O Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que uma mulher esteja em situação de violência a cada 8 minutos no país. Diante deste dado, a major da PM da Bahia Denice Santiago afirma que a sociedade brasileira escolheu ser violenta e que qualquer mudança depende de educação de gênero e trabalho de fiscalização, prevenção e atendimento às vítimas.

Candidata à prefeitura de Salvador pelo PT em 2020, Major Denice é responsável por levar a Ronda Maria da Penha para a PM baiana. O projeto inspirado em uma iniciativa da polícia do Rio Grande do Sul busca preencher lacunas deixadas pela Lei Maria da Penha combatendo as agressões e fiscalizando rotineiramente a situação das famílias onde ocorrem violência doméstica. A inovação criada pela Major Denice foi o trabalho de prevenção que passou a ser realizado com a criação de uma série de ações e projetos que explicam às vítimas como identificar a violência doméstica e o funcionamento da rede de proteção.

A policial militar que se aprofundou no tema da violência contra a mulher afirma que os casos de violência aumentaram muito durante a pandemia. Da mesma forma, as possibilidades para que as vítimas consigam denunciar seus agressores ficaram mais escassas. Além disso, ela considera que a pandemia deixou muitas mulheres em situação de extrema fragilidade.

Além de oficial da PM, Denice Santiago é psicóloga e mestra em Desenvolvimento e Gestão Social pela UFBA. O título da dissertação é impactante: “Branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão”. A frase dita por um instrutor do curso de oficiais da PM foi utilizada por Denice para determinar como o racismo está institucionalizado nas forças policiais. Ela diz que a sua luta é para que o próprio filho e os demais jovens negros não sejam tratados como alvos pela polícia, e que possam ser protegidos por ela.

Nesta entrevista à Focus Brasil, Denice analisa ainda a situação do Brasil, que considera tenebrosa. Ela ressalta que não faz muitas críticas ao presidente Jair Bolsonaro porque é militar da ativa e o regulamento não permite que ela carregue esse tipo de crítica em suas falas, diferente da condição do General Eduardo Pazuello. Apesar da angústia pelo presente, Denice diz ter esperança de que esse período vai servir para os brasileiros reaprenderem a votar. A seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Focus Brasil A senhora é uma mulher negra, policial militar, psicóloga e mestra em Desenvolvimento Territorial e Gestão Social pela UFBA. São muitas frentes de luta em um país como o Brasil. Na dissertação, abordou o racismo na atividade policial, um problema generalizado, enraizado na estrutura do país. Qual é a sua perspectiva sobre o país? Na sua opinião, por que o Brasil está nessa situação?

Denice Santiago — Enquanto mulher, mãe e trabalhadora, minhas perspectivas são extremamente sombrias e complexas. Temo, em específico, como mãe, pelo futuro, pela possibilidade de subsistência e de existência. Então, nesse lugar que o materno me trouxe, mas que sobremodo não me define, assusto-me diariamente com o Brasil. Para além da gestão federal do país, o que mais me angustia é a receptividade de boa parte de brasileiros e brasileiras ao que está sendo posto pelo governo federal. Angustia a mim entrar nas redes sociais e ver pessoas aclamando a misoginia, aclamando o racismo e outras discriminações. Angustia a mim estar na minha prática profissional, por exemplo, e ver colegas de profissão defenderem isso que está sendo posto como pauta pelo governo.

Como militante do movimento de mulheres, fico angustiada em perceber que todas as políticas públicas que a gente construiu durante os anos em que esse país teve uma gestão humanitária estão sendo destruídas sumariamente e ridicularizadas nesse processo. Eu, por vezes, fico pensando se a gente vai conseguir recuperar o tamanho do dano que se causou. Porque essa perversidade que está posta tem alcançado graus de metástase.

Para você ter ideia, outro dia uma pessoa que eu estimo muito, conversando comigo, começou a querer defender o governo que aí está. E eu até disse: “Você pode até ser ‘anti’ algum partido político. É uma escolha sua, mas você não tem argumentos para defender o que está posto”. Não há argumentos para defender o que nós estamos vivendo, o desmonte do Estado brasileiro, o desmonte de tantos avanços que nos colocaram na pauta mundial, que fez o Brasil deixar de ser o “país do futebol” ou o “país das mulatas bonitas” e passou a ser o país da justiça social, da economia crescente, o país do respeito, para ser um país de referência.

