Desde a destituição de Dilma Rousseff, a política indigenista vem sofrendo retrocessos graves e o governo Bolsonaro — aliado das bancadas da bíblia, da bala e do boi — avança sobre os territórios dos povos originários, no esforço de impedir a demarcação de terras e abrir as áreas para exploração econômica

 

Os governos do PT foram marcados pelo compromisso em assegurar os direitos à autonomia e diversidade dos povos indígenas e, simultaneamente, garantir o acesso a serviços públicos. A luta dos povos indígenas garantiu, neste período, a homologação de 22 milhões de hectares em 108 terras indígenas e a adoção de mesas de diálogo para construir uma solução pacífica para a superação dos conflitos.

Houve a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), para reformular a gestão da saúde indígena, com autonomia administrativa, orçamentária, financeira e responsabilidade sanitária dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), e a instituição da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) — Decreto 7.747/ 2012 —, com o objetivo de proteger, recuperar e garantir o uso sustentável dos territórios indígenas.

Vale lembrar ainda os 342 profissionais do Mais Médicos atuando nos distritos de saúde indígenas, as 3 mil escolas entregues em comunidades indígenas, os mais de 16 mil indígenas universitários, as 30 mil famílias atendidas pelo Luz para Todos, e os 332 mil índios beneficiados pelo programa Bolsa Família. Ademais, em 2015, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista e o Brasil sediou a primeira edição dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas.

O Golpe de 2016, que arrancou de maneira fraudulenta o mandato de Dilma Rousseff, com a aprovação de um impeachment sem crime de responsabilidade pelo Congresso, recaiu de forma intensa sobre os direitos, a vida e a luta dos povos indígenas.

Com Michel Temer, ganhou força, no Congresso Nacional, uma pauta anti-indígena patrocinada pela bancada ruralista, que apoiou fortemente o golpe, resultando em centenas de proposições cujos alvos prioritários são a revisão da legislação de demarcação e proteção e das regras para exploração das terras indígenas.

Com Jair Bolsonaro, o esforço de destruição dos marcos legais de proteção dos povos indígenas chega ao ápice. Com o líder da extrema-direita nacional chega ao poder um governo em conflito com os povos indígenas, que paralisou a demarcação e busca avançar na exploração econômica das terras dos povos originários, esvaziando os órgãos oficiais de proteção e trazendo de volta a defesa de uma tese velha da “integração nacional”. O que era um risco com Temer, transformou-se, sob Bolsonaro, em realidade, com retrocessos inaceitáveis em relação aos direitos constitucionais dos povos indígenas.

 

Paralisia das demarcações

Durante a campanha presidencial de 2018, Bolsonaro prometeu que, se eleito, não demarcaria um só centímetro de terra indígena. Inegavelmente, está cumprindo tal promessa. Até o momento, nenhum hectare foi demarcado pelo governo, além de ter devolvido inúmeros processos à Fundação Nacional do Índio (Funai).

GOLPE DE 2016 - O golpe contra os índios

Em abril de 2020, o governo Bolsonaro deu passo importante para fragilizar o direito à terra originária pelos povos indígenas. Por meio da Portaria Normativa 09, a Funai passou a certificar imóveis rurais em terras indígenas não homologadas. Com isto, as 235 terras indígenas em processo de demarcação, assim como todas as áreas formalmente reivindicadas por grupos indígenas, em qualquer estágio do processo de análise, deixaram de ter restrição ao registro das propriedades no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR/Sicar).

Vale lembrar que, segundo levantamento do Ministério Público Federal, em 2020 havia 9.901 propriedades inscritas no CAR sobrepostas às terras indígenas, em diferentes fases de regularização ou a áreas com restrição de uso.

 

O enfraquecimento dos órgãos indigenistas

Em seus primeiros atos, o governo Bolsonaro buscou atacar as instâncias do Estado encarregadas de assegurar os direitos indígenas e a participação deles nas políticas públicas.

Na reforma administrativa promovida no início de seu mandato, a Funai foi duplamente atacada. O órgão foi transferido para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e sua atribuição de demarcar terras indígenas foi transferida para o Ministério da Agricultura.

No primeiro caso, uma mudança alinhada à orientação catequista e assimilacionista do governo Bolsonaro para a política indigenista. No segundo, subordinou o direito à terra dos povos originários aos interesses dos ruralistas. O governo Bolsonaro sofreu dupla derrota, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, e a Funai voltou ao Ministério da Justiça.

Se não conseguiu promover as alterações executivas que pretendia, Bolsonaro deu sequência à política de sufocamento orçamentário da Funai. Em quase todos os anos após o golpe, exceto em 2018, os recursos do órgão foram inferiores ao total empenhado em 2015. Em valores reais, o orçamento aprovado para 2021 é 12% menor que em 2015.

