Um dos mais belos e sublimes discos da música pop completou 50 anos em 21 de maio. É o brilhante e crucial What’s going on, lançado pelo talentoso Marvin Gaye. A obra revolucionou a soul music e é um dos mais belos retratos do começo dos anos 70, em meio ao fim do sonho hippie, da quebra do encanto dos ideais de paz e amor e da ressaca política e cultural que vivia a juventude, mergulhada no abandono, no fim do sonho americano e da guerra do Vietnã. Bem-vindo ao infernal ano de 1971.

É difícil que alguém não tenha sido atingido em algum momento nas últimas décadas pelo monumental álbum do músico, que transformou sua obra em um momento de reflexão sobre aqueles anos de mudanças profundas e desencantos com os rumos da América, mergulhada na Guerra do Vietnã, na presidência decadente de Richard Nixon e nos movimentos de ativistas como os Panteras Negras. 1971 foi mesmo excepcional para a música pop.

O disco é pedra angular da música negra americana. Ao ponto do cantor Smokey Robinson – a estrela da Motown – apontar What’s going on como “o melhor disco da história”. Pode parecer exagero, mas, de fato, o álbum está entre alguns dos melhores trabalhos musicais do século 20. E, sem dúvida, merece figurar na lista dos 100 mais importantes e influentes. É uma obra-prima. Como outro do mesmo ano, Imagine, de John Lennon. A revista Rolling Stone colocou o disco em primeiro lugar na lista dos “500  melhores álbuns de todos os tempos”, publicada em 2020. E justificou que o disco fez artistas negros sentirem uma nova liberdade para ultrapassar os limites musicais e políticos na arte.

What’s é um mix de música clássica, soul, funk e jazz. A sonoridade é magistral e é difícil não se deixar empolgar, ao mesmo tempo que toca a alma do público por conta das letras. É nas palavras de Gaye que What’s going on carrega genialidade, com o músico conseguindo esboçar à sua maneira um painel de seu tempo. O disco é a Guernica da soul music. Sem exagero.

São apenas nove canções traçando as percepções de um veterano da Guerra do Vietnã, retornando ao país após lutar, carregando conflitos e pesadelos, e nada encontra além da miséria, injustiça, sofrimento e ódio. A morte, a depressão, as injustiças sociais e as histórias de guerra fizeram Gaye compor o disco mais influente da música negra.

“Eu trabalho melhor sob pressão e quando estou deprimido. O mundo nunca foi tão deprimente como agora. Estamos matando o planeta, matando os nossos jovens nas ruas e indo para a guerra em todo o mundo. Direitos humanos, esse é o tema”, disse o cantor ao jornal Detroit Free Press.

Ele sabia do que estava tratando. Seu irmão Frankie havia retornado do Vietnã em 1970, após servir as Forças Armadas dos Estados Unidos durante três anos. E estava absolutamente quebrado espiritualmente. Aquilo atormentou o cantor e compositor, que havia interrompido a carreira, descontente com próprio trabalho, porque o considerava irrelevante, especialmente frente às transformações sociais pela quais viviam a América no final da década de 1960, depois da morte de Martin Luther King e Malcolm X.

Foi isso que levou Gaye a tentar esboçar reflexões sobre suas crenças espirituais, enquanto via a comunidade negra norte-americana chafurdando na pobreza, alvo da corrupção policial e atormentada pela guerra que estava matando os jovens.

O que está acontecendo/ Mãe, mãe/ Há muitas de vocês chorando/ Irmão, irmão, irmão/ Há muitos de vocês morrendo/  Você sabe que nós temos de encontrar um meio/ Para trazer um pouco de amor hoje”, diz Gaye nos primeiros versos de What’s going on. “Pai, pai/ Nós não precisamos agravar/ Veja, guerra não é a resposta/ Pois apenas o amor pode conquistar o ódio/ Você sabe que nós temos de encontrar um meio/ Para trazer um pouco de amor aqui hoje”. Tudo isso embalado na voz sublime de Marvin Gaye, que soa cativante, doce e absolutamente sincero.

O disco foi gravado a partir de 1º de junho de 1970, quando Gaye registrou as três primeiras canções: “What’s going on”, “God is Love e “Sad Tomorrows”. Ele queria que a Motown lançasse o single de “What’s going on”, mas o presidente da gravadora, Berry Gordy, recusou-se a atender seu pedido, alegando que a canção não tinha apelo comercial. Um erro grave.

Revoltado, Gaye exigiu que Gordy mudasse de ideia, caso contrário, não gravaria mais nada. Pressionado, o chefão da Motown acabou por ceder aos anseios do cantor. E acertou em cheio. A gravadora lançou em janeiro de 1971 o single de “What’s Going On”, que fez grande sucesso comercial. Gordy requisitou ao artista um álbum com canções similares. E aí, em maio, saiu a obra prima.

O álbum é um dos mais importantes da carreira de Gaye e é até hoje seu trabalho mais conhecido. Além da faixa-título, “Mercy Mercy Me” e “Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)” atingiram o Top 10 dos Pop Hits e o primeiro lugar da lista de R&B da Billboard. Tornou-se o disco mais vendido da Motown.  E ainda soa lindo. Num mundo horrível da Covid e da desigualdade, parece que foi feito agora.

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