Por exemplo, o SUS que aí está e que tantas pessoas quiseram destruir, tem salvado vidas e mais vidas. Se nós não estamos vivendo colapso pior hoje com a pandemia é por causa do SUS. Então, temo que esses danos ao país sejam irrecuperáveis. Minha perspectiva hoje é dessa angústia e revolta, mas também de esperança. Esperança que estejamos aprendendo com tudo o que temos vivido. Esperança que a gente sinta, se não pela própria pele, que seja na tristeza de quem está ao nosso lado ou ainda no bolso. Mas que modifiquemos a forma de agir. Dá tempo ainda, precisa dar tempo. Edson Gomes tem uma música que eu gosto muito na qual diz: “Vamos amigo lute, vamos amigo ajude senão a gente acaba perdendo o que já conquistou”.

E eu acho que é essa a hora. Esse levante que eu vejo surgir nas ruas, essa é a hora. A gente só precisa estar lá, só precisamos mostrar para a população que não consegue ter o acesso que alguns de nós temos que essa é a chave da mudança. Esse é o meu lugar hoje, de angústia, também de esperança e de movimento. Tenho me movimentado para que seja possível que a gente volte a ter dignidade a partir da gestão federal, em específico, nesse país.

 

Por qual motivo o discurso bolsonarista tem apoio entre policiais? Sabemos que não são todos, que em contraponto existe o movimento de policiais antifascistas, mas é uma situação que acaba gerando inquietação.

— Existe uma cultura dentro das corporações militares que se chama “espírito de corpo”. Temos uma tendência, não é uma regra, a proteger nossos colegas. É uma tendência. Quando uma pessoa se apresenta como militar, olhamos para essa pessoa e, se em algum momento da história daquela pessoa, os ideais dela se associam aos meus, se eu acredito mesmo que aquilo o que ela está falando seja verdade, vou me associar porque é um policial ou alguém como eu e pensa igual a mim. Fato. Nesse caminho, a gente precisa parar para pensar um pouco na formação das polícias. O Brasil criou lá atrás, desde Dom João, forças militares para proteger o patrimônio, para proteger os chefes de Estado. Elas atuavam na proteção do patrimônio, na proteção da “paz social”. E, durante a ditadura militar, utilizaram essas forças para defender um ideal. Eu não sei o que aconteceu, não sei se eu consigo transcrever isso em dados e números ou numa teoria que dê sustentação ao que eu penso, mas eu não sei o que aconteceu nesse processo que fez com que os policiais militares se transformassem em deuses que estavam acima do bem e do mal e que decidiam quem vive ou quem morre.

Isso são todos? Não. Sou uma policial militar que não pensa assim e conheço diversos, acredito que a maioria não pensa [dessa forma]. Eu sou uma policial que não defendo os ideais do presidente, ainda que este tenha sido um oficial. Mas existem pessoas que defendem e que acreditam que os militares estão acima do bem e do mal, que podem decidir quem vive e quem morre. Não nos aprofundamos na segurança pública como deveríamos e penso que, até hoje, as forças de segurança ainda servem a alguém. Isso a gente precisa mudar. Precisamos trazer um debate sobre a escolha dos chefes dos líderes dessas instituições, para que a escolha não seja feita pelo gestor ou pela gestora. Porque quando eu escolho você para chefiar a minha tropa armada, você me deve honras, responsabilidade, retornos e respostas. Há algum tempo, prefeitos e governadores eram nomeados por indicação e eles deviam a quem os indicava. De igual sorte, é isso.

Então, a gente precisa avançar na construção da segurança pública. Pensar um modelo que seja mais democrático dentro das forças, em que a ingerência externa não seja tão presente e atuante. Assim, as pessoas não darão respostas a quem os nomeou, mas à sociedade que é de fato quem merece resposta da tropa. Então, quando a gente olha, temos policiais e militares que estão vendo um colega e entendem que ali há uma possibilidade de representatividade. Da mesma forma como eu estive candidata à prefeitura de Salvador, alguns me viam como colega, mas não enxergavam em mim ideais convergentes com os seus. Não discuto isso e não discuti durante o processo, mas há pessoas que entendem ou por espírito de corpo ou por convergência de ideais, infelizmente, que esse governo que aí está é o governo que os representa. É uma pena. Mas também existem muitos de nós que têm sanidade e que conseguem dividir as coisas.

