As ilusões das elites
Uma potência para se tornar hegemônica globalmente deve controlar o seu hemisfério. Esta é uma premissa básica nas relações de poder interpretadas pela geopolítica. E esta foi justamente a primeira etapa cumprida quando da ascensão dos Estados Unidos, que desde sua independência procurou limitar a presença de potências europeias sobre as Américas, estabelecendo um conjunto de doutrinas, como a Monroe: “América para os americanos”, ou o Corolário Roosevelt, proibindo a intervenção de qualquer outro país na região, que não os próprios EUA.
Na virada do século 19 para o século 20, os EUA conquistaram o Havaí, expulsaram a Espanha de Cuba, Costa Rica e das Filipinas, ocupando militarmente esta última, e travando uma guerra de extermínio contra sua população rebelada. Quase no mesmo período, promoveram uma intervenção de forma quase aberta para provocar a cisão por parte do Panamá, do restante da Colômbia, o que permitiu a construção do canal sob controle desta potência.
Até meados dos anos 30, em um mundo disputado por vários atores, a política de Estado dos EUA consistia em manter o controle político, econômico e militar sobre o conjunto da América Latina, mediante sucessivas intervenções, promoção de golpes, operações psicológicas e incentivos econômicos, não necessariamente nesta mesma ordem.
Quando da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, o Brasil foi instado a participar. Para tal, disponibilizaram recursos financeiros para a criação de uma indústria siderúrgica nacional, mas também teceram planos alternativos para a ocupação de áreas do Nordeste pela força, com o propósito de estabelecer bases militares.
Para além disso, sob a estratégia do incentivo a entrada na guerra, foi assegurada a participação brasileira permanente no futuro Conselho de Segurança da ONU, e um Plano Marshall para potencializar a economia sul-americana. Como se sabe, a história odeia planos. Roosevelt faleceu antes do final do conflito e, com ele, suas promessas. Concomitantemente, com a vitória aliada, os Estados Unidos tornaram-se, repentinamente, uma das duas maiores potências militares do planeta, e a maior potência econômica. Desta maneira, sua esfera de influência migrou abruptamente das Américas para a Eurásia e o mundo, em um contexto mundial deveras turbulento.
Enfrentando a União Soviética e suas dezenas de divisões ocupando a Europa, tendo que projetar poder militar em diversos continentes, reconstruir a Europa Ocidental e posteriormente o Sul da Ásia, esta agenda global se tornou sua prioridade absoluta, ao aspirar manter a posição hegemônica recém ocupada.
Aqui cabe observar que estas políticas não foram movidas somente pelas vantagens materiais, constituíam-se como necessidades impostas pela realidade política e geográfica colocada pelo fim da guerra e o novo tabuleiro de poder. Se os EUA não ocupassem os espaços abertos, como deixaram de fazer após a Primeira Guerra Mundial, esses seriam ocupados pelos soviéticos.
Desta forma, seja por escolha ou necessidade, assumiram a primazia global, e ao fazê-lo, a América do Sul e, nela, o Brasil, passaram a compor aos olhos norte-americanos um hemisfério distante, longe dos principais mercados mundiais, e do centro conflitivo da Guerra-Fria — leia-se Europa e Ásia. O papel das Américas para a nova potência mudou radicalmente ante este novo contexto como potência global, secundarizando-se.
Por outro lado, como a propagação de um eco da realidade anterior, a influência dos EUA no país, sob o viés econômico, militar e cultural aumentou de maneira exponencial. Na metade do século passado, os norte-americanos possuíam metade do PIB mundial, as forças armadas mais avançadas tecnologicamente do planeta, e uma política de hegemonia centrada na esfera do poder informacional, em que diversas sociedades passaram a contemplar deslumbradas o que seria o sonho norte-americano.
Se investimentos econômicos não poderiam ser executados em profundidade para todas as nações, a capacidade de propagar uma ideologia seria sim espraiada pelo mundo.
Neste sentido, a principal questão posta entre esta diminuição do papel brasileiro na realidade da potência global, para com a sua projeção ideológica dominante envolve o fato de que o Brasil não faz mais parte nem remotamente deste sonho. Dentro da lógica geopolítica dos EUA, o país manteria um nível de industrialização restrito, e seria um fornecedor de commodities, e mesmo assim de maneira limitada, visto que em alguns, como soja, algodão, carne, e futuramente petróleo, são setores onde os países competem.
