Veterano repórter de Economia, o jornalista que ousou enfrentar a Veja há 13 anos diz que a crise da democracia no Brasil deve muito à atuação da velha mídia, que usou do mesmo método de Bolsonaro, ao propagar o ódio contra as esquerdas. “No Brasil, tudo virou uma grande Fox News. E assim desarrumou-se todo o sistema de informação e análise do país“, observa

 

Um dos mais argutos e experientes repórteres econômicos do país, Luís Nassif esbanja otimismo, mesmo diante da mais grave crise econômica, social e política da história do país, que resultou na corrosão progressiva da democracia e no aprofundamento da desigualdade. Mineiro de Poços de Caldas, ex-integrante do Conselho Editorial da Folha, dono de um dos endereço mais respeitados na internet brasileira — o portal GGN — Nassif é um crítico severo da mídia nacional, a quem responsabiliza diretamente pela destruição do ambiente institucional brasileiro.

“A mídia pautou os partidos políticos nesse período todo, pautou o Judiciário, o Ministério Público. E sempre com o discurso de ódio, fazendo o Jornalismo de Guerra. E aí chegamos ao Bolsonaro”, lamenta o jornalista. Ele lançou recentemente o livro “O Caso Veja”, em que esmiuça como a revista semanal mais influente do Brasil, desde que foi criada por Mino Carta e um talentoso corpo de jornalistas, se tornou o portal do jornalismo de esgoto, promovendo assassinatos de reputações até se tornar irrelevante.

Ele não poupa a grande mídia de esconder da opinião pública o mais recente escândalo envolvendo o ministro da Economia, Paulo Guedes, flagrado junto com o presidente do Banco Central, escondendo dinheiro em paraísos fiscais no Caribe. “A imprensa é sensível ao mercado financeiro”, observa. “E os grandes proprietários dos veículos de comunicação têm também offshores em refúgios fiscais no exterior”, diz, lembrando que esse é o comportamento da elite financeira do país. “Guedes acena com uma perspectiva aí do negócio do século para o mercado que é a privatização da Eletrobrás”, denuncia. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Focus Brasil.

 

Focus Brasil — O Brasil talvez seja um dos únicos países do mundo em que o ministro da Economia se comporta como um apostador contra o país. Você “bateu” muito nisso e sempre esteve atento aos movimentos de Paulo Guedes. Gostaria que você desse um panorama sobre como recebeu o escândalo dos Pandora Papers, envolvem Guedes e Roberto Campos Neto.

— A offshore de Guedes é estupenda. E ele dá um monte de explicações. Não conta nenhuma mentira, mas não conta a verdade. Ele fala “depois que virei ministro, não depositei um tostão lá”. Provavelmente, é verdade. “Depois que virei ministro não saquei um tostão de lá”. Provavelmente, é verdade também. Só que isso não tem a menor relevância. O ponto central é seguinte: enquanto você esteve ministro, aquele dinheiro foi movimentado? E foi movimentado onde?

Guedes confessou implicitamente na primeira nota que o dinheiro era movimentado. Ele falou: “não participava das decisões de investimento”. Ou seja, havia decisões de investimento. Então, o ponto central é este: se ele investiu, onde investiu e como investiu. E não adianta dizer que não participava porque o fundo era dele, da mulher e do filho. Mas como ele é um sujeito honesto [fala ironicamente], transparente e tudo, ele vai abrir as contas para o pessoal ver onde investiu.

Nesse período, especialmente, de 2019 para cá, decisões de Banco Central e economia provocaram mudanças radicais no mercado. Por exemplo, em fevereiro e março do ano passado, o mercado estava despencando porque tinha aqueles fundos de recebíveis de grandes empresas — que vendem a prazo, pegam os recebíveis e passam para um fundo — e, com aquele tamanho da crise, não se sabia quem iria quebrar e quem iria ficar. O mercado despencou naquele período.

 

— E houve intervenção, né?