Não vou falar muito no nome do presidente que aí está ou de ações relacionadas a ele porque eu não sou igual ao General Eduardo Pazuello, que pôde subir no púlpito, reclamar e não ser responsabilizado por isso. Sou militar da ativa e ativa não posso carregar na minha fala críticas relacionadas ao presidente porque o regulamento pode me penalizar por isso. Espero que chegue o dia – também por isso precisamos de mais democracia dentro das Forças – que eu possa chegar abertamente dizendo o que eu penso. Queria poder falar para que as pessoas pudessem ouvir. A democracia não é incongruente, em nenhum ponto, com a hierarquia e a disciplina. Quando falamos de hierarquia, falamos sobre respeito à liderança. Isso você encontra em qualquer empresa.

 

Com relação ao trabalho inovador que a senhora desenvolveu na PM da Bahia, peço que explique como funcionava o projeto Ronda Maria da Penha.

— Vou retroceder um pouquinho para que se possa compreender o contexto. Em 2006, curiosamente no mesmo ano em que nasce a Lei Maria da Penha, a gente consegue emplacar aqui na PM da Bahia um núcleo de gênero, o Centro Maria Felipa. Esse centro foi o primeiro núcleo de gênero dentro de uma instituição Policial Militar e o único até hoje no país. Tinha como responsabilidade pautar as especificidades do feminino para dentro da corporação porque a PM do meu estado ficou 165 anos apenas com homens nos seus quadros. Em outras palavras, não sabia como lidar com uma profissional na PM e precisávamos fazer isso juntos. E o Centro Maria Felipa foi essa ponte. Mas como a gente nasceu no mesmo ano da Lei Maria da Penha, o centro começa a representar a polícia na rede de enfrentamento à violência contra a mulher. E, a partir dessa representatividade, a gente se aproxima da rede e vamos também virar uma porta de entrada para esposas de policiais, para as próprias policiais que estavam em situação de violência.

Por conta disso, começo a estudar mais, a analisar mais como isso se monta e, em 2013, sou apresentada à Patrulha Maria da Penha do Rio Grande do Sul. Essa patrulha preenchia uma lacuna existente na Lei Maria da Penha. A lei trazia como inovação as medidas protetivas de urgências e essas medidas eram um pedaço de papel. O juiz ou a juíza decretava a medida protetiva de urgência e o agressor rasgava aquele papel e descumpria. E não existia uma fiscalização. A patrulha entrou nesse vácuo, entre a emissão da medida e a fiscalização. Eu trago para Salvador essa ideia, converso com o nosso comandante-geral, com o secretário de Segurança Pública, com a secretária de Políticas para Mulheres e a gente cria a Ronda Maria da Penha porque o termo “ronda” é mais correlato às nossas atividades de patrulhamento. Entretanto, o que eu avaliei da minha lógica de atuação e todo o acúmulo que trouxe do Centro Maria Felipa, pude trabalhar no governo Jaques Wagner, na assessoria técnica da Secretaria de Políticas para Mulheres, com entendi que só realizar visitas e fazer o combate não iria resolver o problema.

Estávamos fazendo mais do mesmo, prendendo homens que eram soltos e continuavam violentos. Estávamos fiscalizando medidas protetivas de mulheres que denunciavam e continuavam sofrendo violência. E a gente atrelou, seguindo o que está posto no Plano Nacional de Políticas para Mulheres do governo Lula e do governo Dilma – infelizmente, agora destruído – a gente utilizou o termo de “enfrentamento” nas duas perspectivas: no combate, a viatura com policiais armados e treinados que realizavam visitas; e na prevenção, nós criamos diversos projetos e programas relacionais à prevenção da violência contra a mulher. Avalio que exatamente nesse ponto, tornamo-nos referência nacional. Lá em cima, [aponta para uma caixa no alto de uma estante] atrás de mim tem um jogo de tabuleiro que eu criei para poder dialogar com mulheres em situação de violência doméstica já que falar sobre isso é extremamente complexo, as mulheres se sentem adoecidas. Criei um formato lúdico para entenderem quais são os tipos de violências que elas vivem, para entenderem como funciona a rede.