Baseado na distante América do Sul, cercado pelos Andes, floresta amazônica e oceano atlântico, sem vizinhos como ameaça, ou grandes potências regionais desestabilizadoras, o papel reservado ao Brasil no mundo norte-americano seria o de ajudar na estabilidade regional, manter intocada sua vegetação, e permanecer como uma não-potência.
Ou seja, neste lugar político e geográfico de segunda “potência” das Américas, o país somente se torna motivo de preocupação nos momentos em que consegue se desenvolver economicamente, e principalmente, quando avança de maneira independente na esfera tecno-militar.
Como antes observado, qualquer potência que almeje ser hegemônica globalmente tem que reinar inconteste no seu hemisfério. Então, ao mesmo tempo em que prima certo desinteresse sobre o crescimento brasileiro, paradoxalmente, quando começa a percorrer um caminho que o torne desenvolvido, passa a ser visto com suspeição.
Por conseguinte, não existiu ingresso no Conselho de Segurança da ONU, auxílio no programa nuclear, suporte nas pesquisas de lançamento de satélite, parceria militar em nível elevado, financiamento nos moldes do Plano Marshall, e muito menos acesso privilegiado ao mercado norte-americano. E isto não ocorreu necessariamente por uma predisposição maligna, e sim pelas leis do poder global.
Ao mesmo tempo, todos os pretensos países vitoriosos economicamente, tais como Alemanha, Coreia do Sul, Japão, e até mesmo a China, passaram a ter em algum momento acesso privilegiado ao mercado norte-americano. A Alemanha, então ocidental, para se contrapor aos países da cortina de ferro, a Coreia do Sul para deter a Coreia do Norte, o Japão como barreira à China, e esta última, posteriormente, como meio para consolidar sua total ruptura com a União Soviética nos anos 70.
Chegando aos dias atuais, em que pese a narrativa dos EUA exigindo democracia na Coreia do Norte ou na Venezuela, poderia parecer paradoxal que tenham uma sólida aliança estratégica com a Arábia Saudita, cuja família real no poder representa um governo teocrático totalitário.
Para lá não existe pressão por eleições livres, pelos direitos das mulheres e homossexuais, e muito menos em defesa da liberdade religiosa. Mas, isso se explica na esfera geopolítica, em que os sauditas são fornecedores de petróleo, e adversários do Irã na região.
Assim, não somente os EUA não efetuam julgamentos morais sobre o país, como pretendem vender seu caça mais sofisticado (Lockheed Martin F35) para os mesmos. A mesma lógica vale para o Vietnã, que além de ser uma pretensa ditadura, possui um regime que se reivindica comunista.
Tendo expulsado invasores de seu território diversas vezes, a nação é um contraponto ao poder chinês, sendo, portanto, um aliado precioso no elaborado sistema de contenção organizado por Washington. Desde o governo Obama, não somente foi encerrado o embargo à venda de armas a esta nação, como sua economia tem crescido às custas do superávit com os EUA.
Interessante notar que os neoliberais, em seu mundo ficcional, acham que tais desenvolvimentos econômicos são explicados somente pela competitividade do país, e não pelas escolhas direcionadas pelos interesses das potências, de um campo de disputa bem mais profundo.
Tais alianças não invalidam o modelo de democracia dos EUA, com liberdade de imprensa, partição de poderes, voto livre e direitos individuais. Aliás, a independência norte-americana continuará a ser um modelo inspirador para a evolução institucional brasileira, bem como para o regime democrático nacional.
A questão central envolvida relaciona-se ao necessário entendimento de que um Estado-Nação possui a hegemonia do exercício do poder em seu território, então consegue fazer valer os preceitos com que foi erigido localmente. Contudo, em termos internacionais tal fenômeno não acontece. São vários Estados competindo entre si e disputando mercados, poder militar e hegemonia informacional. Se uma Nação utilizar como critério de suas alianças somente a afinidade ideológica, não sustentará sua posição durante muito tempo. Aliás, justamente por este fato da realidade, no decorrer da Guerra-Fria, os EUA foram parceiros de ditadores, como Pinochet no Chile, Somoza na Nicarágua ou o Xá Reza Pahlevi no Irã.