— Foi só o Banco Central anunciar que entraria no mercado… Aliás, para comprar fundos sem nenhuma transparência. Ninguém cobrou transparência. Compraram carteiras daqui e dali, beneficiaram uns, salvaram outros e o mercado disparou. E se o fundo do Guedes investiu no mercado brasileiro um pouco antes, como fica? E quem foram os fundos e as empresas que foram salvas pelo Banco Central? Eram todas de capital aberto. Em quais delas o fundo do Guedes aplicou? E não teve cobrança da mídia sobre os pontos relevantes para saber até onde ele avançou. Esses são pontos relevantes.

 

— A situação do presidente do BC é diferente?

— Roberto Campos Neto afirmou que o fundo jamais foi movimentado. Aí é uma afirmação de defesa efetivamente. Tem que conferir se é verdade ou não, mas ele entrou no foco central da questão. O Guedes, não. Ele não informou nada e fica por isso mesmo porque os fundos offshore são uma prática de toda essa elite financeira brasileira. Em muitos casos utilizam para fugir do pagamento de impostos, em outros casos para fugir de falência, como é o caso do Eike Batista que tem mais de R$ 1 bilhão lá fora. Tem também o caso dos filhos do Roberto Civita que deixaram passivos trabalhistas enormes para trás. Em parte, é dinheiro oriundo de crimes de antecedentes. Agora, em investigações só querem pegar crimes de antecedentes. Crime de antecedentes é se teve algum golpe, alguma tramoia que originou aquele dinheiro para ir para o paraíso fiscal. Mas não é apenas isso. Se você vai no paraíso fiscal para não pagar um passivo trabalhista, para não pagar um passivo de recuperação judicial, como que fica?

 

— No caso do Luciano Hang, é sonegação de impostos mesmo. Ele tem débitos trabalhistas e previdenciários. E não paga.

— Não, não paga. E ele está me processando porque eu falei que ele deve para o Fisco e ele não deve para o Fisco, são as empresas dele. E tem juiz que aceita o argumento (risos).

 

— Voltando ao Guedes, ele afirma que saiu da sociedade. Mas se houve movimentação financeira, quem ficou na empresa foram a mulher e a filha. Como é possível que isso esteja dissociado dele? 

— Ele pegou uma muralha chinesa e colocou no meio da cama de casal para não ouvir a mulher (risos). Aliás, o David Cameron [ex-primeiro-ministro britânico], o simples fato de ter a conta no exterior já gerou a demissão dele e aqui se ficam discutindo que isso é coisa eleitoral. Gente, o fato é o ministro da Economia, o “cara” que está a toda hora reclamando de falta de recursos orçamentários, que está cortando dinheiro de tudo. Aliás, é interessante ver esse último corte que ele fez no orçamento de Ciência e Tecnologia, seguramente foi para compra de apoio no Congresso. Seguramente. Poucos dias depois de estourar o escândalo ele tira aquele recurso, aparentemente nem o Bolsonaro estava sabendo, e distribui aos ministérios do Desenvolvimento e da Agricultura, que é onde estão ocorrendo aquelas tramoias com tratores e tudo mais. Então, certamente foi para compra de apoio.

Agora, é indecente que venha o [ministro do STF Luiz Roberto] Barroso e faça um baita carnaval porque o Bolsonaro ataca os votos em urna eletrônica e isso pode influir nas eleições. Mas ele não fala nada sobre os comícios do Bolsonaro nem em relação ao mais profundo fator de distorção política desde a redemocratização que é esse Orçamento Secreto. Os parâmetros de julgamento estão muito difusos, se vai muito na retórica ou contra retórica do Bolsonaro e deixa de lado coisas muito mais graves, inclusive, do próprio Bolsonaro.

 

— E por que a grande imprensa quase não fala da offshore do Guedes ou dos Pandora Papers?