A ronda foi se consagrando nesse espaço que, além de articular o combate com toda a força bélica que a Polícia Militar possa ter, também foi fazendo as pessoas pensarem, pautando a ressignificação cultural. Isso é a Ronda Maria da Penha. Se eu for analisar na perspectiva do ecossistema o que a gente propôs com a Ronda, foi modificar as relações sociais no tocante à prática do machismo, na perspectiva da violência doméstica e familiar contra a mulher. Foi isso o que fizemos com a ronda.

 

A pandemia tem sido um período de aumento da violência doméstica e diminuição das denúncias sobre esses casos porque as mulheres estão presas com os seus agressores?

— É exatamente essa lógica. Aquela mulher que ficava antes 8 horas do seu dia, 6 horas do seu dia, com o agressor dentro de casa, agora ela tem ficado 24 horas, 20 horas com esse homem dentro de casa. Isso significa dizer que o que aquela mulher entendia que suportava viver de violência, foi agravado em duas, três vezes. Além disso, o fato de a pandemia ter provocado um distanciamento social fez com que muitas mulheres perdessem seus empregos porque as empresas fecharam. Existe o recuo da economia. Mas essas mulheres tiveram que deixar de trabalhar porque os filhos ficaram em casa sob seus cuidados e quando o trabalho retornou, ainda assim os filhos não voltaram para a escola. Então, tivemos um número de desempregadas que foram e que estavam em casa presas com seus agressores, sem dinheiro para ir, inclusive, dar queixa. Elas não tinham como pedir ajuda. Algumas campanhas foram criadas, e eu até discordo tecnicamente de algumas.

Essa mulher não tinha como pedir ajuda, não tinha dinheiro para ir até uma delegacia. Ou seja, não podia denunciar. Então, foi uma intersecção de fatores que fizeram com que as mulheres sofressem mais violência. E não estou falando só da violência física. A sociedade tem uma ideia de que a mulher só sofre violência quando falamos de violência física. Eu tenho certeza de que nesse período aumentou o número de casos de violência psicológica, de mulheres que foram humilhadas, chantageadas, levadas à beira da loucura dentro de suas casas. Aumentou a violência patrimonial. Essas mulheres que recebem Bolsa Família, não raro, se você parar para reparar nas imagens das filas da Caixa Econômica para retirada do auxílio [emergencial], a maioria das mulheres estava acompanhada de homens. Isso nunca aconteceu. Esses homens nunca íam com elas até a boca do caixa para tirar dinheiro. Tenho certeza de que em grande parte esses homens estavam ali para já retirar da mão delas aquele dinheiro. Estava posta ali a violência patrimonial.

A violência sexual também foi agravada na pandemia com estupros conjugais. Na nossa cultura não conseguimos muito definir o estupro porque a mulher é criada para achar que é obrigação dela ter relações sexuais com seus companheiros na hora que estes querem. Se ela disser não, a rede social dela vai começar a falar “menina, se você não comparecer ele vai procurar outra na rua”. Se ela disser não, ele já vai ficar dizendo que ela tem outro e é capaz até de bater nela por isso ou de tomar a força o “patrimônio” dele. Esse momento, para nós, foi extremamente complexo. E nós acompanhamos isso sozinhas.

Ao contrário de fortalecer a rede de atendimento, houve um enfraquecimento, retirando da rede profissionais para colocar em outros pontos. Foram criadas ações que fragilizam a mulher, como marca de batom na mão. Sou contra, mas algumas pessoas concordam. Se chegar na farmácia e marcar um “x” na sua mão de batom e mostrar, você vai implicar o atendente da farmácia. Ele vai ligar para uma viatura que pode não chegar e aquele agressor pode acabar vendo a marca em sua mão e machucá-la mais. As mulheres ficam sozinhas, isoladas, na solidão durante o processo da pandemia e sofrendo muito, mas muito mais violência doméstica.

 

Tivemos esse caso do DJ que veio a público e há uma pressão muito grande da sociedade. Isso é uma demonstração de que a sociedade não está mais tolerando a violência contra a mulher ou esse é um caso muito específico?

