Durante anos sonhara passar um “reveillon” como se deve. Como se deve, segundo seu conceito, era passar o “reveillon” longe da família, distante da algazarra das crianças, ausente das tradições domésticas, completamente livre e despreocupado.

Durante anos sonhara passar um “reveillon” como se deve. Como se deve, segundo seu conceito, era passar o “reveillon” longe da família, distante da algazarra das crianças, ausente das tradições domésticas, completamente livre e despreocupado. Era transpor o ano com dinheiro no bolso, num salão elegante ou numa “boite” entre amigos ruidosos, igualmente livres das respectivas famílias e igualmente dispostos a enfrentarem com galhardia solteira a euforia da meia-noite; entre chapéus cônicos de papel colorido, confetes e serpentinas, guizos, guirlandas e guinchos, bolas multicoloridas, champanhe francesa e uma francesa também multicolorida.

 

Não que não fosse um bom filho, um bom marido, um bom pai. Era-o diligentemente, 364 dias por ano. Não cometia pecados, mais por falta de jeito do que por virtudes. Gostava da mulher, dos filhos, dos parentes. Comparecia quase religiosamente aos aniversários, dava ovos de chocolate para as crianças na Páscoa, saia de férias, visitava os amigos da família.

Mas quando chegava o dia 31 sentia uma angústia inexplicável, a nostalgia do desgarro, a saudade da libertação. Conseguira, durante anos e anos, resistir aos seus ímpetos, controlar-se educadamente e comparecer aos “reveillons” domésticos. Desta vez, achou que deveria tirar a forra. Com muito jeito conseguiu fazer com que a família fosse passar as férias no interior. Fingidamente compungido, assegurou com foros de sinceridade à mulher e aos filhos que lamentaria muito não poder passar em sua companhia o último dia do ano. Mandou pintar a casa para não poder receber ninguém. Inventou um serviço extraordinário “justamente no dia 31, vejam que maçada”, para livrar-se dos incoercíveis convites de tios, tias, cunhados, primas, sogros e avós. Com esforço e cautela conseguiu, finalmente, planejar sua solidão irremissível no fim do ano. De um dinheiro extra que havia reservado, usou uma parte para comprar um “smoking” . Escolheu o melhor “reveillon” da cidade. Telefonou, marcou encontro com amigos, decidiu sobre a marca dos vinhos que iria tomar. Esfregava as mãos de contentamento antecipado, enquanto ultimava os pormenores dos preparativos. Teve de dar exatamente 17 vezes o nó da gravata borboleta (era a primeira vez que o fazia). Pouco depois das 8 da noite do dia 31, saiu, fechou a porta à chave, distribuiu o dinheiro pela carteira e pelos bolsos e lançou-se à aventura.

Começou mal. No salão onde havia decidido passar a noite já não havia lugar; esquecera-se de reservar mesa, desacostumado como estava às aventuras solitárias. Dos amigos desencontrou-se: não se lembrava mais se havia marcado com o Alberto no “Alfredo’s” ou com o Alfredo no “Alberto’s”. Depois começou a chover; para não parecer ridículo, não havia vestido capa sobre o “smoking” e agora se sentia mais ridículo com a camisa engomada já enrugando, tomando chuva numa esquina à espera do táxi que não vinha. Tentou ir de ônibus, mas, a rigor, seria impossível entrar a rigor num coletivo da CMTC. Irritado, desconsolado, arrependido, só às onze e meia conseguiu arranjar um carro.

Quando soaram as sirenas da meia-noite, estava dentro do táxi, no meio de um congestionamento, o motorista xingando todo o mundo, o sapato de verniz apertando os pés.

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