O legado de Jim Morrison
Jim Morrison, o Rei Lagarto, deixou a vida para entrar no panteão dos Deuses do Rock há mais de cinco décadas. E legou aos fãs e amantes do rock uma imensa obra com os Doors marcada como um caso raro em que poesia e música não envelhecem ou se tornam clássicos, como os Beatles ou os Rolling Stones. Mas, para além das circunstâncias em que surgiu, a arte de Morrison e dos companheiros de banda — Ray Manzareck (teclados), Robby Krieger (guitarra) e John Densmore (bateria) — segue plena, redescoberta e fonte para gerações.
O líder dos Doors não era apenas um rostinho bonito, nem um performer arisco e icônico, a pular nos loucos anos 60 e cantar vestido em uma justa calça de couro. Bobagem apegar-se à vulgar imagem que tentaram fazer dele. Seu envolvimento era com as palavras e o poder sublime de criar versos de rara beleza e imensa profundidade filosófica. Jim Morrison foi o último grande poeta do rock a beber diretamente da fonte do movimento beat e ganhar o mundo como um bardo a trabalhar com versos e imagens ricas e vivas, que estão impregnadas no ocidente. Claro, além disso, tinha muito charme e um talento raro como cantor.
Pois o legado de Morrison ganhou agora uma antologia à altura do poeta. Criado em colaboração com o espólio de Morrison, o livro “The Collected Works of Jim Morrison”, de quase 600 páginas, celebra a arte do poeta americano, que viveu e morreu como um rock star, mas tinha a alma de um romântico. Ele próprio tinha planos de publicar um livro contendo todos os seus escritos, incluindo poemas, roteiros e letras. Pois agora o desejo ganhou vida. A obra foi lançada pela Harper Design e está na lista dos best-sellers do New York Times e é considerada a antologia definitiva dos escritos do poeta, ilustrada com fotografias raras e numerosos trechos manuscritos de poesia e letras de seus 28 cadernos pessoais.
É possível ler versos que vão desde “The Pony Express”, um poema que ele escreveu quando estava na 5ª série primária, até reflexões de seus últimos dias em Paris, onde foi encontrado morto, numa banheira, em 3 de julho de 1971. Foi na terra de Charles Baudelaire que o poeta parece ter feito as pazes com o conceito de mortalidade, profeticamente escrevendo: “Naked we come and bruised we go / nude pastry for the slow soft worms below” — “Nus nós viemos e machucados nós vamos/ massa folhada nua para os lentos e macios vermes lá embaixo”.
Um dos remanescentes da banda, o grande guitarrista Robby Krieger, é preciso ao dizer que o amigo era um gênio. “Ele foi o único cara que conheci naquela idade que estava tão preocupado com a morte e a filosofia. Ninguém mais estava nem perto de pensar como ele”, relembra. “Jim sempre foi um poeta. Quando eu escrevi ‘Light My Fire’, Jim acrescentou a frase ‘tente atear fogo à noite’. Descobrimos recentemente que ele tinha escrito essa linha em um caderno de poesia há muito tempo, quando era apenas uma criança”.
A irmã do cantor, Anne Morrison Chewning, diz que ficou rapidamente claro que seu irmão era diferente das outras crianças enquanto eles cresciam na família de militares que mudava de casa quase a cada seis meses. “Enquanto seus amigos brincavam, Jim lia [Arthur] Rimbaud, [Albert] Camus e [Jean] Genet”, lembrou Anne, numa entrevista recente ao Financial Times. “Quando ele se formou, pediu aos meus pais as obras completas de Nietzsche como presente. Ele gostava de ir a Washington e vagar pelas ruas sozinho, apenas para poder observar as pessoas”.
Anne estava morando em Londres em 1966 quando sua mãe, Clara, enviou uma cópia do álbum de estreia do grupo The Doors. Ela ficou agradavelmente surpresa ao descobrir sobre a nova carreira do irmão mais velho, que àquela altura havia se desconectado da família. “Sempre pensei que Jim acabaria como um poeta beatnik sem um tostão”, diz ela. “Parecia que a música era realmente uma coisa acidental. Ele não estava tentando ser músico ou cantor. Simplesmente aconteceu por acaso”.
Um amigo de Morrison dos tempos da UCLA, onde estudaram cinema, Frank Lisciandro — editor da antologia — relembra as pretensões do líder dos Doors. “Jim era amigo de [o poeta da geração beat] Michael McClure e adorava a maneira como os poetas beats abordavam a linguagem. Queria divulgar a sua poesia através do palco do rock e transformá-la em teatro”, conta. “Era importante que imprimíssemos as letras de suas músicas junto com sua poesia, pois Jim realmente não via diferença”.
Foi Lisciandro que examinou dezenas de blocos de notas e fragmentos de poesia que Morrison deixou para trás para reuni-las na antologia. Em 8 de dezembro de 1970, o agora editor foi convidado por Morrison ao estúdio em seu último aniversário para vê-lo gravar alguns de seus poemas favoritos — o audiolivro da antologia apresenta essas gravações.