— De igual sorte, ele teve um impulsionamento nas redes sociais de quase 300 mil seguidores, depois desse fato. Isso me assusta. É assustador ver naquelas imagens de uma terceira pessoa presenciar toda a violência e nada fazer, não se intrometer, estar ali impassível assistindo como se estivesse em casa vendo um filme. E me incomoda também este DJ ter tido um impulsionamento em suas redes após aquele fato. Ele deveria ter sido cancelado. Se essa sociedade tivesse mesmo esse comprometimento, a gente tinha que ver o cancelamento nas redes sociais. Nós temos muito que evoluir ainda em relação à violência contra a mulher. Enquanto a gente não pautar gênero nas nossas escolas em todos os níveis, do ensino fundamental ao superior, stricto ou lato sensos. Enquanto a gente não dialogar abertamente e retirar a violência doméstica de tabu das nossas relações familiares e começar a falar sobre isso, enquanto essa cultura não for modificada, a sociedade vai continuar agindo e se posicionando desse jeito.

Tenho convicção de que aquela não foi a primeira vez que ele [o DJ] agrediu a mulher. Não foi. Se não tivéssemos aquelas imagens até hoje, estaria na mesma situação. Daqui a pouco, nas redes vão começar a responsabilizar a mulher — “Por que ela voltava? Ela voltava porque gostava”. Não existe isso. Violência doméstica não é matemática. Dois mais dois na violência doméstica pode dar 5 mil fatores que fizeram aquela mulher permanecer num relacionamento abusivo. Então, não é tão simples de se solucionar. Não é chegar e achar que basta fazer isso ou aquilo. Tem muita coisa. Tem as relações familiares dela pressionando, tem o amor que não vou discordar que possa existir.

E me incomoda muito quando eu ouço — “Ah, nossa sociedade está doente”. Não. Eu não vou creditar a violência doméstica a uma doença mesmo porque as doenças têm cura, têm vacina, têm tratamento. A gente está de frente não é com o adoecimento da sociedade, é com a escolha da sociedade. A sociedade escolhe ser violenta. E no caso do machismo, o machismo pauta a escolha dos homens em serem agressores. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública nos diz que a cada 8 minutos uma mulher está em situação de violência no nosso país.

Então, diante daquelas imagens temos que pautar debates, discussões, políticas públicas, o fortalecimento da rede do sistema de Justiça, do sistema de segurança pública. Uma mulher que sofre violência doméstica hoje vai chegar a acessar uma delegacia especializada e qual atendimento ela vai ter? Ela vai solicitar uma medida protetiva ou solicitar apoio do sistema de Justiça e qual apoio é esse que ela vai receber? Qual é o tempo resposta? Qual a quantidade de profissionais que estão alocados nesses espaços? Quantos profissionais existem nos centros de referência? Por que não é pauta prioritária do governo federal o enfrentamento da violência contra a mulher? Por que a gente não para pra refletir se o fato de uma presidenta, a primeira que nós tivemos, ter sido deposta num golpe não foi um ato de misoginia? Por que a gente não pauta isso? Uma mulher foi retirada daquele lugar como prova de que nós não temos políticas de proteção às mulheres, não querem que as mulheres sejam iguais a eles. Então, esse caso do DJ é mais uma oportunidade para debater, mas infelizmente ainda não enxergo uma mudança significativa na sociedade em direção ao enfrentamento da violência contra a mulher. Nós apenas começamos. Ainda sinto que precisamos de muito mais.

 

Você pesquisou o racismo na atividade policial militar, para dentro da corporação e na atuação junto à sociedade. Esse é um problema que é parte da estrutura da sociedade brasileira ou é algo que se acentua dentro da corporação?

— Primeiro, é preciso entender que os policiais e as policiais militares não são “aliens”. Eles não vieram de outro planeta. Eles vieram da sociedade que está posta aí. Se nós vivemos numa sociedade que é racista, misógina, machista, então nós vamos ter pessoas que compõe essas forças que vão trazer esses traços. Mas quando nós estamos investidos da autoridade que essas forças policiais nos dão, nossas ações têm um impacto social muito maior. Se eu, cidadã, passo na rua e cometo um ato misógino, um ato racista, aquela cidadã será responsabilizada. Mas quando é a instituição que o faz, aquilo passa a ser uma marca daquela instituição, como se fosse até uma doutrina da instituição.

Então, quando vou pautar a discriminação racial na escolha do suspeito da atividade policial militar, eu quero que a corporação que eu escolhi servir entenda que nós, instituição, temos que rebater a existência de crimes e o racismo é um crime. E antes disso, é um crime humanitário. Então, nós precisamos entender que enquanto corporação, não podemos ser os promotores daquelas atitudes. Ainda que meus estigmas pessoais, meus estigmas sociais sejam de ser uma pessoa racista, eu não posso, investido da autoridade da farda, representando a instituição repercutir esses comportamentos.

