dela no programa de calouros de Ary Barroso, não foi, apesar disso, o passaporte inicial para o sucesso da cantora. Negra, pobre, viúva e mãe de quatro filhos, a artista foi vítima do racismo velado de então, que inibia que uma cantora de seu perfil pudesse ser “crooner” de orquestras ou estrelar os palcos nas grandes casas de shows.

Só no início da década de 1960, Elza pode começar a viver de seu ofício como cantora profissional. Ela inclusive foi convidada para aparecer em programas de TV e iniciou uma turnê que percorreu a América Latina, os EUA e a Europa.

Desbravadora e acostumada às dificuldades que historicamente dificultam e impedem a ascensão dos descendentes dos escravizados no Brasil, ela sentiu na pele o preconceito e o falso moralismo em voga no país quando, em 1962, iniciou um romance com o astro do futebol mundial Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha (1933-1983), campeão do mundo pela Seleção Brasileira nas copas de 1958/62.

Ao se envolver com o craque, casado na ocasião, Elza passou a ser perseguida pelos meios de comunicação e pela “tradicional família brasileira”, cuja hipocrisia latente e incubada veio à tona com toda a sua sordidez.

Enfrentando o reacionarismo tanto no meio artístico quanto na vida pessoal, ela se juntou a um grupo de artistas para gravar o jingle de campanha em defesa do presidencialismo em 1963 e em apoio ao presidente João Goulart. Seu engajamento em defesa da legalidade democrática foi o motivo que levou à invasão de sua residência, em maio de 1964. Ela já era alvo de ataques a pedradas, e foi vítima do DOPS, que revirou todo o imóvel.

Ícone da luta contra o preconceito e o racismo, Elza Soares viveu um período de boicote por parte das emissoras de rádio e TVs e da indústria fonográfica, apesar de ter emplacado vários sucessos. Em 1997, aconteceu uma virada em sua carreira, quando lança o disco Trajetória. Em 1999, foi eleita pela BBC como a Maior cantora brasileira do milênio.

Em 2002, lança o disco Do cóccix até o pescoço que lhe rendeu uma indicação ao Grammy. No álbum, aparece a canção “A Carne”, de autoria de Seu Jorge, Ulisses Capelleti e Marcelo Fontes, que praticamente se tornou um dos hinos das lutas dos negros brasileiros e um brado contra a persistente discriminação racial: “A carne mais barata do mercado é a carne negra/ Que vai de graça pro presídio/ E para debaixo do plástico/ E vai de graça para o subemprego/ E pros hospitais psiquiátricos/ A carne mais barata do mercado é a carne negra/ Dizem por aí…”

Na última semana, foi lançado o livro Canto das Rainhas, do escritor e jornalista Leonardo Bruno, que homenageia Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dona Ivone Lara e Elza Soares. Ele mostra essas artistas como mulheres que venceram o machismo e o preconceito e se consolidaram como verdadeiras representantes da cultura brasileira.

Recentemente, Elza demonstrou toda sua insatisfação com o governo do presidente Jair Bolsonaro, quando publicou em suas redes sociais: “Ei, psiu, somos sócios da empresa Brasil, sabia? Pois é! Os altos impostos que pagamos bancam viagens luxuosas, hotéis, avião e até pizza em dólar nas ruas de NY. Uma fortuna para passar vergonha perante o mundo. Queiram ou não, somos patroas e patrões deles. Vamos cobrar”. Elza, sempre ativa, toma posse em 1º de dezembro de uma cadeira na Academia Brasileira de Cultura.

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