A histriônica demonstração de força ensaiada por Bolsonaro na última semana não só acabou por evidenciar a fraqueza pessoal e institucional do presidente e de seu governo. Serviu de oportunidade para que uma unidade até então inédita de forças políticas e Poderes da República se manifestasse, ainda que pontualmente, impondo ao autoritário e inconsequente governante algumas derrotas fragorosas.

A primeira e mais evidente das derrotas foi a rejeição à emenda constitucional anacrônica do voto impresso, “enterrada” pela Câmara, na definição de parlamentares. Este resultado era razoavelmente previsível, pelos termômetros de Brasília. No entanto, a maior surpresa, e provavelmente a maior derrota, tanto simbólica quanto prática, foi a substituição da Lei de Segurança Nacional, entulho da ditadura tão exaltada pelo presidente, por um dispositivo legal que caracteriza como crimes justamente tendências golpistas que são tão caras ao atual mandatário. As novas regras incluem no Código Penal práticas como crimes contra as instituições democráticas, contra o funcionamento das eleições e contra a cidadania.

Pelo balanço da semana política e pelas reações da opinião pública a tudo o que ocorreu, há motivos para comemoração e, por que não, até para zombar do presidente e seus arroubos, como faz sutilmente a capa desta edição e como fizeram de maneira estridente as redes sociais nos dias seguintes ao passeio do comboio militar pela Praça dos Três Poderes, na última terça-feira, dia 10. Porém, a fumaça tóxica exalada pelos carros blindados de combate ainda paira pelos céus. Nem tudo é tiro de festim.

Um exemplo do comportamento escorregadio da base aliada do governo foi a tentativa de emplacar uma minirreforma política na esteira da derrota do voto impresso. Um vacilante e dúbio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), testou o plenário com a proposta de criar o chamado distritão e ressuscitar o modelo das coligações partidárias. A primeira das propostas, tida por dez entre dez analistas como prejudicial à representatividade popular na política institucional, foi derrotada na noite de quarta-feira. A volta das coligações partidárias foi aprovada em primeiro turno.

A subida de temperatura contra Bolsonaro não para. Na tarde de quarta, foi a vez da CPI da Covid-19 colocar em xeque sua autoridade e lisura, de forma bastante dura, ao anunciar que pretende indiciá-lo por curandeirismo, charlatanismo e publicidade enganosa, com base no fato de Bolsonaro ter negado a gravidade da pandemia desde o início, ter atrasado propositalmente a compra de vacinas – seja por negacionismo, seja por interesse em negociar propinas – e de ter recomendado repetidas vezes o uso da cloroquina como remédio preventivo à doença.

Nem só de atitudes ostensivas foi feita a oposição ao presidente na semana que passou. Sua tática de provocar os Poderes e gerar impasses que o autorizem a produzir rupturas institucionais recebeu como resposta, por parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o silêncio. Essa cautela, que pode ser classificada como recusa à provocação, também se manifestou quando o ministro Dias Toffoli preferiu não julgar pedido para proibir o desfile militar fora de hora. Caso tivesse decidido pela proibição, talvez abrisse caminho para que Bolsonaro desrespeitasse a determinação, aprofundando a crise.

Quando tentou criar uma pauta positiva, Bolsonaro tampouco causou boa impressão. Ele foi caminhando ao Congresso, um dia antes do passeio dos tanques pela capital federal, para entregar a Arthur Lira a proposta de criação do chamado Auxílio Brasil, que pretensamente substituirá o Bolsa Família. No entanto, a proposta é vazia: não especifica valores, prazos ou quem serão os brasileiros e brasileiras que teriam acesso ao benefício.

No Twitter, a presidenta do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann, assim definiu o “novo” auxílio: “Proposta de Bolsonaro para substituir o Bolsa Família acaba com o programa, um dos mais copiados do mundo. Ele não define linha de pobreza, quem será beneficiado, não traz valor do benefício, retira municípios e o SUAS do processo, desconsidera o cadastro único e torna o programa temporário”.

 

Lula, o maior pesadelo de Bolsonaro, embora tenha mantido discrição ao longo da semana (“Eu não fico entrando toda hora em briga desnecessária porque isso só interessa ao Bolsonaro. Ele cria confusão pra ocupar espaço na mídia”, disse ele nas redes sociais), fez intervenções cirúrgicas, como nesta publicação no Twitter, na terça-feira: “Dados que o governo Bolsonaro não faz desfile pra exibir. Nos últimos 12 meses: arroz subiu 48%; feijão subiu 22%; carne subiu 38%; leite subiu 11%; gás subiu 24%; 14,8 milhões de brasileiros desempregados e fila do osso”.

Lula também sinalizou como pretende lidar com a relação junto aos militares caso seja novamente eleito presidente. Cobrado pelos internautas, comentou: “1 – Não tem carta pra conversar com militares. Se tivesse carta seria para o povo brasileiro e dentro disso estão os militares. Se militar quiser fazer política ele renuncia o cargo, tira a farda e se candidata. Não tem problema. 2 – Já fui chefe das Forças Armadas, eles sabem como têm que se comportar. Cuidando da nossa soberania, dentro da Constituição. O Bolsonaro se comporta como se as Forças Armadas fossem um objeto particular dele, como se fossem um brinquedo. 3 – Não tem conversa especial com Forças Armadas, vou tratá-los com respeito, como temos que tratar todas as instituições. Isso que aconteceu hoje foi uma coisa patética. Se o Bolsonaro queria uma foto com militar era só ter visitado um quartel.”

Mas, passada a armada de Brancaleone, que o jornal inglês The Guardian batizou de “desfile da República de Bananas de Bolsonaro”, voltam a se destacar as diferenças de concepção em torno do significado de democracia. Os direitos sociais e trabalhistas continuam à mercê dos coturnos da elite financeira e de seus representantes na mídia e no Congresso. Ainda na semana que passou, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base da medida provisória 1045/21 (leia texto sobre as mudanças nesta edição), que amplia a precarização do trabalho e retira mais direitos.

Os movimentos sociais e sindical continuam resistindo. O presidente da CUT, Sérgio Nobre, atacou a medida. “Com essa vergonhosa MP, o presidente e os governistas na Câmara atacam, mais uma vez, os direitos da classe trabalhadora, já deteriorados pela reforma trabalhista e trazem de volta a famigerada carteira verde amarela. Trabalho sem direitos tem nome: é escravidão”, disse o sindicalista.

Outra ameaça no horizonte, sem provocar espanto na grande mídia, é a reforma tributária regressiva que continua avançando no Congresso. Neste item, por sinal, a crítica que é reverberada na imprensa é justamente aquela que poderia ser considerada um avanço: a cobrança imposto de renda sobre dividendos, injustamente isentos desde 1995. Outra pauta contrária aos interesses populares é a reforma administrativa, que mais do que penalizar o funcionalismo, vai enfraquecer mais os serviços públicos prestados à população (leia artigo nesta edição). Se as eleições do próximo ano parecem asseguradas, a luta por justiça social continua mais necessária do que nunca.