E quando vou analisar, em um crime específico que foi assalto a ônibus, 45% dos assaltantes eram homens brancos. Por que quando nos é ensinado na sala de aula sobre o que é um suspeito, a ideia que nos constrói, na perspectiva de uma abordagem ambrosiana social, é de um homem jovem negro? Se eu repercuto isso a partir do meu curso de formação, se eu repercuto isso na prática diária do policial, eu vou consolidar o racismo como doutrina dentro da minha instituição. Eu estava no penúltimo ano de formação, no curso de formação de oficiais, e um instrutor de técnica policial militar lança uma pergunta: “O que vocês fariam se encontrassem um carro com cinco ‘negões’?”. Meus colegas, em tom de brincadeira, começaram a falar — “Ah, a gente ‘deitava’ no chão, tapa na cara, coturno no pescoço”.

Eu levantei a mão e perguntei: “Instrutor, por que cinco ‘negões’? E se fossem cinco brancões?”. E ele me responde a frase que dá título à minha dissertação: “Minha filha, branco correndo é atleta. Preto correndo é ladrão”. Dali, no processo de formação, o que aquele instrutor, aquele professor, aquele mediador entre a profissão que a gente escolheu e a nossa ignorância técnica, o homem que iria nos ensinar como fazer estava dizendo para mim que quando eu visse um homem preto, eu olharia para ele como um suspeito. Essa perspectiva está sendo construída em gerações de policiais.

Temos que entender que os estigmas, o racismo que está lá posto fora, não pode ser institucionalizado. E até aqui o foi. As corporações precisam encarar isso de frente. É tipo alcoolismo. Você não trata o alcoolista sem que ele reconheça que está em processo de vício, de adoecimento, de dependência. A gente não pode tratar os racismos e as discriminações que porventura as corporações militares façam sem olhar para isso e admitir a sua prática. Admitir a sua prática. Nós precisamos ser técnicos. Por isso que eu vou estudar isso, que eu vou pautar isso e que eu vou entregar essa pesquisa a minha corporação para que ela entenda ou não a utilidade do seu uso. Eu sou mãe de um menino negro e eu não quero me assustar todos os dias que o meu filho estiver longe de mim. Eu não quero me assustar quando meu filho pega o carro para ir em uma farmácia a noite, num restaurante, numa balada. Eu quero saber que ele vai ser protegido pelas forças de segurança, não que ele vai ser um alvo delas.

 

O que você espera que possa mudar no futuro próximo do Brasil?

— Eu espero que a gente recupere a sanidade e aprenda a votar. Tenho dois números mágicos [fala sorrindo] que podem ajudar nesse processo. Eu quero que a gente vote para que seja possível recuperar aquela dignidade sobre a qual falamos no início dessa conversa. Espero que as pessoas entendam que nós precisamos voltar a evoluir, evoluir enquanto Nação, mas sobremaneira evoluir enquanto seres humanos. Nós estamos estagnados. Nós não temos perspectiva de vida. A juventude está sem esperança, está sem possibilidade de sonhar e aí a gente vê tantas vidas sendo precocemente perdidas porque não existe esperança, não existe alento nos corações dessas pessoas e, claro, nas suas famílias.

Então, para 2022 eu quero que o Brasil reaprenda a votar, que o Brasil eleja pessoas, não eleja histórias, não eleja filhos de alguém, amigo de alguém ou alguém que me entregou um emprego. Elejam propostas, elejam perspectivas de mudanças reais, ainda mais aquelas que já foram testadas. Para mim, não existe outro voto para 2022 que não seja em Lula. Aqui na Bahia, não existe outro voto se não o de continuidade dos governos petistas. Porque é muito claro o que a gente vê com relação a melhoria da vida das pessoas.

Sou uma mulher da periferia. Moro lá até hoje, vivo lá até hoje. Tive o privilégio de ter um pai e uma mãe que, embora não tenham estudado, sabiam o que era educação. Ouvi meu pai sempre dizendo que esse país só iria melhorar quando seu Luiz Inácio fosse presidente. Eu não sou culpada pelos retrocessos brasileiros porque eu não votei no gestor do governo federal. Quero muito que as pessoas façam olhar para suas próprias vidas e vejam o que de fato mudou nesse período de quatro anos.