Crise é responsabilidade direta de Bolsonaro
Não adianta culpar São Pedro. Nem espalhar fake news de que país vive a maior falta de chuvas em 91 anos. O governo errou ao permitir aumento das tarifas de energia. Fez isso para aumentar a arrecadação de tributos em R$ 33 bilhões
Afirmar que a falta de chuvas no Brasil é a maior em 91 anos é mais uma das fake news do governo, desta vez exalada pelo Ministério das Minas e Energia, com o intuito de tentar se explicar diante do cada vez mais provável apagão elétrico que se aproxima. A crise de energia já se materializou por culpa e obra do presidente Jair Bolsonaro e sua equipe de incompetentes.
O que levou o Brasil a presente crise foi uma opção consciente do governo de continuar usando as águas dos reservatórios e até aumentar sey uso, ao mesmo tempo em que reduziu a geração de energia a partir das usinas termelétricas, desconsiderando que em 2021 as precipitações pluviométricas pudessem diminuir.
Essa análise é unânime entre o ex-presidente da Agência Nacional das Águas (ANA) Vicente Andreu, o professor e pesquisador do Departamento de Ciências Atmosféricas da USP Tercio Ambrizzi e o Coletivo Nacional dos Eletricitários, que reúne trabalhadores do setor elétrico.
Andreu vai mais longe. Aponta que o governo fez isso de propósito para poder aumentar as tarifas e remunerar as empresas do setor elétrico com recursos adicionais que, nas estimativas dele, atingirão este ano R$ 33 bilhões, a serem pagos pela população. O valor supera o auxílio emergencial em 2021, calculado em R$ 26 bilhões pelo próprio governo.
“O apagão não é inevitável. Mas quando o governo falou da crise, em maio, ele tinha todos os meios para evitar o apagão. Da maneira como está gerenciando a crise, está comprometendo muito a segurança elétrica e aumentando o risco de apagão. O governo tem errado muito numa crise que, primeiro, é fabricada pelo Palácio do Planalto”, afirma Andreu. “Diante dos erros e da persistência da escassez de chuvas, o risco de apagão é cada vez maior”.
Andreu fala a partir de uma perspectiva difícil de desqualificar. Eletricitário, ele foi presidente da ANA entre 2010 e 2018 quando, de fato, a quantidade de chuvas foi menor do que a que cai sobre o Brasil desde o ano passado (veja gráfico da USP, abaixo). Só isso desmente a versão do governo de que a crise seria a maior em quase um século.
Naquele biênio 2014-15, o Brasil conseguiu escapar do apagão, apesar da seca. O principal instrumento foi o uso das usinas termelétricas em toda a sua capacidade, de forma a preservar os reservatórios hídricos e guardar a água para um cenário ainda pior.
Já no período atual, o governo federal foi na contramão. Em novembro de 2020, quando a falta de chuvas já dava sinais consistentes, Bolsonaro preferiu reduzir a geração termelétrica de 16 mil MW para 9 mil MW e ampliar o uso da energia hidráulica de 41 mil MW para 55 mil.
Numa crise anunciada, argumenta o especialista, qualquer um sabe que essa seria a opção errada. “A culpa dessa crise não é a falta de chuva. É a operação errada do sistema, que esvaziou os reservatórios para aumentar a tarifa de energia”, denuncia.
É fato que as termelétricas não representam o modelo ideal de fonte alternativa de energia, em função de suas emissões de gases de efeito estufa. Mas é o instrumento que o Brasil dispõe hoje e deveria ter sido usado, defende o meteorologista e físico Tercio Ambrizzi, da USP. “Eles demoraram para ligar as térmicas e agora os reservatórios estão baixos. Se acaba a água, você terá apenas energia das termelétricas, que provavelmente não vai ser suficiente”, prevê.
Não se coloca em dúvida que os padrões climatológicos estão mudando. O já popular conceito do aquecimento global é um fato científico e tem reduzido as chuvas no Brasil. Mas afirmar que São Pedro tem toda a culpa por criar a maior seca em quase um século chega a ser ridículo. “Nós não temos dados dos últimos 91 anos. Talvez exista alguma estação meteorológica com essa idade do país, mas não há uma rede que pudesse ter feito essa medição”, conta Ambrizzi.
“Desde 2010, temos tido chuvas sistematicamente abaixo da média aqui na nossa região, sendo o mais intenso o de 2014/2015, que gerou aquele racionamento”, completa. “O problema é de gerenciamento, não é São Pedro”, completa o professor.
Dessa série estatística pode-se também concluir que não era segredo para ninguém do setor que os reservatórios estariam baixos. Aliás, os reservatórios do sistema elétrico nacional são plurianuais, preparados para suportar secas de dois, quatro ou cinco anos. Se estão secos agora, o problema está no passado e houve tempo para medidas preventivas.
“Foi uma crise fabricada, não é retórica. Como tem sido ao longo dos anos após 2015, os reservatórios são esvaziados irresponsavelmente na época de chuvas. Mas especialmente no período de 2020 e 2021. Esta é a razão da crise que estamos vivendo”, completa Andreu.
Energia elétrica não é algo que possa ser produzido e gerado do dia para a noite. Embora em crises como a atual o recurso às termelétricas seja a saída mais sensata, no médio e longo prazo é preciso investimentos. Quem alerta é Ikaro Chaves Barreto de Sousa, diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (Aesel) e integrante do coletivo dos eletricitários.
Ele lembra que a Eletrobrás, desde que foi inserida no programa de privatizações no governo Temer, praticamente parou de investir na expansão. “Ao contrário, passou a alienar participações em diversos empreendimentos feitos em parceria com a iniciativa privada”, lamenta. “A Eletrobrás passou a ter como principal objetivo não mais a contribuição com a garantia de suprimento, a universalização do serviço e a modicidade tarifária, mas apenas a maximização dos dividendos pagos aos acionistas e a preparação para a privatização”. O gráfico acima mostra isso.
A soma desses fatores gerou uma realidade árida. Segundo a Aesel, o nível dos reservatórios das regiões Sudeste e Centro Oeste, responsáveis por mais de 70% da capacidade de armazenamento do país, estava abaixo dos 18% e a previsão do Operador Nacional do Sistema (ONS) é que cheguemos ao final de novembro de 2021 “com uma sobra de potência de míseros 958 MW”. São os níveis que antecederam o apagão de 2001.
Além de ficar no escuro, a população é quem paga as altas tarifas de energia. Mas o mesmo governo que de maneira exibicionista cancelou o horário de verão, ferramenta de racionamento de energia, não deixará os poderosos na mão.
Os grandes consumidores, que já têm contratos de energia bilaterais, firmados no Ambiente de Contratação Livre (ACL), em que podem adquirir energia fora do sistema, não pagam as bandeiras tarifárias e ainda ganharam do governo o Programa de Resposta da Demanda, na qual receberão prêmios para deslocarem suas atividades para fora do horário de ponta.