— Porque grande parte dos proprietários de veículos de comunicação têm conta “lá fora”. Quando saiu a história daquelas contas do HSBC, esse mesmo grupo de jornalistas investigativos, que tinha o Fernando Rodrigues aqui, começa a soltar as matérias e de repente dá de cara com os Frias [donos da Folha de S. Paulo] e com os Marinho [donos das Organizações Globo]. Imediatamente, ele recuou. Inventou uma desculpa qualquer. Teve que o Chico Otávio, do Globo, fazer algumas matérias para salvar a cara da apuração sem levantar muito a lebre dos Marinho e dos outros. Então, esse é um dos lados.

O segundo lado é que a imprensa desde os anos 2000 ficou sensível ao mercado financeiro. Quando a imprensa quebra no começo dos anos 2000 e vem a revolução da internet, ela percebe que teria que ter a parceria com grandes fundos de investimento. A partir daí, o capital financeiro passa a ter um poder massacrante sobre a imprensa. E agora muito mais na medida em que bancos compram editoras, compram tudo. Então, esse é o segundo fato que faz a imprensa se calar porque o Guedes acena com uma perspectiva aí do negócio do século para o mercado que é a privatização da Eletrobrás.

Algo que vai ter consequências terríveis sobre a economia, mas que vai ser negócio para todo mundo. Para o banco que está fazendo a modelagem da privatização, para os fundos que já têm ações da empresa. Pega o Jorge Paulo Lehmann, que tem participação na empresa. Ele não precisa disponibilizar um tostão, basta privatizar a empresa que as ações dele vão quintuplicar.

Veja bem, o mercado não acredita mais na capacidade de gestão do Guedes. Foi ele quem produziu essa crise que nós temos hoje de inflação e crescimento. O mercado não acredita mais na capacidade do Guedes de formular reformas. As propostas dele são de uma ignorância abissal e ainda tem a incapacidade de negociar com o Congresso. Então, o único trunfo que ele tem é a perspectiva de poder privatizar a Eletrobrás. É isso que dá sobrevida a ele.

 

— O Brasil está na contramão. O escândalo do Pandora Papers está nos principais jornais do planeta, há uma discussão grande sobre colocar fim aos paraísos fiscais, sobretaxar os ricos e esse é um tema que aqui no Brasil ninguém toca. E a gente fica numa situação embaraçosa porque não há uma perspectiva de que se abra um debate em torno disso.

— Não há. Ocorreram algumas mudanças na mídia com a entrada de CNN e outros que inovaram em vários setores, mas quando entra a parte econômica, o discurso é único. O mundo inteiro, o FMI, o Financial Times, todo o mundo capitalista discutindo os dogmas da teoria econômica nesse período, os erros que foram cometidos. Veja o Nobel de Economia que discute a questão do salário-mínimo. E aqui você não tem nem acesso às discussões. Televisão ou jornal, quando vai falar de reforma administrativa e ajuste fiscal, são três ou quatro economistas que repetem os mesmos argumentos permanentemente. Se você for ver do ponto vista jornalístico, se todo mundo fala A, então, interessa procurar alguém que fale B para fazer o contraponto. Veja, não estou necessariamente apoiando o B, mas faz parte da dinâmica do jornalismo buscar um fato novo. Quando você entra na economia aqui é inacreditável. É inacreditável!

Pega a lei do Teto de Gastos que é um absurdo, uma aberração. Na mídia só aparece: “Se romper a Lei do Teto, o Brasil acaba”. Estamos desde 2015, desde Joaquim Levy, depois Temer e Bolsonaro com essa política fiscal maluca e de cortar tudo. Corta gastos públicos, investimento público, acaba com a legislação trabalhista, ferra com a Previdência e diz que se fizer tudo isso a economia volta à tona porque vai ter um ajuste fiscal, o investidor vai acreditar e voltar a investir.

Só que daí as empresas começam a se mandar e não é por falta de ajuste fiscal, é porque acabou o mercado. Eles liquidaram com os pontos reais que mexem com a economia. Qual é o capital que investe nesse quadro? É só o capital especulativo. O capital que conta, aquele que cria empregos, gera empresas, aumenta a capacidade instalada, esse se mandou e está se mandando.

