É preciso redemocratizar o orçamento público
O projeto de lei do orçamento para 2022 foi encaminhado no limite estabelecido pela Emenda Constitucional 95/2016, de R$ 1,61 trilhão. O momento atual reforça a disfuncionalidade do arcabouço fiscal vigente em nosso país. O crescimento da arrecadação impacta positivamente o resultado primário, mas não reverte em investimentos e gastos sociais estratégicos, dado o teto de despesas primárias.
Inicialmente, foi prevista a abertura de significativo espaço fiscal para 2022, tendo em vista a diferença entre o corretor do teto — IPCA de doze meses, acumulado até junho de 2021, de 8,35% — e o INPC, que corrige benefícios da seguridade social. Contudo, diante do avanço explosivo da inflação, o espaço foi encolhendo.
A situação se agravou com a ampliação das obrigações relacionadas a sentenças judiciais, que alcançam R$ 89,1 bilhões em 2022. A insistência no teto de gastos levou a uma proposta de orçamento que não responde aos inúmeros desafios do país.
Na área da saúde, a rubrica para enfrentamento à pandemia foi reduzida em R$ 40 bilhões em relação aos valores autorizados em 2021, prejudicando o financiamento de leitos, a aquisição de vacinas e outros insumos, bem como a realização de investimentos capazes de fortalecer o complexo econômico e indústria da saúde. Tais gastos reduziriam a dependência externa do Brasil, fomentando a mudança produtiva e tecnológica num setor que representa quase 10% do PIB.
Os investimentos devem seguir deprimidos, em torno de 0,4% do PIB — o PLOA prevê R$ 25,6 bilhões em investimentos, menos de 40%, em termos nominais, dos investimentos previstos em 2014. Com o acréscimo das emendas parlamentares, os investimentos devem alcançar R$ 38 bilhões, equivalendo a 0,4% do PIB. Isso é muito abaixo do nível observado em 2014 (1% do PIB), constituindo mais um obstáculo para a recuperação econômica.
A depender do projeto de orçamento, o novo programa de transferência de renda de Bolsonaro não sairá do papel. O valor previsto para o Auxílio Brasil — R$ 34,7 bilhões — está no mesmo patamar do Bolsa Família em 2021, apesar de haver mais de 2 milhões de famílias na fila de espera do programa, da queda real da renda dos mais pobres e fora os 22 milhões de brasileiros que deixarão de receber o Auxílio Emergencial da Covid-19 em outubro — atualmente, 39 milhões de brasileiros recebem o benefício.
A solução aventada pelo governo é um atraso no pagamento de precatórios, gerando artificialmente espaço dentro do teto para financiar a transferência de renda. As condições legais para o represamento da despesa seriam obtidas mediante autorização do Conselho Nacional de Justiça ou de uma emenda à Constituição.
Conforme manifestações anteriores do Supremo Tribunal Federal, o contingenciamento do pagamento de sentenças judiciais é inconstitucional. E, naturalmente, falece competência ao CNJ para alterar a Constituição ou mesmo regulamentar a matéria em sede administrativa.
Aqui é preciso atentar para a contradição do governo em relação às regras fiscais. De um lado, o discurso oficial aponta que o teto é a principal âncora fiscal do país. De outro, há, por parte do governo federal, uma tentativa de flexibilização seletiva das regras fiscais para viabilizar gastos em ano eleitoral, transferindo as obrigações para os governos seguintes. Cabe dizer que referida contradição é inerente ao teto de gastos e afloraria a qualquer momento.
Convém ainda assinalar que parcela dos recursos do orçamento deverá ser consumida pelas emendas de relator, que não atendem a requisitos constitucionais básicos como impessoalidade e publicidade. Caso os valores atuais se repitam em 2022, o relator terá quase R$ 17 bilhões para distribuir por critérios políticos discricionários.
Em resumo, o quadro orçamentário atual é bastante desfavorável, conjugando austeridade, relaxamento seletivo e inconstitucional das regras e uso clientelista dos fundos públicos.
É preciso atualizar o marco fiscal para recuperar o poder de coordenação e planejamento do governo central, de modo que o orçamento possa efetivamente responder à demanda da população por melhores entregas públicas, gerando, assim, valor público para o conjunto da sociedade.
O comportamento da arrecadação, a redução da dívida e as boas condições de liquidez do Tesouro — a relação atual entre reserva de liquidez e dívida de 12 meses gira em torno de 1, tendo alcançado 0,5 em julho de 2020 — reforçam a possibilidade de adoção de regras fiscais flexíveis, transparentes e modernas, que viabilizem gastos voltados à recuperação econômica e à redução das desigualdades. Esta será uma tarefa central para a redemocratização do país.