O espírito libertário de ‘Imagine’ continua poderoso
- Cinco décadas separam os tempos atuais — fraturados pela ameaça persistente e desagregadora da extrema direita e suas fake news — da ressaca moral e existencial do Ocidente de então. Os EUA estavam atolados no desastre da Guerra do Vietnã e ainda se recuperavam dos horripilantes assassinatos da seita de Charles Manson, em 1969. Caótico e perdido como agora, o ano de 1971, no entanto, conseguiu expressar na música as agruras de uma geração sem rumo, como atesta a essencial série documental 1971: O ano em que a música mudou o mundo, da Apple. Em meio a clássicos como What’s going on, de Marvin Gaye, eTapestry, de Carole King, entre outros surtos criativos, surgiu, naquele setembro, Imagine, de John Lennon. O álbum de dez faixas completou 50 anos na semana que passou, ancorado pelo homônimo hino pacifista e atemporal, e cuja provocadora mensagem política de esperança soa mais vital do que nunca.
Para marcar a data, o disco ganha um relançamento duplo em vinil, na cor branca, com as remixes de 2018 do engenheiro Paul Hicks, além de outtakes e versões alternativas das canções do álbum. O filme Imagine, de 1972, também ganhou exibição pela rede Hard Rock Cafe nos EUA e na Europa, na última quinta-feira, 9, data de lançamento do disco. No mesmo dia, Yoko Ono, Sean Lennon e convidados envolvidos no projeto participaram de um evento online, Tim’s Twitter Listening Party’, com tuítes de frases da época, fotos, filmes e comentários de produtores e músicos.
Para vislumbrar algumas circunstâncias que geraram as condições para a criação do álbum, é preciso voltar um ano no tempo: 1970. Após a dissolução da maior banda de rock da história, John Lennon deu um cavalo de pau no modo de escrever e expressar sua música. Mais do que um manifesto sobre o fim do sonho de uma geração, o álbum Plastic Ono Band foi uma dolorosa imersão de Lennon ao próprio ego, onde o recém-liberto ex-beatle enfrentou traumas de infância e de uma adolescência dilacerada pela perda da mãe.
Com uma sonoridade crua, minimalista e visceral e uma poesia brutalmente honesta, o disco representou um marco na carreira de Lennon pelo poder de faixas confessionais como “Mother”, “Isolation” e “God”. Esta última, tornou-se, inclusive, o manifesto definitivo sobre o fim da plenitude dourada dos anos 60. O álbum era um grande motivo de orgulho para o músico. No entanto, não fez o sucesso esperado, principalmente se comparado aos esforços de seus ex-companheiros de grupo, McCartney, de Paul McCartney, e All things must pass, de George Harrison.
Aqui, um parênteses. Harrison e Lennon foram os que mais abraçaram a necessidade de mudança nos Beatles. Para os dois, a vida não fazia sentido sem transformação. Mais do que tudo, os Beatles encarnaram, sob as vestes do maior ato do então embrionário showbiz mundial, a mudança. Após eclodirem na Europa em 1963, os quatro camaradas da pouco glamorosa Liverpool do pós-Guerra dinamitaram os padrões de comportamento do Ocidente, isso enquanto se metamorfoseavam na próxima onda. Como Harrison, John Lennon levou a coisa ao pé da letra. Ele soltou a mão de sôfregas adolescentes em 1964 para se tornar o timoneiro da psicodelia em “Tomorrow never knows” e “A day in the life”, pouco mais de dois anos depois.
De volta a 1971. Diante do aparente desencontro de suas canções com o público — “Cold Turkey”, por exemplo, foi um fracasso retumbante em vendas — e, talvez acossado pela competição com seus pares, Lennon partiu para o desafio de se reinventar mais uma vez. Era preciso permanecer no jogo. Caberia a ele abrir espaço para que sua amargura pudesse conviver com a possibilidade de sonhar novamente, de preferência, agora, de olhos bem abertos. E, de quebra, voltar a ter um disco no primeiro lugar das paradas.
Assim nascia o álbum Imagine, uma arrebatadora colagem de canções que iam do confronto político direto até delicadas baladas de amor. Para atingir o objetivo, Lennon permitiu ao produtor Phil Spector que expandisse a técnica batizada de wall of sound, um som denso e cheio de reverb, popularizado no início dos anos 60. O resultado deu certo: apesar de dividir a crítica da época, o disco chegou ao topo das paradas nos EUA e no Reino Unido.
Imagine, The Ultimate Collection
Mais do que mergulhar em uma audição do álbum original, vale cair de cabeça no lançamento de 2018, projeto do filho de Yoko, Sean, e cujas mixes foram aproveitadas no LP duplo lançado esta semana, que vale mais como item de colecionador. Melhor mesmo é se deleitar na diversidade das 61 faixas da caixa The Ultimate Collection, que ainda vem acompanhada de um luxuoso livro de 120 páginas com fotos e depoimentos dos participantes do projeto.
Além de uma remixagem que deu punch e atualizou as faixas à era do streaming, há takes alternativos, versões ao vivo, demos e outras mixagens para petardos como “Crippled inside”, um comentário mordaz sobre a hipocrisia social, “Gimme some truth”, e “I don’t wanna be a soldier”, as duas um manifesto contra a Guerra do Vietnã.