Toda essa discussão de política econômica visa, especificamente, os interesses do capital financeiro que não tem o menor interesse em termos de desenvolvimento. Sobre o investimento real, em fábricas e tudo, você não tem um jornal, uma televisão que faça uma abordagem racional.

É interessante esse negócio do prêmio Nobel. Traz de volta um conceito que começa a pegar desde o final dos anos 80 e que eu usei muito para questionar o Plano Real que é a chamada observação empírica. O que é isso? Tenho aqui uma teoria que diz que se eu fizer isso a economia vai fazer aquilo, a economia são os agentes econômicos. O que deve fazer o jornalista econômico? Não é preciso conhecer a alta teoria. O jornalista deve ir até o agente econômico – que é o empresário, o trabalhador – e conferir se ele está fazendo isso. Se não está fazendo, é porque a teoria está errada. Pega as metas inflacionárias do Armínio Fraga — se aumentar os juros, cai a demanda por crédito e financiamento e a inflação cai. Aí você faz as contas, dois pontos da taxa Selic, um baita impacto que você tem na dívida pública, o que significa para o crédito ao consumidor em que você paga 3% ao mês? Nem arranha. Ora, se não arranha o financiamento tem alguma coisa errada. Aí vem os economistas e dizem que têm comprovação estatística de que seis meses após o aumento de juros a inflação vai cair, então você busca outra razão, a inflação cai porque aumenta os juros, começa a entrar capital especulativo e começa a apreciar o câmbio. Então, você derruba a inflação através da apreciação do câmbio. Mal comparando, isso significa a mesma coisa que utilizar sanguessuga para derrubar a febre do paciente.  

Um dos artigos que fala sobre o prêmio Nobel diz que a economia hoje está pior do que a medicina no final do século 19. A economia ainda acredita em sanguessuga. Quem dá essa dimensão política para economista de mercado, é a mídia, o jornalismo econômico.

 

— Essa agenda dos cadernos de economia ainda é ligada às ideias do Consenso de Washington. Agora, os EUA estão querendo construir um Estado forte. Como vai ficar a situação das grandes empresas de comunicação no momento em que ocorre essa mudança geopolítica?

— O grande problema aí é que o chamado tripé virtuoso do Fernando Henrique que foi mantido depois, criou uma nação de rentistas. Por que quiseram derrubar a Dilma? O que está por trás disso é você abrir as fronteiras para a financeirização de todos os setores da economia. Hoje, esse capital financeiro quer entrar na saúde, na educação e não apenas. Esse capital financeiro está comprando terras. Se você pega aqueles negócios que eram de pequenos empresários, barzinhos em postos de combustível, padarias, estão sob o controle do capital financeiro.

Pega a Escola Politécnica [USP-SP], berço da engenharia, nove em cada 10 propostas de estágio são do capital financeiro. Pega a publicidade na Globonews, CNN e todos os outros, de cada 10 comerciais, nove são planos de saúde ou capital financeiro. E capital financeiro é intermediário. O setor da economia que produz riqueza foi para o vinagre, especialmente com a Lava Jato.

O último fôlego dele foi o PAC que acabou amaldiçoado e a própria indústria comprou essa maluquice do combate a investimentos públicos. A financeirização entrou na cabeça das pessoas. A elite intelectual brasileira está indo inteira para o mercado financeiro e o sonho dela é trabalhar por 15 anos, ficar rico, se aposentar e não trabalhar mais. Os pequenos negócios de startups, fica todo mundo tentando e a startup que dá certo o capital financeiro compra, o criador ganha dinheiro e vai viver de renda. A gente voltou ao esquema da monarquia e da República Velha, é contra qualquer forma de trabalho. Aqui, o trabalho deprecia.