Seu modelo de hegemonia, em que pesem as invasões, golpes, operações psicológicas e ações de influência, tem sido muito menos despótico do que seria o exercício de dominação de um Estado totalitário, como a Alemanha nazista. Apesar da imensa concentração de recursos do planeta em sua posse, inegavelmente a humanidade em seu conjunto se desenvolveu e teve acesso a novas possibilidades econômicas.
O problema, no caso brasileiro, reside nas ilusões que grande parte das elites locais nutrem quanto ao papel dos Estados Unidos para com o Brasil. Resultante da imensa influência cultural deste país, uma parcela significativa do empresariado, militares, judiciário e setores médios sonham o sonho norte-americano, muito mais do que o brasileiro.
Imaginam a Nação brasileira como um parceiro de prestígio, concebem uma aliança militar privilegiada e, a bem da verdade, infelizmente, parte destas pessoas até mesmo se vê como norte-americana. Como decorrência disso, parte de nossas elites obtêm seus proventos no país, mas residem nos EUA. Muitos optam por fazer com que seus filhos nasçam por lá.
Mais do que simples predileção, este comportamento idealista atenta contra os interesses estratégicos desta própria elite, e de todo o conjunto da sociedade. Ao viver sua utopia norte-americana, tais setores não centram suas energias em realmente desenvolver o país, sempre à espera de que em dado momento o “sonho americano” simplesmente transbordará para o sul do hemisfério.
Um exemplo pode ser encontrado no pensamento de Golbery do Couto e Silva, provavelmente o maior ideólogo do regime militar brasileiro. Em seu livro Geopolítica do Brasil, Golbery apresenta uma elaborada análise da conjuntura da disputa de poder de então, e do papel secundário reservado à América do Sul nesta contenda.
Todavia, quando das conclusões, o texto se desconecta da realidade tão detalhadamente analisada e se alicerça sobre a premissa de que os EUA perceberiam o papel que o Brasil poderia ter, e investiriam em uma aliança, política, econômica e militar.
Na verdade, a referida aliança estava no campo do desejo, da admiração pela sociedade norte-americana, da sua economia e poderosas forças armadas, dos vínculos militares criados pela guerra na Itália. Mas, como observado, quando da análise fria dos interesses nacionais, não faz sentido geopolítico para os EUA que o Brasil se torne uma potência.
Não é uma questão de cunho moral, é um fato objetivo que compõe o que se poderia chamar de leis da hegemonia mundial. Conforme observado, nenhuma potência deseja qualquer nível de concorrência em sua vizinhança, ainda mais com a conjunção de grande território, ampla disponibilidade de recursos naturais, enorme e variada população, e uma conformação civilizacional acentuadamente distinta.
Por outro lado, justamente pelos motivos acima, por seu tamanho, recursos e população, a Nação brasileira é obrigada a se desenvolver econômica e tecnologicamente ou pagar o preço trágico do fracasso. Com mais de 200 milhões de habitantes, não é sustentável exportar soja, carne e minério de ferro, e conceber que será possível prover um mínimo de condição material para toda esta gama de indivíduos.
Sem prover meios de uma vida digna ao conjunto dos brasileiros, nunca existirá estabilidade social, e muito menos estabilidade econômica. Assim, o desenvolvimento nunca é de longo prazo, e os avanços tecnológicos são limitados.
É importante que se perceba que não existe vácuo nas relações internacionais de poder. Os recursos do país que não forem explorados a serviço da própria sociedade, serão explorados a serviço de outras nações — sejam os EUA ou, mais recentemente, a China.
Ao contrário da peça “Esperando Godot” (1953), de Samuel Beckett, na qual os personagens são colocados em um contexto em que a espera dá sentido às suas vidas, está na hora da elite nacional ser levada a perceber que cabe abandonar a eterna expectativa, e agir.
Os brasileiros devem assumir as características únicas de sua própria civilização com acertos e erros, sem vergonha ou ufanismo, e construir os próprios caminhos pelo mundo sem esperar por ninguém. A utopia pode ser aqui e agora, desde que o olhar se volte para a realidade mais que o desejo.