O centenário de Paulo Freire
A partir de 2018, com a crescente polarização política nacional, Paulo Freire voltou a ser perseguido e criticado por setores conservadores. As celebrações pelos 100 anos, no entanto, acabaram por abafar e calar tais vozes, tamanha a sua magnitude
O ano de 2021 no Brasil foi marcado por um incremento de mortes pela pandemia, avanço do autoritarismo, crise energética e socioambiental e estagnação da economia. Foi um ano de inúmeras crises e ampliação das desigualdades. Mas foi marcado também pelas inúmeras atividades e homenagens em torno do centenário de Paulo Freire.
O educador pernambucano, nascido em Recife em 1921, ficou exilado por 16 nos seus 75 anos de vida. Saiu do país em 1964, perseguido pelos militares, quando organizava um Programa Nacional de Alfabetização no governo de Jango Goulart. Voltou em 1980, consagrado internacionalmente como um dos mais importantes intelectuais brasileiros, com inúmeros títulos e homenagens e obras traduzidas em mais de 20 línguas. Faleceu em 1997 na cidade de São Paulo.
A partir de 2018, com a crescente polarização política nacional, Paulo Freire voltou a ser perseguido e criticado por setores conservadores. Na campanha eleitoral daquele ano e, posteriormente, com a vitória de Jair Bolsonaro, não faltaram palavras de desprezo e ataques ao seu pensamento, parte desinformada sobre o seu papel histórico, parte combatendo politicamente um campo progressista do qual Freire faria parte.
As celebrações pelo seu centenário, no entanto, acabaram por abafar e mesmo por calar tais vozes, tamanha tem sido a sua magnitude: foram inúmeras lives, seminários, conferências, cursos, publicações acadêmicas e de divulgação, complementadas por outras atividades como um enorme mural com a sua figura na lateral de um edifício perto do Memorial da América Latina em São Paulo, uma exposição no Congresso Nacional e a organização de uma ocupação no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, tradicional espaço paulistano.
Paulo Freire, sua vida, obra e pensamento, foram estudados, divulgados, publicados em jornais e revistas no Brasil e em inúmeros países. Um balanço dos eventos deste ano e seu impacto na sociedade brasileira ainda há que ser feito. Será um bom desafio para as pesquisas acadêmicas.
Em uma primeira tentativa de organização por grupos, podemos identificar ao menos quatro conjuntos de atividades: aquelas voltadas à sua história, aquelas organizadas em torno do seu pensamento e prática, aquelas sobre pensar o presente a partir do seu legado, e, finalmente, aquelas sobre pensar o futuro.
Deixando de lado os dois primeiros grupos, arrisco um primeiro esboço sobre os outros dois. O legado do educador tem nos ajudado a disputar o campo da educação em todas as dimensões da vida das pessoas e não só na escolar. De fato, em uma conjuntura onde prevalece o racismo estrutural, a discriminação e a apartação social, Paulo Freire nos alerta sobre o necessário trabalho educativo cidadão em todos os espaços: família, comunidade, igreja, meios de comunicação, partido político, movimento social.
Quando nos voltamos para os sistemas escolares, sua obra nos ajuda no enfrentamento das políticas atuais de crescente desconstrução do direito à educação pelas atuais políticas neoliberais e conservadoras. Seu posicionamento firme na defesa de uma escola popular de qualidade que fosse emancipadora nos seus objetivos, nas suas práticas e nos seus valores, bate de frente com as políticas atuais do teto de gastos, com a ideia de uma universidade para poucos, a discriminação dos alunos com deficiência, e com o tripé: currículo centralizado, avaliações de massa e a consequente promoção da meritocracia. Paulo Freire seria ainda contrário ao controle e a promoção da denúncia contra os professores como propõe a escola sem partido, à censura dos temas de gênero e raciais nos materiais didáticos, à implementação de escolas civil-militares, todos temas ligados aos valores conservadores.
Em relação ao futuro, o pensamento do educador nos ajuda a enfrentar esta conjuntura distópica e negacionista que vivemos. Ao defender o sonho com um direito do ser humano, nos coloca frente a projetos de sociedades mais justas, igualitárias e não discriminatórias; projetos em que as diversas culturas sejam respeitadas desde que não sejam violadoras dos direitos humanos; à superação do antropocentrismo que desrespeita a natureza e nos condena a uma vida insustentável.
Paulo Freire pensa a humanização do mundo e não a sua desumanização. Para atingir nossos sonhos, nos estimula a encontrar os inéditos-viáveis em nossas sociedades, aqueles que nos levam em direção aos nossos sonhos e que nos fazem esperançar, ao contrário de apenas ter esperança, que para o educador é uma atitude passiva. E quais seriam estes inéditos-viáveis hoje que nos fazem esperançar? São as lutas dos povos originários em defesa de uma Amazônia que arde em chamas e de novos paradigmas civilizatórios, são as lutas das mulheres negras que choram a morte dos seus filhos, são as lutas das diversas juventudes pelo reconhecimento de novas formas de relacionamento, as expressões artísticas-culturais que resistem ao apagão da cultura, é a produção da ciência que nos ajuda a superar as vicissitudes da vida; é a solidariedade frente à pandemia que nos ajuda a crer na humanidade. São apenas algumas luzes entre tantas que nos ajudam no nosso caminhar, por isso não há motivos para não esperançar e construir sonhos por um mundo melhor.