Quando você pega a parte improdutiva do país — Justiça, Ministério Público e tudo — a rapaziada que entra faz com o mesmo espírito yuppie. Não batalha por aqueles setores que geram emprego e tributação. Eu me lembro uma entrevista de um desses donos de curso de inglês, ele disse que vendeu o curso por R$ 1 bilhão. Falou que levou a vida inteira para acumular esse valor, mas que em um ou dois anos no mercado dobrou o patrimônio. Nós criamos uma nação de rentistas. E hoje quando a mídia fala para a juventude de classe média, ela incute esses valores.

 

— Uma distorção de valores.

— Falando especificamente sobre a publicidade dos bancos, elas dizem: “Vamos ajudar no seu sucesso”. Então você acabou com a noção de país, de valores cívicos, de valores públicos. É um horror. Com esse desmonte que teve, cada qual trabalha o seu interesse pessoal e o interesse coletivo não tem quem trabalhe.

Você pega hoje o Financial Times, o Wall Street Journal – apesar de ser daquele Murdoch –, essas bíblias do capitalismo estão discutindo geral. Aqui, não. Veja o Supremo Tribunal Federal, endossando esse negócio da legislação trabalhista. Acaba, com a formalização e as empresas acham positivo porque não vão pagar INSS, FGTS e tudo. Mas o que acontece com o coletivo, o trabalhador sem essas redes de proteção e sem a carteira de trabalho – a carteira verde-amarela não é nada? Ele não tem estabilidade e previsibilidade na sua renda. Sem isso, não consome, não consegue crédito e o mercado desaba. Prejudica todo mundo. Mas você não tem aquelas instituições, mídia e tudo que consigam entender o conjunto para defendê-lo.

 

— Business…

— É por isso que vão privatizar a Eletrobrás. O custo da energia vai subir, mas não existe um grupo para defender que o custo da energia seja barato. É a mesma coisa com relação a permissão que o Supremo dá para a venda de subsidiárias de Petrobrás sem analisar a lógica das petroleiras e a importância de se ter uma estrutura de apoio quando a prospecção estiver ruim. Por isso que se permite aumento de combustíveis, porque a coisa mais sagrada é distribuição de dividendos, não é a função estratégica da empresa. É por isso que colocam na Eletrobrás um executivo que corta todos os investimentos, que são essenciais para o país, e assim o balanço melhora, aumenta a distribuição de dividendos.

 

— E assim a crise energética se apresenta.

— E a imprensa anuncia o cara como um grande executivo que melhorou a Eletrobrás. É uma fase de insanidade que a parte menos insana do país é o Bolsonaro com as suas loucuras. Usa-se o álibi Bolsonaro, mas se ele sair fica toda essa herança que é o que mata. A crise energética é desse modelo. O desmonte do SUS começou com o Henrique Mandetta. Quando ele acabou com o Mais Médicos, foi celebrado. Disseram que haveria chance para os médicos brasileiros… E um mês depois, 70% desses médicos tinham desistido e não sai notícia sobre isso. O [Fernando] Haddad falou outro dia que os dois maiores problemas do país são cartel financeiro e cartel de mídia. E ele está correto.

 

— E vai dar para sair dessa encalacrada?

— Vai dar um trabalho danado, mas dá. O Brasil é maior do que isso. Se você olha para 1930, o Brasil também era um país totalmente sem rumo. Eu até fiz um artigo a partir de um dos meus gurus que é o Manoel Bonfim, um historiador do começo do século que se decepcionou com o Brasil um pouco antes da Aliança Libertadora. Daí veio o maior estadista brasileiro, um caboco chamado “senhor crise” e quebrou o Brasil. Daí o Getúlio [Vargas] teve que impedir o livre fluxo de capitais. Aí o dinheiro teve que ser investido no Brasil e nós começamos a virar uma Nação. O próprio Lula, em 2008, quando veio a crise, saiu debaixo do tacão do mercado. Até então ele estava no tacão do mercado com câmbio apreciado e juros altos. Quando vem a crise, tem aquele insight de estadista e o Brasil sai da crise na frente de todo mundo porque fugiu das algemas do mercado, apesar do Henrique Meirelles.

