A criatividade como alento
A parceria musical de Jards Macalé e João Donato é a grande novidade desse período pós-pandêmico. Ao longo de sua longa carreira, Macalé protagonizou parcerias memoráveis. Seu dueto com o inventor do chamado “Samba de Breque”, Moreira da Silva (1902-2000), o Kid Morengueira, é considerado uma das grandes inovações na Música Popular Brasileira. O show organizado pela dupla no “Projeto Pixinguinha”, produzido na década de 1970 pela Funarte, é considerado antológico até os dias de hoje.
O encontro de Macalé e Donato tem a ousadia de apresentar um disco de canções inéditas. Eles são autores de tantos sucessos e resolveram partir para uma ousadia que se expressa já na foto de apresentação do trabalho, onde os dois aparecem seminus. Uma ideia genial das respectivas esposas.
“Quando a gente foi gravar o disco lá em Araras (SP), no estúdio da gravadora Roncinonte, elas resolveram que a foto de capa do disco seria com nós dois pelados. O Jards achou constrangedor. Tiramos a foto no meio do mato. Não é coisa feia, imoral. Tem uma inocência de bebê, que anda nu e ninguém repara”, explica Donato.
A admiração mútua, já vem de décadas. “Sou admirador do Donato desde criancinha. Quando comecei a perseguir a música lá na década de 1960, ele foi um dos que caíram na minha preferência direto”, lembra Macalé. “Tocando com ele agora, lembrei que na época havia quatro jotas que eu adorava e ainda adoro: meus mestres Johnny Alf, Jobim, João Gilberto e João Donato. Fui muito amigo dos três primeiros, só faltava o Donato na minha coleção de amizades”.
Lançado em 15 de outubro, o álbum da dupla, intitulado “Síntese do Lance”, simboliza a irreverência e o apuro artístico que marca a carreira de ambos.
A música de abertura do trabalho, Coco Taxi, é inspirada no conhecido meio de transporte muito usado em Cuba por turistas e que alegra pela “insegurança”. Foi a única produzida a quatro mãos. E apresenta uma batida próxima ao sons afro-caribenhos.
A junção desses dois gênios da arte brasileira foi uma iniciativa que partiu de uma ideia da gravadora paulista. Mas é um refrigério nesses momentos tenebrosos vividos, quando a destruição da arte e da cultura vem em marcha acelerada pelo desgoverno.
Macalé tem histórico de afrontas à autoridade constituída. Sempre buscando inovar e sem o preconceito de utilizar o termo “artista marginal”, organizou em plena ditadura civil-militar, em 1973, o “Banquete dos Mendigos”. Foi uma espécie de ato-show beneficente cujo beneficiários eram ele próprio e alguns outros músicos colocados à margem pelo mercado fonográfico.
O espetáculo, transformado depois em um álbum duplo, com a participação de dezenas de artistas, transformou-se em uma ação memorável e foi apresentado no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. O evento contou com a presença de representantes da ONU, que o incluiu como uma das ações da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Parceiro de Capinam, Wally Salomão e de Torquato Neto, Macalé é autor de alguns clássicos da MPB, nas vozes de Gal Costa, Clara Nunes (1942-1983) e Maria Bethania. Artista polivalente, ele é também ator, com participações nos filmes “O Amuleto de Ogum” e “Tenda dos Milagres”, de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), além de ter composto a trilha sonora de filmes como “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha (1939-1981).
Já o virtuose João Donato é considerado um dos principais músicos da atualidade. Compositor prolífico, tem parcerias de sucesso com Gilberto Gil — “A Paz”, “Emoriô”, “Bananeira” — Caetano Veloso, com “Rã”, grande sucesso na inconfundível voz de Tim Maia (1942-1998), e “Cadê você (Leila XIV)”, com Chico Buarque. A longevidade da carreira de Donato remonta ao fim da década de 1950, quando enamorou-se pela cantora Dolores Duran, que levou o jovem pianista a se aproximar de figuras exponenciais da Bossa Nova, especialmente João Gilberto. Foi com ele que Donato realizou apresentações sucessivas nos Estados Unidos e na Europa. Agora, ele e Macalé prometem percorrer o país apresentando “Síntese do Lance”. Um presente.