Há também a brutalidade de “How do you sleep”, um “recado” ao ex-parceiro de banda — na verdade uma resposta desproporcional a uma provocação que Paul McCartney fizera em “Too many people”, do disco Ram. Versões instrumentais de “Jealous guy”, “Oh, My Love”, “Imagine” e “How?” soam comoventes, especialmente as cordas da sessão Elements Mix. No caso de “How?”, o arranjo consegue adicionar ao clima melancólico da letra original uma bela e frágil camada evocativa.
Retalhos
É curioso que algumas faixas do disco — “Gimme some truth”, “Jealous guy” e “Oh My Love” — tenham sido compostas a partir de retalhos da época dos Beatles, incluindo a própria “Imagine”, que consta ter aparecido em um ensaio de janeiro de 1969, durante as sessões de Twickenham. À época, o quarteto produzia o disco que viria a se chamar Let it be.
No caso de “Imagine”, também é irônico. Sozinha, a canção, carregada de uma desconcertante e genial simplicidade na composição e no arranjo, seria responsável por redefinir os rumos da carreira de Lennon e tornar-se uma das mais emblemáticas músicas de todos os tempos. E, assim como “All things must pass”, de Harrison, e “Maybe I’m amazed”, de McCartney, deixou de integrar o catálogo do quarteto para fazer história em voo solo.
‘Imagine’, a canção do século
As origens de “Imagine” estão no livro Grapefruit, lançado em 1964 por Yoko Ono, então uma desconhecida artista de vanguarda. Com instruções do tipo “imagine um peixe dourado nadando no céu”, o livro tornou-se o trampolim criativo que John usaria para escrever a letra, anos depois.
Quase uma década após o lançamento de “Imagine”, Lennon afirmou em uma entrevista que não teve coragem de incluir o nome de Ono como coautora da faixa, mas que ela deveria, sim, receber o crédito. A injustiça foi reparada em 2017, quando a National Music Publishers Association tornou oficial a autoria da dupla, além de nomear “Imagine”, a canção do século.
“Será que é boa?”
O escritor Ray Connolly, autor da biografia Being John Lennon, relata, tanto no livro quanto no filme Sob o Céu Como Testemunha (ambos de 2018), que Lennon apresentou a ele um acetato contendo duas faixas. A primeira, “Gimme Some Truth”, estaria no lado A do primeiro single do disco, ainda sem nome. Connolly não ficou muito impressionado e pediu que ele virasse o disco: era “Imagine”. O jornalista então sugeriu que a música talvez devesse ser o lado A do compacto.
O filme também mostra outro interlocutor, o fotógrafo Spud Murphy, a quem John pergunta se “Imagine” seria mesmo “boa”. Quando o fotógrafo responde que considerava que a faixa ainda teria força uma década depois, Lennon retruca: “O que é isso? É só um disco de rock”.
Manifesto comunista
Sobre a abrangência da música, Lennon sempre se mostrou incomodado pelo que considerava uma má interpretação da mensagem. “‘Imagine’ é anti-religiosa, anti-nacionalista, anti-convencional, anticapitalista, mas por ser açucarada, é aceita”, disse para Connolly. “É virtualmente o manifesto comunista”.
Ele revelou ainda que recebeu, certa vez, um telefonema de uma igreja pedindo para usar a música, mas que mudariam o verso original para “imagine uma religião”. “Isso me mostrou que eles não entenderam nada, destruiria todo o propósito da música, toda a ideia”, lamentou o ex-beatle.
Passados 50 anos das gravações da hoje clássica canção, é de se imaginar que Lennon poderia ter se espantado com as centenas de interpretações da balada. Algumas por demais grandiloqüentes, cantadas por artistas que passam ao largo da proposta estética da versão original. E mais ainda do espírito político e social que levou à sua criação. Ossos do ofício.
Motivos pelos quais o filho de Lennon, Sean, declarou que a versão do pai é imbatível, pela interpretação anti-The Voice, sem malabarismos vocais. Por John ter adotado um tom emocional contido que casou perfeitamente com a mensagem da letra, como se considerasse o conteúdo mais importante que o veículo.
300 milhões de execuções
Com tudo isso — ou apesar de —, “Imagine” permanece um fenômeno: em 2020, a faixa atingiu 300 milhões de execuções no Spotify, deixando na poeira a canção mais popular dos Beatles, “Here comes the sun”, com 145 milhões de streamings, segundo a imprensa britânica. No YouTube, atualmente são quase 228 milhões de visualizações. No mesmo período, a carreira solo de Lennon ganhou mais de 1 bilhão de execuções. Somada ao trabalho com os Beatles, bateu a casa dos 10 bilhões. Nada mal para alguém que temia cair no esquecimento dos fãs.
Se 1971 não trouxe as respostas, sua prolífica e inspirada produção cuidou de amortecer os solavancos daquela extraordinária jornada pela década de 70, acalentando almas em desespero e colorindo o absurdo da existência. Neste sentido, “Imagine” é um triunfo inigualável na história da música ocidental: sua melodia e letra, indissociáveis, seguem enraizadas na cultura popular, onde deverá permanecer. Ao menos enquanto pulsar por aí uma resiliente busca por dias menos turbulentos.