 

— Qual o impacto da agenda do Guedes na sucessão?

— Vamos pegar o melhor paralelo ao Bolsonaro, que foi Hitler. O Hitler pegou uma Alemanha quebrada e tinha um ministro da Economia genial, que resolvia problemas. A economia estava quebrada e ele fazia barganha, trocava equipamentos, por alimentos, por insumos e a Alemanha deu um salto tão grande que o Hitler virou o senhor absoluto da guerra. Se tivesse um ministro da Economia aqui que fosse competente e a situação econômica estivesse melhor, Bolsonaro estaria com outro nível de aprovação, inclusive da mídia e tudo. Se você põe dois temas para o Guedes administrar simultaneamente, ele se perde. É um marqueteiro. Já vem desde o governo Temer esse corte indiscriminado de despesa, então eles cortaram todo o orçamento para estoque regulador. Aí entra o Guedes e, coincidentemente, você tem uma explosão das commodities internacionais… Guedes então permitiu que o câmbio fosse lá para cima, duplicando o saldo que ele tinha de dólares lá fora. Nem ele, nem o presidente do Banco Central, utilizaram as reservas para administrar o câmbio. Os preços internacionais também subiram. Quando você junta os dois esses aumentos se refletem internamente e explode a inflação. Quando explode a inflação, desestrutura tudo.   

Então, aquela ideia deles inicial de que se tiver câmbio desvalorizado e taxa de juros baixo a economia deslancha, foi utilizada sem analisar a realidade. A realidade é que grande parte das empresas brasileiras de máquinas e equipamentos depende de importação, nesses anos todos de desindustrialização o Brasil virou um país maquiador. E segundo, quando a inflação explode você não pode mais segurar a taxa de juros porque você tem o dogma das metas inflacionárias e ele é obrigado a aumentar os juros novamente. Desde o final do ano passado isso estava nítido, a estagflação. A estagflação ainda foi um pouquinho administrada por mérito do Congresso quando foi criado o auxílio emergencial. O que ocorre lá atrás: os custos vão lá pra cima com câmbio e preços internacionais, as empresas conseguiam repassar num certo momento por conta do auxílio emergencial, mas quando esse auxílio acaba, as empresas não conseguem mais repassar. Sem esse repasse, num primeiro momento você tem o fenômeno da maquiagem: entregar produtos de menor qualidade. Depois, não tem mais saída. Hoje, as empresas estão com aumento de custo e sem conseguir repassar porque a renda foi para o vinagre. Isso cria o fenômeno da estagflação que vai se repetir o ano que vem também.

 

— Você é um crítico severo da imprensa há muitos anos. Mesmo quando estava na Folha, você nadava contra a corrente. Agora você lançou “O Caso Veja”. Isso começou em 2008 e lá se vão 13 anos. Você tinha visão otimista, dizia que o país acordaria para o tamanho da burrada em três ou quatro anos. Só que não…

— Eu sempre me perdi pelo excesso de otimismo, viu? No livro “O Jornalismo dos Anos 1990”, eu já criticava essa coisa horrorosa que é unanimidade e o linchamento que dá margem a toda sorte de manobras. Mas eu terminava o livro falando que com a vinda da internet haveria mais competição e os jornais seriam obrigados a se aprimorar, o que seria a lógica. Você pega os grandes jornais mundiais, para competir com a internet eles aumentam a dose de parte analítica, da qualidade do seu produto. Mas aqui não. Aqui a imprensa conseguiu acabar com o meu otimismo.

