Helena Bonciani Nader é presidente de honra da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, a SBPC, e vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências. Biomédica, pesquisadora e professora titular da Unifesp, ela declara considera grave a situação da ciência brasileira diante do corte de cerca de 90% no orçamento do da Ciência e Tecnologia.

Nesta entrevista, ela conta que houve luta para impedir o contingenciamento, mas que o governo Bolsonaro usou de artimanha para passar por cima da legislação aprovada. Aqui, lamenta a situação e lembra que o tempo não volta, que existem estragos que não podem mais ser recuperados.

 

Focus Brasil — Sobre esse corte de 90% no orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, quais as consequências para a ciência brasileira?

Helena Nader — São gravíssimas. Eu sempre uso uma analogia entre construir um prédio ou uma estrada e parar educação e ciência. Aqui, você não volta. São pessoas que perdemos, são insumos, em termos de material humano, que deixamos de formar. O tempo que passou não dá para recuperar e o que está havendo no Brasil é muito grave porque estamos falando de um corte que tem se acentuado ao longo dos últimos anos. Hoje, virou panaceia para resolver os problemas do não financiamento do ministério, porque é isso o que está acontecendo. Tem os cortes na Lei de Orçamento Anual e, além disso, outros recursos que são tirados. Por exemplo, o Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o FNDCT, criado há mais de 50 anos. A gente lutou, a comunidade acadêmica, empresarial, junto com o parlamento. O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) foi o protagonista da Lei 177, aprovada e que proibia o contingenciamento de recursos. Houve vetos e foram derrubados. Mas uma artimanha articulada pelo Ministério da Economia junto com Secretaria de Governo e a Casa Civil — porque são aqueles que olham os gastos — tirou os R$ 690 milhões destinados ao CNPq para pagar editais que já estão feitos. Mas, além desse, há R$ 2 bilhões que, de acordo com a lei, o governo deveria ter liberado em junho e não soltou até hoje.

Veja, a gente lutou, conseguiu uma legislação que proíbe o contingenciamento, transformamos o fundo em fundo fiscal e financeiro e aí se fez uma outra lei em cima dizendo que eles também podem recolher tais recursos. Então, parece que a gente dá um passinho para frente e de repente são 100 passos para trás. A situação é grave. O êxodo de cérebros é real e estamos perdendo muito das melhores cabeças porque outros países no exterior querem. Brasileiro é inteligente, criativo, bem formado… Quem não quer receber cientistas de mão beijada?

Estamos discutindo na Fapesp a internacionalização e eu tive que ler muito porque não gosto de falar sobre coisas que não são da minha área. E fui ler artigos, tanto da comunidade europeia quanto das academias americanas de Ciência e Medicina. Eles colocam de forma muito clara: hoje o mundo é globalizado e não tem fronteiras. Então, o cara que pegar as melhores cabeças vai ser o vencedor. Não é internacionalizar porque é bonito. É internacionalizar para ganhar, para ser protagonista. Infelizmente, não estamos fazendo isso.

 

— A senhora falou sobre a fuga de cérebros, mas existe uma outra preocupação que vale ser mencionada que é a interrupção de projetos produzidos há anos.

— Isso daí então, nem se fala… Os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, que estão na segunda versão, iriam receber R$ 280 bilhões. O dinheiro seria destinado a 124 INCTs, que são redes espalhadas por todo o território nacional e em todas as áreas do conhecimento. Vão desde violência urbana até novas energias. Cobre tudo. O Brasil, inclusive, deu uma resposta na pandemia por causa dessas redes. E o que aconteceu? Não vão receber o dinheiro. O edital universal saiu, as pessoas concorreram, são mais de 8 mil projetos envolvendo mais de 30 mil doutores. Sem o recurso, não há como pagar. As bolsas de Recursos Humanos em Áreas Estratégicas também não. Mestrado e doutorado para inovação dentro da indústria também não. Isso é negar que a ciência tenha impacto na economia. É isso. O Brasil não entrou na sociedade do conhecimento e já estamos há 20 anos no século 21.

 

— Estamos falando de investimento estatal. No Brasil, nos últimos anos, houve crítica ao tamanho do Estado e aos investimentos públicos. A ciência exige investimento estatal no mundo inteiro, não é isso?

— É isso e mais sério ainda. Muita gente acha que quem sustenta a ciência nos EUA é o setor privado. É só entrar na internet e você pega os gráficos da American Association for the Advancement of Science que é o equivalente deles à Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência [SBPC]. A AAAS tem 173 anos. E a SBPC, 73 anos. E é o Estado e, mais ainda, as inovações… Quem investe é o Estado. As vacinas da Pfizer e a da Moderna tiveram investimento do governo Trump, que não acreditava em ciência.

 

— Aqui há um desmonte.

— Como estudante, lutei contra a ditadura militar. Mas tenho que reconhecer coisas que fizeram que são corretas. E uma delas foi o período integral nas universidades, a criação da Finep e do FNDCT. Os militares tinham um projeto. Não coincidia com tudo o que acredito, mas tinham um projeto de soberania nacional. Hoje, não temos. Eu fico preocupada porque a própria agropecuária, “que é pop”, depende exclusivamente de muita ciência e eles fizeram cortes na Embrapa também. Cortar a galinha dos ovos de ouro…[ri]. E também, como é que você deixa de fora da Lei Orçamentária os radiofármacos? Ter que brigar para produzir para salvar vidas? Será que não sabiam? Os cortes não são feitos olhando em profundidade, na minha humilde visão. É notório para qualquer pessoa que se é para economizar, não se faz matando pessoas. Os radiofármacos são essenciais. Então, não precisava ter um aditivo. Já devia estar incluído, você sabe o quanto custo. É surreal.

A gente teve reunião com pessoas do Ministério da Economia que falaram para nós, formados em universidades públicas com doutorado, altamente qualificadas, e disseram que o ministro Paulo Guedes preza a ciência. Ele quer liberar, a Secretaria de Governo e a Casa Civil é que não deixam. Então, estamos numa situação em que A joga para B, B joga para C e C retorna para A. Eu até brinquei: “Com que a gente vai falar? Com o papa? Quem é que pode nos ouvir?”

 

— O presidente fez, recentemente, uma declaração dizendo que não se vacinará e que é contra o passaporte. Qual é o sentimento que fica para uma cientista ver esse nível de negacionismo na liderança do país?

— É triste… É triste… É desacreditar o que fez a humanidade chegar até aqui. É isso o que eu vejo. É desacreditar a medicina. Ele foi salvo por médicos quando houve a facada, depois os problemas consequentes, todos dependentes da ciência médica. E a liberdade de cada um vai até o ponto em que ela não interfere com a liberdade do outro. Exigir o passaporte é o que o mundo está fazendo.

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