“Ele era uma pessoa muito discreta e quieta. Nem um pouco fanfarrão. Lembro-me de que um dia ele entrou no escritório do The Doors e silenciosamente me entregou um livro de poemas que acabara de publicar por conta própria”, recorda-se o agora editor do legado de Morrison. “Eu achava que ele era uma pessoa inteligente, mas depois de ler aqueles poemas percebi que eu não sabia nada sobre o mundo”.
Muito da poesia enigmática e de fluxo de consciência de Jim Morrison parece refletir o mundo conturbado dos nossos dias. Enquanto as referências de pesadelo a “freiras com olhos catalépticos” estão mais próximas das visões góticas de Edgar Allan Poe, os pensamentos de Morrison sobre a tecnologia substituindo a experiência da vida real — “Pode haver um momento em que vamos a teatros meteorológicos para relembrar a sensação da chuva” — são originais e assustadores. Ele escreve sobre uma “cidade enlouquecida de febre”, pessoas deixando “sombras elétricas”, e tristemente admite que a “divisão dos homens em espectadores é o fato central de nosso tempo”.
Lisciandro ressalta: “Em um dos poemas, ele fala sobre os globos oculares suspensos na frente de uma tela. E agora, 50 anos depois, estamos grudados em telas”. O editor contou ao Financial Times sobre a percepção terrível que a vida moderna exerceu sobre o poeta e escritor. “A ideia de o mundo se tornar mais computadorizado definitivamente perturbou Jim porque ele tinha um espírito muito livre. Ele simplesmente ia para onde quer que a energia o empurrasse”, diz. “Ele saía de uma sessão do Doors, andava até a rodovia, colocava o dedo para fora e pegava uma carona. Jim era um mochileiro em sua mente também, pegando carona para o próximo pensamento ou experiência”.
No livro, é possível perceber que as guerras — uma fonte inesgotável de inspiração para os artistas, principalmente nos anos 60, quando quase todo o mundo que importava no rock abordou o conflito no Vietnã — afetaram o pensamento do poeta e cantor. Morrison aborda regularmente a guerra, escrevendo sobre soldados “levados à matança por generais plácidos”.
É tentador ver essas descrições angustiantes como farpas dirigidas diretamente ao pai, o Contra-Almirante George Stephen Morrison, comandante das forças navais dos EUA no Golfo de Tonkin, durante o incidente em agosto de 1964 que desencadeou a escalada do envolvimento americano na Guerra do Vietnã. Veterano, testemunhou o ataque japonês a Pearl Harbor, o velho não aprovava as escolhas de carreira do filho. Anne diz que Morrison, na verdade, teria planos de fazer as pazes com o pai. Parece estranho para quem abordou de maneira impactante o mito de Édipo.
Quem não se lembra dos versos profundamente perturbadores da clássica “The End”? — “The killer awoke before dawn/ He put his boots on/ He took a face from the ancient gallery/ And he walked on down the hall/ He went into the room where his sister lived/ And…then he/ Paid a visit to his brother, and then he/ He walked on down the hall, and/ And he came to a door…/ and he looked inside/ ‘Father?’/ ‘Yes, son’/ ‘I want to kill you’/ ‘Mother… I want to… fuck you’ [O assassino acordou antes do amanhecer/ Calçou suas botas/ Tomou um rosto na antiga galeria/ E seguiu pelo corredor/ Foi até o quarto onde sua irmã vivia/ E então ele/ Visitou seu irmão/ E então ele seguiu pelo corredor/ E foi até uma porta, e olhou para dentro/ “Pai?”/ “Sim, filho”/ “Eu quero te matar”/ “Mãe… Eu quero… Te foder”].
Esta canção permanece viva na mente de todos hoje não tanto pelos versos reveladores da grave distância entre Jim e a família, ou pela clara inspiração em Sófocles e a peça “Édipo Rei”, mas por conta do filme “Apocalypse Now” (1979), do cineasta Francis Ford Coppola, também ele um estudante de cinema da UCLA, contemporâneo e colega de Morrison dos tempos de faculdade.
A canção ilustra dois grandes momentos da obra-prima cinematográfica. Na abertura do filme, quando “The End” serve de trilha para as imagens de helicópteros sobrevoando algum ponto do Vietnã onde são despejados litros de napalm, enquanto o capitão Benjamin Willar (Martin Sheen) permanece olhando vagamente para o teto de seu quarto ordinário de um hotel ordinário nos confins do país asiático, pensando na missão que lhe foi dada: matar um coronel enlouquecido que desertou do exército americano e segue rebelde, escondido nas selvas, assombrando as tropas dos EUA: Kurtz (Marlon Brando).
E, no final, quando Willard se esgueira pela selva, mergulha no rio, em meio a fortes chuvas, e sob as sombras cúmplices de árvores, com o rosto pintado, segue o ritual coreografado como um bailarino para cumprir seu objetivo e propósito: matar Kurtz, o coronel desertor, a golpes de facão, enquanto a música atordoa o espectador com imagens entrecortadas de um boi sendo retalhado por vietnamitas e imagens de Brando ferido, cambaleando. Até que, caído e com os olhos abertos, perdendo a vida, sangrando, balbucia as últimas palavras: “O horror, o horror…” O filme foi inspirado no livro “Coração das trevas”, de Joseph Conrad. Profundo, perturbado e imagético. Como a poesia de Morrison.