A partir de 2005, houve uma mudança radical. A imprensa quebra em 1999… Os anos 90 foram os anos de ouro da imprensa. Nunca se ganhou tanto dinheiro, nunca teve tanto prestígio como após a campanha do impeachment, nunca se teve tanto poder. A tiragem chegou a níveis inéditos na história do país… E fizeram um monte de investimento achando que o crescimento continuaria. Por causa daquela baita crise, os jornais ficaram endividados em dólar e quebraram. Ao mesmo tempo, a internet ganhou dimensão e o poder de negócio da mídia passou a ser questionado. Aí em 2005 vem aquela maluquice, o Roberto Civita vem dos EUA e traz o modelo Murdoch: Vamos apostar na ultradireita. Murdoch fez isso e conseguiu a maior audiência de TV a cabo lá que era a Fox News. Ele ganhou poder político, se tornou o cara mais influente do Partido Republicano. Com o poder político que conseguiram, mais a audiência, Civita pensou, vamos ser o poder político e usar a Presidência para segurar a invasão, e não é das FARCs e do bolivarianismo, mas das empresas de telefonia no começo e depois das redes sociais. E aí toda a mídia fez essa aposta maluca.

Acontece que nos EUA você tinha “anticorpos” para a Fox News que eram CNN, Washington Post, New York Times. Mas aqui, não. No Brasil tudo virou uma grande Fox News e assim começou-se a desarrumar todo o sistema de informação e análise do país.

 

— Desarranjou tudo, né?

— O Supremo passa a ter ministros que querem reescrever a Constituição nos seus votos. O Ministério Público passa a ser pautado diariamente pela imprensa. A política passa a ser exorcizada. E com os mesmos recursos que continuam usando agora. Você pega episódios pontuais de corrupção da Petrobrás e diz que aquilo é generalizado. Todos esses recursos para criar unanimidade foram utilizados e, com todo mérito da CPI da Covid, continuaram sendo utilizados.

Desarrumaram todas as instituições brasileiras e tudo em cima de discurso de ódio, de mirar um inimigo e ter que destruir esse inimigo. Acaba com o debate político embaixo das instituições. O objetivo é liquidar o inimigo. E o que está acontecendo hoje é a volta da curva. Apesar de Bolsonaro e tudo, hoje o clima é menos pesado do que foi em 2013, 2014 e 2015. Eu fui ameaçado na rua várias vezes. Se você saísse com uma camiseta vermelha, você era ameaçado. O que eles fizeram de destruir pessoas com aquele discurso de ódio, destruir professores que defendiam redução de danos na política de drogas.

Atuavam como grandes perfis de redes sociais, criavam mentiras aqui e jogam nas redes com discurso de ódio. Com isso potencializam as denúncias e ganham seguidores contra os inimigos. Isso ocorre ao mesmo tempo em que o Lula leva o PT para a social-democracia, o PSDB fica sem discurso e vai a reboque da mídia. Então, a mídia pautou os partidos políticos nesse período todo, pautou o Judiciário, o Ministério Público e com discurso de ódio. Jornalismo de guerra. E aí chegamos ao Bolsonaro. Era a lógica.

 

— Quer dizer, a mídia brasileira ajudou a prejudicar a democracia?

— Totalmente. É a principal responsável. Você tinha na época lá, quando começou esse discurso de ódio que começa na Veja com um rapaz que foi meu contemporâneo lá atrás, o Tales Alvarenga. Ali foi o primeiro sinal. E aí você descobre um outro componente forte que é o preconceito social que surge inicialmente através do programa do Jô Soares e o Arnaldo Jabor. Eles começam com o preconceito social, mas quando deflagra o processo eles param e entram pessoas com muito mais condição de baixaria como os influencers e tudo. E a mídia achando que controlava a manada, quando percebe, vem a Lava Jato. Essa foi o primeiro movimento autônomo de rede social. Tinha Twitter, WhatsApp. Os lavajatistas se organizaram e começaram a ganhar consistência. Aí vem o bolsonarismo com assessoria profissional do Steve Bannon e toma conta. E todo o instrumental que a mídia usava contra os adversários passa a ser utilizado pelos bolsonaristas contra a mídia. Vivemos tempos bicudos.