Ao sufocamento orçamentário, soma-se uma intensa troca de ocupantes de cargos de chefia e de coordenação na Funai, com a substituição de técnicos com longa passagem pela instituição por indicados de integrantes da bancada ruralista no Congresso.GOLPE DE 2016 - O golpe contra os índios

No caso dos profissionais encarregados da elaboração de laudos antropológicos, as mudanças tiveram como objetivo assegurar a contratação de pessoas alinhadas com a política de “demarcação zero” prometida por Bolsonaro.

Vale ainda lembrar que o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) não se reúne desde 2016. Embora tenha escapado da sanha revogatória do governo Bolsonaro, que pretendia extinguir todos os conselhos de participação social em políticas públicas, o CNPI persiste, mas sem exercer qualquer atividade.

 

A exploração privada em terras indígenas

Instituída em 2012, a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) buscava assegurar a autonomia e o protagonismo dos povos indígenas na gestão se seus territórios. Para isso, entre seus objetivos principais, estava o fomento a ações que assegurassem o uso sustentável dos territórios indígenas, acompanhadas por um comitê gestor formado por governo e representações dos povos indígenas.

Ao contrário deste alinhamento com as previsões da Constituição, o governo Bolsonaro vem buscando alterar a legislação para autorizar a exploração econômica privada das riquezas presentes nos territórios indígenas. Além do esvaziamento das ações de fiscalização, submetendo os povos indígenas a uma violência crescente contra suas terras e sua vida, há duas medidas que capitaneiam este esforço do governo.

O Projeto de Lei 191/2020, proposto por Bolsonaro, pretende regulamentar a exploração de recursos minerais e a geração de energia elétrica em terras indígenas. E, se aprovado, a lei vai autorizar qualquer atividade econômica em terras indígenas, incluindo agricultura, pecuária e turismo. O projeto abre caminho para que, mediante parcerias e outros mecanismos jurídicos, grupos econômicos explorem e se apropriem, na prática, das terras e riquezas naturais que são, constitucionalmente, de usufruto exclusivo dos povos indígenas e de propriedade da União.

Quanto à Instrução Normativa 01/2021, editada em conjunto pela Funai e pelo Ibama, a norma autoriza a “parceria” entre indígenas e não indígenas para a exploração econômica dos territórios, sem sequer simular uma consulta aos afetados, no caso, os povos indígenas. Uma medida infralegal tomada para acelerar a entrega das riquezas dos territórios indígenas ao setor privado.

 

Política racista de identificação indígena

Em janeiro de 2021, o governo Bolsonaro fez nova incursão em sua estratégia de dar nova orientação à política indigenista brasileira. Por meio da Resolução 04/2021, a Funai estabeleceu novos critérios para a “heteroidentificação” de indígenas no Brasil.

Basicamente, a medida define que a Funai passará a definir quem é e quem não é indígena no Brasil, o que antes era um papel dos próprios indígenas, um direito garantido pela Constituição e por tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A medida foi denunciada como racista e tornou-se objeto de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), sob argumento de inconstitucionalidade. Em maio de 2021, a Resolução foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.

 

A fragilização da atenção à saúde indígena

O Golpe de 2016 interrompeu o processo de fortalecimento da atenção à saúde indígena. O primeiro impacto veio da extinção do programa Mais Médicos, que havia levado profissionais aos 34 distritos sanitários indígenas.

Como em 56% deles, os médicos em atividade eram cubanos e o programa substituto criado por Bolsonaro não conseguiu preencher a integralidade dessas vagas, o atendimento às populações indígenas se deteriorou, como mostra a elevação da taxa de mortalidade de bebês indígenas já em 2019.

Embora tenha sido obrigado a recuar de sua intenção de extinguir a Secretaria Especial de Saúde Indígena, o governo Bolsonaro foi omisso na prevenção, controle e cuidado das populações indígenas frente à pandemia da Covid-19. Foram afetados 163 territórios e, até 31 de maio, havia 54.785 casos confirmados e 1.092 mortes entre indígenas.

O plano de ação federal para combater a Covid-19 em territórios indígenas somente foi implementado sob ordem do Supremo Tribunal Federal, que exigiu três reformulações nas propostas, consideradas insuficientes. Por falta de informação, muitos indígenas se recusaram a realizar testes e, devido a fake news, há oposição à vacina. O número de cestas básicas distribuídas tem sido insuficiente, assim como a oferta de água. Insumos para atendimento e profissionais para assegurar atenção à saúde não chegaram a territórios não homologados. Em suma, o governo Bolsonaro reproduz, entre os indígenas, a mesma política genocida omissa que adotou para o conjunto do Brasil.